No discurso hegemônico, a democracia e os valores liberais parecem indissociavelmente vinculados. Não obstante esse é um ilusionismo teórico recente. A democracia existe há milhares de anos, enquanto o liberalismo é uma construção iluminista e opera como um limitador e deturpador da democracia. Eventos recentes apontam para a necessidade de voltar a pensar nessas duas coisas separadamente, defendendo a democracia, ou seja, os interesses do povo, contra o liberalismo das elites cosmopolitas.
Vou falar com vocês sobre um fenômeno relativamente novo que não é alheio ao tema de hoje. É o iliberalismo. A palavra é um pouco bárbara, mas seu significado é bastante claro: designa o surgimento de novas formas políticas que afirmam ser democráticas, mas ao mesmo tempo querem romper com a democracia liberal que está em crise hoje em praticamente todos os países do mundo.
O termo surgiu no final dos anos 90 nos escritos de vários cientistas políticos ilustres, mas só recentemente, em 2014, tornou-se popular entre o público em geral quando o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán declarou publicamente em uma universidade de verão de seu partido: “A nação húngara não é um agregado de indivíduos, mas uma comunidade que devemos organizar, fortalecer e também nutrir. Neste sentido, o novo Estado que estamos construindo não é um Estado liberal, mas um Estado iliberal”. Ele acrescentou que chegou a hora de “entender os sistemas que não são ocidentais, que não são liberais e que ainda assim fizeram certas nações terem sucesso”.
O que ele quis dizer com isso? E qual é a diferença fundamental entre democracia liberal e democracia iliberal?
A diferença é que o liberalismo está organizado em torno da noção de indivíduo e em torno da noção de humanidade, eliminando todas as estruturas intermediárias, enquanto a democracia iliberal, que nada mais é do que democracia plena, está, em última instância, organizada fundamentalmente em torno da noção de cidadão. Neste sentido, ela pode ser definida como uma doutrina que separa o exercício clássico da democracia dos princípios do Estado de Direito. É uma forma de democracia onde a soberania popular e a eleição continuam a desempenhar um papel fundamental, mas onde não há hesitação em abrogar certos princípios liberais quando as circunstâncias assim o exigem.
As causas do crescimento do “iliberalismo” são óbvias e, em muitos aspectos, se sobrepõem àquelas que explicam o sucesso dos partidos populistas de hoje. Elas se baseiam principalmente na observação de que as democracias liberais foram transformadas em quase todos os lugares em oligarquias financeiras isoladas do povo: ineficiência, impotência, corrupção, partidos transformados em meras máquinas eleitorais, reinado de especialistas, visões de curto prazo, e assim por diante. A essa observação se soma outra, mais grave: Nas democracias liberais, as nações e os povos não têm mais meios para defender seus interesses. Que sentido pode ter a soberania dos povos se os governos não têm mais a independência necessária para estabelecer suas próprias grandes orientações econômicas, financeiras, militares ou mesmo de política externa? Podemos continuar impondo princípios legais que, em vez de promover a coesão dos povos e a perpetuação de seus valores comuns, levem à sua dissolução? Vejamos isso em detalhes. A democracia se baseia inteiramente no princípio da soberania popular como poder constituinte. A democracia é a forma de governo que responde ao princípio de identidade das opiniões dos governantes e governados, sendo a identidade primária a de um povo que existe concretamente por si mesmo como unidade política. Todos os cidadãos pertencentes a esta unidade política são formalmente iguais.
No entanto, deixemos claro que o princípio da democracia não é o da igualdade natural dos homens entre si, mas o da igualdade política de todos os cidadãos: o sufrágio obedece à regra “um cidadão, um voto”, e não “um homem, um voto”. O povo, na democracia, não expressa por sufrágio proposições que seriam mais “verdadeiras” do que outras. Eles simplesmente indicam onde estão suas preferências e se apoiam ou rejeitam seus líderes. Como Antoine Chollet escreve corretamente, “em uma democracia, o povo não está certo nem errado, mas decide”. Essa é a própria base da legitimidade democrática. É por isso que a questão de quem é cidadão e quem não é, é a questão fundamental de qualquer prática democrática. É também por isso que as fronteiras territoriais da unidade política são essenciais. Da mesma forma, a definição democrática de liberdade não é a ausência de restrições, como na doutrina liberal ou em Hobbes, mas é identificada com a possibilidade de todos participarem da definição coletiva de orientações políticas e restrições sociais. As liberdades, sempre concretas, aplicam-se a áreas específicas e situações particulares.
O liberalismo é bem diferente. Enquanto a política não é uma “esfera” nem um domínio separado de outros, mas uma dimensão elementar de qualquer sociedade ou comunidade humana, o liberalismo é uma doutrina que, no nível político, divide a sociedade em várias “esferas” e diz que a “esfera econômica” deve ser autônoma do poder político, seja por razões de eficiência (o mercado só funciona de forma ótima se nada interferir em seu “funcionamento natural”), ou por razões “antropológicas” (a liberdade de comércio, diz Benjamin Constant, liberta o indivíduo do poder social, pois é, por definição, o intercâmbio econômico que melhor permite que os indivíduos maximizem livremente seus interesses). A economia, originalmente percebida como o reino da necessidade, torna-se assim o reino da liberdade por excelência.
Redefinida no sentido liberal, a democracia não é mais o regime que consagra a soberania do povo, mas aquele que “garante os direitos humanos”, ou seja, os direitos subjetivos, inerentes à pessoa humana e, portanto, declarados “naturais e imprescritíveis”. Para os liberais, estes direitos humanos prevalecem sobre a soberania do povo na medida em que esta é respeitada, na medida em que não os contradiz: o exercício da democracia é assim colocado sob condições, a começar pela condição de respeitar os “direitos inalienáveis” que qualquer indivíduo teria em razão de sua própria existência. Confundida com um “Estado de Direito” que se tornou o horizonte insuperável de nosso tempo, a democracia se transforma em um movimento em direção a uma igualdade cada vez maior, esta igualdade, supostamente resultante do livre confronto de direitos, não é mais entendida como sinônimo de uniformidade. O Estado de Direito dissolve a política sob o efeito corrosivo da multiplicação dos direitos. Como diz Marcel Gauchet, “quando invocados incessantemente, os direitos humanos acabam paralisando a democracia”.
O Estado de Direito, vale lembrar, é antes de tudo um Estado de Direito privado, implica a primazia do direito sobre o poder político e se baseia no imperativo da obediência à lei. Embora se apoie na metafísica dos direitos humanos, a única que deve garantir a dignidade humana, ela consagra o poder das leis gerais como regras gerais obrigatórias para todos, a começar pelos líderes. A legitimidade é então reduzida à mera legalidade, reinando a lei positiva de forma puramente impessoal e processual. Carl Schmitt demonstrou que este sistema elimina a própria noção de legitimidade e é incapaz de funcionar em situações de emergência, onde as normas não são mais válidas. Esta substituição da política pelo direito ou pela lei acaba por esvaziar a política de sua substância.
O império da lei anda necessariamente de mãos dadas com o individualismo liberal e sua concepção de uma liberdade totalmente “negativa”, que diz respeito apenas ao indivíduo e nunca ao coletivo. Isto explica porque o liberalismo é fundamentalmente hostil à noção de soberania, exceto, é claro, à soberania do indivíduo. Para ele, qualquer forma de soberania além do indivíduo é uma ameaça à liberdade. Ele condena, portanto, a soberania política e a soberania popular com o argumento de que a legitimidade pertence apenas à vontade individual. “Assim que há soberania, há despotismo”, como Pierre-Paul Royer-Collard já havia dito. Uma vez que o indivíduo é soberano em termos absolutos, o povo não goza de uma legitimidade intrínseca.
Ao não reconhecer a validade de qualquer decisão democrática que possa prejudicar os princípios liberais ou a ideologia dos direitos humanos, o liberalismo, portanto, nunca admite que a vontade do povo deva ser sempre respeitada. Todas as democracias liberais são democracias parlamentares representativas, o que significa que a soberania parlamentar substitui a soberania popular. Para o liberalismo, de fato, o poder não tem primariamente o poder de dirigir, mas de representar a sociedade. Daí o papel fundamental dos representantes que, uma vez eleitos, podem fazer o que quiserem com o poder que lhes foi cedido para seu benefício. Entretanto, o povo tem menos vocação para ser representado, já que só é verdadeiramente soberano quando está presente diante de si mesmo. A democracia liberal, pode-se dizer, é uma democracia sem demos, uma democracia sem povo.
Mas, pode-se dizer, qual é a relação com as fronteiras? A relação é óbvia, e por duas razões.
A ideologia dos direitos humanos, como eu já disse, só quer conhecer a humanidade e o indivíduo. Entretanto, a política se articula sobre o que existe entre essas duas noções: povos, culturas, Estados, territórios, nos quais o liberalismo quer ver apenas simples agregados de indivíduos. A humanidade não é em si um conceito político: não se pode ser um “cidadão do mundo”, porque o mundo político não é um universum, mas um pluriversum: o político implica uma pluralidade de forças presentes. Segue-se, como Michael Sandel escreve, que “os princípios universais não são adequados para estabelecer uma identidade política comum”. É por isso que a política implica a existência de fronteiras, sem as quais a distinção entre cidadãos e não-cidadãos não tem sentido. E a própria democracia exige que haja fronteiras, pois somente dentro de uma estrutura territorial bem definida, que determina a estrutura para o exercício da soberania, o jogo democrático pode ser jogado. Foi isso que o jurista Bertrand Mathieu observou muito recentemente quando escreveu: “A democracia implica a existência de uma sociedade política, inscrita dentro das fronteiras e constituída por um povo composto de cidadãos ligados por uma comunidade de destino e compartilhando valores comuns”.
Neste sentido, não é coincidência que as democracias iliberais comecem a se multiplicar no exato momento em que a União Européia está em colapso devido à crise migratória. Nem é por acaso que essas democracias iliberais que vemos hoje na Europa Central e Oriental estão tentando se dotar de fronteiras dignas desse nome, como evidenciado pela substituição das barreiras através das quais estão lutando para conter os fluxos migratórios. Para o liberalismo, por outro lado, o princípio essencial é o do “laissez faire, laissez passer”: a livre circulação de pessoas, bens e capitais.
Este é um exemplo da antiga oposição entre a Terra e o Mar. Somente a Terra, de fato, pode conhecer fronteiras, enquanto elas não podem ser estabelecidas nos mares e oceanos. Os fluxos migratórios, como os fluxos comerciais e financeiros, pertencem ao mundo “marítimo” de fluxos e recusas, enquanto a política parece estar intrinsecamente ligada ao mundo “telúrico”, que requer fronteiras e linhas de frente.
Mas devemos ver também – e é aqui que vou terminar – que as fronteiras também são limites: elas dizem onde termina a autoridade política e onde começa a autoridade política e a legítima vontade dos cidadãos de ter sua personalidade, especificidade histórica, sua própria sociabilidade, ou seja, seus costumes, respeitados.
Hoje, porém, vivemos em uma época de falta de limites, ou seja, a negação geral de limites. Vivemos, poderíamos dizer, na era do “trans”: transnacionalidade, transfronteiras, transações, transsexuais, transparência, transgressão, transumanismo. O limite é a medida; o ilimitado é o excesso, e é também a indiferenciação, a hibridização, a erradicação de particularidades e das normas que a ideologia dominante há muito se propôs a desconstruir.
Esta ausência de limites encontra seu exemplo mais típico na própria natureza do sistema capitalista. A característica fundamental deste sistema é precisamente sua orientação para a acumulação sem fim no duplo sentido do termo: um processo que nunca pára e não tem outro fim que a valorização do capital, um sistema onde qualquer excedente é utilizado para se reproduzir e se expandir. Tudo o que possa dificultar a circulação de pessoas e coisas necessárias para a expansão planetária do mercado, começando pelas fronteiras, deve ser erradicado ou declarado inexistente. A lógica da expansão do capital não é fundamentalmente diferente do processo de abordar o mundo que Heidegger chama de Gestell ou maquinação (Machenschaft). Percebido como um objeto sem significado intrínseco, o mundo é interpretado como fundamentalmente explorável; é chamado a ser rentável e uma fonte de lucro, ou seja, “valor” no sentido econômico do termo. É esta ausência de limites, tanto no propósito como na prática, que faz do capitalismo um sistema baseado no excesso, a negação de quaisquer limites, preocupado apenas em produzir cada vez mais valor para aumentar e valorizar cada vez mais o capital.
Vocês notarão de passagem que a sociedade dos indivíduos é naturalmente uma sociedade de mercado, porque a falta de limitação do desejo e a inflação dos direitos respondem à falta de limites que é o próprio princípio da reprodução do capital. O homem “econômico” visa maximizar seu interesse assim como a Forma-Capital visa maximizar o lucro: ambos buscam expandir-se na categoria única do possuir.
Entre a noção de fronteira e a ideologia do capitalismo liberal, a contradição é, portanto, total. O surgimento de democracias iliberais confirma isto. Gostaria de dizer que aquele que poderia aprender a lição, já que conhece as críticas ocasionais ao liberalismo, é o Papa Francisco, que no entanto nunca perde uma oportunidade de pregar um acolhimento incondicional aos “migrantes”, sejam eles quem forem. “Devemos construir pontes e não muros”, diz Francisco (que está aqui em seu papel porque o povo de Deus não conhece fronteiras e um pontífice soberano é etimologicamente um pontifex, ou seja, um homem “que constrói pontes”). Mas esta é uma alternativa inaceitável. O Papa esquece que entre muros e pontes existem também portões, que podem ser abertos ou fechados de acordo com as circunstâncias, e sobretudo que em certos casos a ponte levadiça é a mais eficaz, que é baixada ou levantada para abrir ou fechar a passagem que permite o acesso a uma cidade ameaçada.
Agora é o momento de levantar a ponte levadiça.
Fonte: Institut Iliade