Guerra da Ucrânia: Vitória Ideológica dos Neoeurasianistas

O início da operação especial russa na Ucrânia possui uma série de implicações. Entre elas, está o afastamento entre Rússia e Europa, com o naufrágio desta última nas mãos dos EUA por mais tempo. Mas a investida de Putin significa também o triunfo ideológico e intelectual do neoeurasianismo de Aleksandr Dugin no Kremlin.

A Rússia escolheu travar uma guerra insensata para deter a expansão da OTAN. Esta nova fase do conflito ucraniano é, acima de tudo, um fracasso das tentativas russas de negociar uma nova arquitetura de segurança com os Estados Unidos. Os russos podem ter superestimado a fraqueza dos americanos e sua disposição de se comprometerem com eles para acelerar seu pivô para a Ásia. Os partidários dos EUApodem certamente afirmar que estavam certos e que a Rússia está de fato engajada em uma política de renascimento imperial. Em qualquer caso, a ofensiva russa mina qualquer perspectiva de um acordo com a Rússia e, ao mesmo tempo, consolida o domínio estadunidense sobre os países europeus. Qualquer oposição à doxa atlantista será rapidamente submetida à reductio ad Putinum.

A Extensão Indefinida da OTAN para o Leste

De um ponto de vista ideológico, esta guerra, ao cortar todas as pontes entre a Rússia e o Ocidente, marca a vitória das correntes neoeurasianistas e, sobretudo, de seu líder, Aleksander Dugin. Aquele que poderia ter sido tomado por um intelectual vago e caprichoso, sem influência real na política externa russa, ou por um emissário na estratégia de poder brando da Rússia em relação à direita “iliberal” europeia, revela-se talvez a chave desta invasão, que frustra todos os cálculos racionais e mostra que um Estado nem sempre é o “mais frio de todos os monstros frios” que Nietzsche gostava de descrever.

Alguns esclarecimentos doutrinários parecem úteis aqui. O neoeurasianismo parte de uma questão que percorre toda a história da Rússia: a Rússia é um “Estado europeu” ou uma “civilização” separada? O primeiro Putin quis fazer da Rússia um membro da família europeia. A extensão indefinida da OTAN para o leste parece tê-lo levado a decidir definitivamente a favor da alternativa. A crítica de Putin à decadência pós-moderna assume uma nova dimensão à luz do pensamento de Dugin, que há anos vem trabalhando para construir uma “Quarta Teoria Política” que seria uma alternativa ao liberalismo, ao fascismo e ao comunismo para a Rússia. Ideologicamente, Dugin consegue uma síntese improvável dos pensadores tradicionais (Guénon e Evola em particular) e da filosofia de Heidegger, fazendo do Dasein heideggeriano, o homem aberto ao mistério do Ser, o tema fundamental de sua doutrina política.

A originalidade de seu pensamento reside sobretudo no fato de que esta visão antiliberal, que à sua maneira é parte da tradição contrarrevolucionária, é traduzida em uma visão geopolítica. Adotando a teoria schmittiana dos “Grandes Espaços”, mas adotando um ponto de vista especificamente russo sobre ela, Dugin defende o advento de um mundo multipolar do qual a Rússia seria um dos polos, ao mesmo tempo em que uma aliança de potências telúricas como China, Irã, Turquia e até mesmo a Índia contra as potências talassocráticas dos Estados Unidos e seus aliados. Por trás desta oposição aparentemente sumária está a oposição entre um mundo de enraizamento e um mundo de dissolução, Tradição versus pós-modernidade. Toda essa construção pode parecer um castelo de cartas intelectual – um bom conhecedor do trabalho de Guénon pode às vezes se perguntar o que ele está fazendo em tão estranho empreendimento – mas isso foi antes da guerra na Ucrânia, que vê Putin, o paciente jogador de xadrez, metamorfoseado em uma figura quase messiânica do neoeurasianismo diante de nossos olhos.

A aliança da Rússia e da China

Obviamente, se as ideias às vezes lideram o mundo, elas nem sempre têm a última palavra. Há em Dugin algo da figura do “gnóstico” voegeliniano que, em revolta contra a desordem interna e externa (o colapso do poder russo após a Guerra Fria, mas também o triunfo de uma forma de pós-modernidade que, em nome da emancipação, desenraiza tudo e ameaça até mesmo a própria ideia da natureza humana), aspira a precipitar uma crise catártica que provocaria o “reino de Deus” na Terra. Historicamente, este tipo de empreendimento sempre resultou em catástrofes de grande escala que aumentaram a desordem espiritual contra a qual o gnóstico protestava.

De um ponto de vista mais pragmático, o impulso da OTAN para o leste e a contraofensiva russa podem precipitar o pior pesadelo dos geostrategistas estadunidenses como Brzeziński: a aliança da Rússia e da China para expulsar os EUA da Eurásia. Não é certo, entretanto, que a Rússia, dessangrada pela ocupação da Ucrânia, escapará da vassalagem gradual pelo Reino do Meio. Este seria um resultado ainda mais paradoxal do ponto de vista neoeurasianista, pois a China neomaoísta de Xi Jinping parece estar muito menos interessada em restaurar sua própria Tradição do que em estabelecer uma forma de totalitarismo pós-moderno, alcançando a pior síntese possível de comunismo, liberalismo econômico e transumanismo.

Europa mais fraturada do que nunca

Ao invadir a Ucrânia, a Rússia também está prejudicando toda a estratégia de soft power que vem implementando na Europa há décadas. A guerra corre assim o risco de levantar barreiras intransponíveis, pelo menos por algumas gerações, a qualquer aproximação entre os Estados europeus e a Rússia, mesmo que fosse do interesse desta última formar uma espécie de bloco central, mantendo uma distância igual dos dois impérios chinês e americano que serão colocados em conflito no século XXI. A Europa, portanto, sairá desta guerra mais fraturada do que nunca. O ciclo liberal está sem dúvida se fechando em todo o mundo, como testemunhado pela ascensão do islamismo político e do nacionalismo hindu, para não mencionar a China, num contexto de declínio do Ocidente, inclusive no campo tecnológico. Mas um dos frutos envenenados da guerra na Ucrânia poderia ser o renascimento paradoxal de um progressismo liberal crepuscular e sem fôlego no velho continente. Na escala de um país como a França, há todas as chances de ver os homens e mulheres da direita conservadora, seduzidos por um tempo por uma aproximação com a Rússia, se aproximarem mansamente por trás da bandeira do atlantismo. Uma catástrofe nunca vem sozinha.

Fonte: Éléments

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Renaud Fabbri

Professor de Filosofia Política e de Religião Comparada.

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Um comentário

  1. Esquecem que a irracionalidade fascista se apoiou em Evola e Guénon. Perderam. Agora, a vizinha fornecedora de quinquilharias não tem nem mesmo tecnologia para fabricar microchips, dependendo do Ocidente. Com as sanções, vamos ver o dragão de pés de barro deixar o urso na mão. O interesse das tríades do sul da China ligadas a interesses britânicos desde as guerras do ópio fala mais alto.

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