O Fado (Parte I) – A Alma de Portugal nas Notas Dolorosas do Fado

Escrito por Brunello Natale de Cusatis
O fado é, talvez, o maior patrimônio musical da cultura portuguesa. Tendo desde sempre mantido diálogo com a música brasileira, o fado é a mais autêntica manifestação artística da “Saudade”, conceito quintessencialmente lusitano (e, consequentemente, também enraizado na alma brasileira).

É bem sabido que as canções populares representam um fenômeno mais ou menos difundido em todo o mundo, terminando por configurar quais são os usos, costumes, tradições, em uma palavra, a cultura de um determinado país.

É provavelmente em parte verdade que a necessidade de expressar a própria felicidade ou tristeza cantando, com ou sem o acompanhamento de instrumentos musicais, “é uma questão de latitude, uma questão do sol. Quanto mais ao sul se vai, mais se ouve cantar” [Carvalho, 1984: 21]. Quanto à Europa, pensemos na França, Grécia, Itália e, sobretudo, na Península Ibérica, onde existe – por razões de caráter e histórico-culturais – uma grande variedade de canções e danças folclóricas, como o “flamenco” espanhol (mais especificamente andaluz) e o “fado” português (mais especificamente lisboeta e coimbrano).

No que diz respeito ao “fado”, ele pode ser definido como uma canção evocativa que expressa situações e estados de espírito particulares, personagens característicos, amores mais ou menos típicos de um ambiente ou de uma classe social. Sua transmissão espontânea, quase sempre oral, a preservou de influências estrangeiras marcantes e das modas mais extremas. Em outras palavras, sua evolução ao longo do tempo é autocontida, tendo acompanhado minimamente os outros fenômenos culturais de Portugal. Isto diz respeito acima de tudo ao “fado” não estereotipado, o chamado fado amador, às vezes improvisado, e não ligado a ambientes de gravação e teatro. Um tipo de “fado” que infelizmente hoje corre o risco de desaparecer por causa da mudança geracional e da intervenção cada vez mais intensa da mídia dominante.

Por definição, cultura significa tanto enriquecimento espiritual quanto intelectual. Isto explica porque “tradição” e “cultura” formam uma união, capaz de exercer uma função educativa em termos de aquisição e preservação do patrimônio cultural nacional. Está claro, é claro, como a própria tradição tende a ser transmitida pela cultura, que é então, mais do que qualquer outra coisa, a popular. No caso específico do “fado”, trata-se de um tipo de cultura popular urbana, originalmente apenas de Lisboa, mais especificamente de alguns de seus bairros.

Este fenômeno do canto e da música ao mesmo tempo, porém, transcende – e é aqui, talvez, que reside sua peculiaridade em relação a outros fenômenos similares no mundo – o campo da cultura de origem, colocando em questão também a chamada cultura oficial ou culta.

As maiores figuras literárias portuguesas de todos os tempos têm muitas vezes articulado seu trabalho sobre uma espécie de fatalismo (um sentimento, aliás, inato na maioria dos portugueses), ligado aos acontecimentos históricos do país, enfatizando a impotência do homem, mesmo em sua grandeza, diante do maior poder da Natureza, de Deus e, em última instância, do Destino. Os poetas portugueses de estatura internacional – sobretudo Luís de Camões e Fernando Pessoa – nos deixaram, em seus versos, impressões e sensações de intensa profundidade a respeito do Destino, evento limitante, mas nem sempre negativo, ao mesmo tempo em que destacam a perene dúvida que sempre assolou a humanidade, dividida entre a resignação supina e o desafio aberto ao Destino – que é, em suma, o significado do “fado” na tradição histórica e cultural portuguesa.

Em um “ensaio” intitulado “O ‘fado’ e a alma portuguesa” (1929) Fernando Pessoa escreve:

“Toda a poesia – e a canção é uma poesia assistida – reflete o que a alma não tem. É por isso que a canção dos povos tristes é alegre e a canção dos povos alegres é triste.

“O ‘fado’, no entanto, não é nem alegre nem triste. É um episódio de intervalo. A alma portuguesa o criou quando ela não existia e desejava tudo sem ter a força para desejá-lo.

“As almas fortes atribuem tudo ao Destino; apenas os francos confiam em sua própria vontade, já que ela não existe […]” [Citado em Serrão, 1979: 246].

As origens

As origens do “fado”, dada a absoluta falta de documentos que o comprovem, são muito vagas. Normalmente datamos sua aparição entre os anos vinte e trinta do século dezenove. A partir de então, e por algumas décadas, continuaria sendo um fenômeno isolado, típico de Lisboa e de seus bairros populares. Seu status atual como “canção nacional” deve-se a uma série de fatores que lhe permitiram estabelecer-se ao longo do tempo em praticamente todas as áreas sociais e geográficas de Portugal.

Segundo alguns, como no caso do musicólogo português Gonçalo Sampaio, o “fado” tem origens milenares, quase míticas, que remontam ao mundo druida [1] e às canções executadas durante os antigos festivais pagãos dedicados ao Sol [Osório, 1974: 18-19]. Outros afirmam que a cultura árabe [2] e os cantares provençais [3] tiveram um papel importante em sua gênese. Outros ainda o entendem como um produto da “saudade” do marinheiro embarcado nas caravelas que navegaram pelos oceanos desde o final do século XV [Costa, 1962: 136].

Além destas e outras hipóteses, hoje em dia é quase unanimemente compartilhada pelos críticos a existência de uma estreita ligação entre o “fado” e algumas expressões rítmico-musicais afro-brasileiras.

Em Portugal, na primeira metade do século XIX, as danças mais populares eram os passa-pés, a quadrilha e a valsa. Ao lado destes, e exclusivamente nos círculos populares, havia outros, alguns com um sabor exótico. É o caso do “lundum” ou “lundú”, uma dança muito ritmada e sensual, também acompanhada de canto, originalmente pertencente aos escravos africanos, que a exportaram para o Brasil. Lá ele seria modificado com o tempo, e depois desembarcaria em Lisboa no início do século XIX, logo se espalhando pelos bairros portuários da cidade [Carvalho, 1984: 25-26].

Outras expressões rítmicas e musicais afro-brasileiras já haviam desembarcado na capital portuguesa um pouco antes, e parece que Domingos Caldas Barbosa, conhecido como “Lereno”, um poeta mulato de origem brasileira, não era estranho à sua importação e difusão. Ele era bem conhecido em Lisboa no final do século XVIII como o cantor de um gênero musical, então em voga, a “modinha” [Moita, 1936: 32-33]. Esta era uma melodia extremamente triste e sentimental, também vinda do Brasil e capaz de influenciar, com sua letra amorosa, a sensibilidade da alma feminina.

É altamente provável que tanto o “lundum” quanto a “modinha” estivessem na base do futuro nascimento do “fado” – primeiro o fado brasileiro, com suas três modalidades de “batido”, “dançado” e “cantado”, e depois o fado português [Idem: 57]. De fato, os primeiros discos, também datados do início do século XIX, localizam esta expressão musical no Brasil, como uma dança e uma canção acompanhada pelo som do violão. Quanto a Portugal, e mais especificamente a Lisboa, é somente depois de 1830 que aparece o termo “fado”, juntamente com os de “fadista” e “mulheres de fado”.

Esta e outras informações fragmentárias não nos permitem traçar um quadro homogêneo do “fado”. O único ponto de referência certo é Maria Severa Honofriana, a cantora-prostituta, o mito, a figura mais importante do meio fadista da época [Sucena, 1992: 19-36], cuja morte prematura aos vinte e seis anos de idade, em 1846, combinada com outros dados, nos permite estabelecer, e antes desta data, a existência em Lisboa de uma dança e de uma canção, acompanhada da “guitarra” [4], já de forma caracterizada [Brito, 1983: 151].

Antes do século XIX, tanto os textos como os dicionários portugueses relatavam apenas o significado tradicional e latino do termo “fado”, o de “destino”. O significado do termo como representando um tipo de canção em seu próprio direito e, conseqüentemente, um novo gênero musical apareceria durante a segunda metade do século XIX. O primeiro dicionário a mencionar este significado data de 1878:

“”Fado”, poema do vulgo, de caráter narrativo, no qual é contada uma história real ou imaginária com um triste epílogo, ou os males, a vida de uma certa classe são descritos […]. Música popular, com um ritmo e movimento particular, que geralmente é tocada com a ‘guitarra’ e cujos textos são os poemas chamados ‘fados'”. [Sucena, 1992: 12].

As etapas evolutivas

Durante sua evolução, o “fado” foi apresentado sob múltiplos aspectos, e mais de um tem sido seus módulos narrativos. Tudo isso acarretou implicações morais mais ou menos veladas e, conseqüentemente, repercussões consideráveis na esfera social. Tão notável a ponto de despertar uma apreciação quase unânime e criar uma tradição que acabaria por se transformar não apenas em um produto para consumo turístico, mas também em um produto cultural de exportação. Vamos dar uma olhada nos estágios fundamentais desta evolução.

Pinto de Carvalho, autor da primeira monografia sobre “fado”, que morreu no início do século passado, fala de duas fases completamente distintas da evolução: a “popular espontânea”, que gerou um tipo de “fado” plebeu, produzido naturalmente e consolidado em lugares pitorescos e infames ao mesmo tempo; a “aristocrática e literária”, na qual o “fado” passou a ser cantado e tocado em ambientes freqüentados pela alta sociedade e pessoas cultas. O estudioso português fixa a passagem da primeira para a segunda fase no final dos anos 1860, período em que, entre outras coisas, a “guitarra”, originalmente um instrumento popular, fazia sua aparição nos salões de Lisboa, e o piano, originalmente um instrumento aristocrático, também era tocado nos cafés dos bairros. A segunda fase teria se originado, em essência, da descoberta que os aristocratas, naquela época frequentadores assíduos de tabernas e bordéis, fizeram do “fado”. Esta aristocratização foi muito construtiva para o fado, tanto em termos de quantidade quanto de qualidade. A segunda fase terminou por volta de 1880 [Carvalho, 1984: 93].

Podemos afirmar que às duas fases mencionadas por Pinto de Carvalho uma terceira e uma quarta fase seriam acrescentadas.

A terceira fase foi caracterizada pela diversificação social tanto dos músicos e cantores quanto dos lugares de atuação. O “fado” passou para o teatro, para a revista e para a ópera, e as primeiras partituras e gravações musicais apareceram. Ao mesmo tempo, em um ambiente popular, houve o nascimento das chamadas “cegadas” (apresentações teatrais de rua durante o carnaval, cenograficamente pobres), durante as quais também eram realizados “fados”. Esta fase, que terminou no final da década de 1920, desenvolveu-se durante um período de profunda crise política e econômica em Portugal, com o “Ultimato” de 1890, imposto pela Inglaterra, e a queda da monarquia (1910). Isto levou em parte à ideologização do “fado” com textos atentos às questões sociais [Brito, 1983: 155-158].

Por volta da década de 1930, começou a última fase, a mais próxima de nós historicamente e, em essência, ainda em curso. Nele, períodos de estagnação alternaram-se com reavivamentos surpreendentes, em uma época que não foi fácil, perturbada, devido às relações conflitantes que o “fado” teve, de tempos em tempos, com a censura, a classe política dominante, a mídia de massa, alguns detratores e um público nem sempre tão interessado quanto no passado. É o período do profissionalismo e da folclorização. Surgem as primeiras “casas de fado” e os primeiros restaurantes típicos, que junto com a comida e a bebida também oferecem a seus clientes a oportunidade de ouvir a “canção triste”, interpretada por artistas profissionais, com taxas contratualmente estabelecidas [Idem: 158-161]. Estamos testemunhando uma espécie de distorção do “fado”, como sempre acontece quando uma tradição é folclorizada, como resultado de seu afastamento de seus ambientes primitivos e sua conseqüente universalização. O amadorismo dá lugar à comercialização e à exploração turística. Assim, se por um lado, a tipificação segundo modelos pré-estabelecidos (“casas de fado”, restaurantes típicos, gravadoras) se dá em detrimento da genuinidade original do produto musical, por outro, tudo isso permite o surgimento dos melhores “fadistas”, os mais dotados vocalmente.

As temáticas

O “fado” além de por um tipo particular de música e canto é caracterizado também por temas específicos. Os principais são o “amor”, o “mar”, a “saudade” e a “tourada”.

O amor ocupa uma posição predominante no tema fadista, já que o “fado” nasceu como uma canção de amor. É um amor predominantemente heterossexual que, correspondido ou não, expressa e gera, de acordo com os casos, sentimentos de paixão, ternura ou arrependimento, amargura, ciúme. A representação mais recorrente deste tipo de amor nos textos fadistas é aquela em que o sentimento é contrastado ou frustrado pela distância ou separação dos amantes, resultando muitas vezes em melancolia e solidão, em “saudade”, sentimentos muitas vezes descritos usando expressões pungentes e uma terminologia lírica específica:

“Ao abandono / sem ti, sem nada, / como as folhas no Outono / caindo à beira da estrada / na minha vida / ando sem norte. / Sem ti, sinto-me perdida, / meu amor, até à morte” [Cit. in Barreto, 1959: 48].

Além deste tipo de amor heterossexual, há também o amor materno-filial, entendido como um vínculo puro, capaz, graças aos princípios morais ou preceitos religiosos aos quais se refere com freqüência e às emoções que transmite, de polarizar a atenção dos ouvintes. Às vezes a figura materna é sacralizada, quando identificada com Nossa Senhora, fundindo-se em um único elemento espiritual constituído pela santidade de ambos:

“Eu vi minha mãe rezando / aos pés da Virgem Maria. / Era uma santa escutando / o que outra santa dizia” [Cit. in Idem: 45].

Ou idealizada, quando forma uma união com sentimentos patrióticos, elevando a pátria ao papel de pai:

“Ó minha mãe verdadeira, / Pátria! Mãe da minha mãe: / doce tristeza solheira, / alto botão de roseira / das pátrias que o Mundo tem!” [Citado em Barreto, s. d. (1970): 384].

Em geral, o amor descrito nos textos fadistas nunca é plenamente realizado ou compreendido como um sentimento de realização. Porque o “fado” não é uma simples canção de puro entretenimento, mas uma expressão de humores particulares que forçam o ouvinte atento a refletir e aprender com as situações e tópicos narrados.

É bem conhecido que Portugal tem historicamente tirado seu sustento do mar, imposto por suas condições geográficas e por sua história, passada e presente. Um dos primeiros tipos de “fado”, se não o primeiro, do qual temos memória é o chamado “marujo” ou “marinheiro” [Pimentel, 1904: 269; Moita, 1936: 290-291], cujo tema principal é precisamente o mar, ou melhor ainda o oceano, sujeito/objeto de inúmeras aventuras reais ou imaginárias. Geralmente, nos textos fadistas, o mar é entendido como uma “realidade” que gera ilusão e esperança e, ao mesmo tempo, se opõe a eles. Reencenações de navegadores, grandes viagens, proezas épicas enchem os textos fadistas, seguindo a consciência, por parte de uma nação e de um povo, de ter um passado glorioso a defender e entregar à posteridade. Prova disso pode ser encontrada, não apenas nos muitos textos populares e anônimos, mas também nas obras de muitos poetas, alguns deles famosos [Barreto, s. d. (1970): 326-377].

Na era moderna, tendo os sonhos de glória sido reduzidos, Portugal continua a fazer uso do elemento marinho e a depender dele – muitas vezes em uma relação de amor/ódio – do ponto de vista alimentar e comercial. Assim, os textos fadistas de hoje incluem outros protagonistas. Não mais heróis (como Henrique o Navegador, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral), mas os pescadores empenhados diariamente, por razões de subsistência, a lidar com o oceano, um elemento que no imaginário coletivo e popular se configura como um universo autônomo, um dispensador do Destino tanto de alegria quanto de esforço e dor, e que não permite escapar da realidade, mas uma vida feita de ritmos apertados e marcada por eventos simples e essenciais, que muitas vezes terminam tragicamente. Isto explica porque no “fado” há um sentir de desventura iminente, do trágico evento, independentemente de sua ocorrência:

“Quando partiste, fugiu / o meu sonho derradeiro / Volta depressa navio / perdido no nevoeiro // Tu que conheces o mar / e o furor da tempestade, / podes talvez naufragar / nas ondas desta saudade”. [Citado em Barreto, 1959: 7].

O termo “saudade” é difícil para nós, italianos, de entender. Ela abrange uma ampla gama de sensações geradas pela essência interior do indivíduo. Quando dizemos que “saudade” é “a dor da ausência”, estamos naturalmente certos. É também verdade, porém, que tal significado é redutor ou, pelo menos, não transmite bem e completamente o que, por exemplo, um português ou um brasileiro pressupõe ao utilizar este termo. Normalmente, cada falante de português, qualquer que seja a classe social a que pertença, faz um uso comum, consciente da singularidade do termo, da variedade de sentimentos que ele representa, bem como das inúmeras interpretações que dele podem ser feitas ou produzidas, de acordo com os casos, as circunstâncias, os contextos em que é utilizado. Se quisermos resumir e parafrasear as palavras de Mascarenhas Barreto, podemos dizer que “saudade” expressa um sentimento de angústia e felicidade ao mesmo tempo, atua como uma ponte entre a memória do passado e do presente, entre o amor pelas pessoas ou coisas distantes, no sentido espacial ou temporal, e a esperança de seu retorno, entre um amor perdido e uma ilusão sonhada [Idem: 22]. Em italiano, é comum traduzir “saudade” como “pesar”, “tristeza”, “consolo”, “melancolia”, “nostalgia” – termos que, numa inspeção mais detalhada, não são sequer sinônimos uns dos outros, mas o de “saudade”, justamente por sua singularidade, sintetiza todos eles. Esta singularidade, por assim dizer, heterogênea em outras culturas, como a italiana, mas homogênea em português, justifica e explica o porquê do termo estar constantemente presente nos textos fadistas.

Homem, cavalo e touro são uma tríade indissolúvel para um dos espetáculos mais sentidos e amados em Portugal, a “tourada” ou “corrida” em castelhano. Esta “arte”, de origem muito antiga, quase pré-histórica, é conhecida e documentada desde a antiguidade clássica (pense no seu uso nos circos da Roma antiga). Com o passar dos séculos, ela evoluiu e foi codificada segundo esquemas precisos, regras, formas e figuras estabelecidas; tanto que as fases e movimentos do “toureiro”, a pé ou a cavalo (neste último caso ele é chamado de cavaleiro), podem ser comparadas às de um artista da dança [Costa, 1962: 167]. Em Portugal, em comparação com a Espanha (onde hoje a tourada é praticada com variantes e procedimentos mais sangrentos), a preferência vai para a tourada “a cavalo” – embora a tourada “a pé” não seja negligenciada. Provavelmente porque, no passado, era também uma arte aristocrática, praticada por muitos cavaleiros nobres que a viam como uma demonstração de coragem e preparação para a guerra.

Durante o século XVIII, ocorreu um evento lamentável que perturbou o ambiente da tourada portuguesa. Um nobre cavaleiro, filho do famoso Marquês de Marialva – naquela época o maior promotor da educação equestre em Portugal – foi estripado e morto pelo touro na presença de um grande público e do soberano [Barreto, s. d. (1970): 154-156]. O episódio suscitou discussões e críticas sobre a tourada, cujas regras e procedimentos foram posteriormente alterados para aqueles que ainda hoje estão em vigor: há uma proibição absoluta de matar o touro, cujos chifres são serrados e cobertos para garantir que não prejudiquem o ser humano tanto quanto possível, com o conseqüente aparecimento na arena dos forcados, toureiros amadores cuja tarefa é “pegar” o touro, ou seja, agarrá-lo pelos chifres com as próprias mãos e subjugá-lo. Bem, a existência do “fado” – pelo menos em sua origem – está intimamente ligada à tourada: toureiros, cavaleiros nobres e forcados tornam-se não apenas os atores das “praças de touros”, mas também os sujeitos e temas de muitos “fados” que exaltam a audácia de seus feitos [Idem: 150-169].

Estes são, portanto, os temas principais – amor, mar, saudade e tourada – que, juntamente com outros e uma complexa simbologia ritualizada, caracterizam o “fado” como uma expressão própria e original em relação às outras manifestações folclórico-culturais e de canto de Portugal. O elemento que os une é, desde as origens da “canção triste”, o da presença feminina. A mulher é o ponto focal, o centro de gravidade em torno do qual giram os sentimentos, situações, personagens e ambientes. Existem, portanto, numerosos, se não preeminentes, “fados” que têm a figura feminina como protagonista ou que levam a sua deixa. Entre estes, os “fados onomásticos”, isto é, entitulados ou dedicados a uma mulher em particular, na maioria das vezes real, mas também imaginária. Muito comuns são os chamados “da Severa”, “da Cesária”, “da Custódia”, só para mencionar alguns dos mais famosos “fadistas” do passado. Existe, entretanto, uma diferença não insignificante entre os “fados” mais antigos e os atuais. O “fado da Severa”, por exemplo, datável até cerca do final da primeira metade do século XIX e certamente póstumo, é construído sobre os tons celebrativos das façanhas e amores daquela fadista-prostituta. Pelo contrário, o “fado da Amália”, intitulado e dedicado à famosa Amália Rodrigues (1920-1999), não tem nenhum propósito apologético; ele também se apresenta como uma canção que presta homenagem a ela, e é tanto mais pessoal e exclusiva quanto é construída especificamente sobre as habilidades vocais da própria artista.

Pelo que foi dito até agora, fica claro que o conteúdo dos textos fadistas é muito heterogêneo, lidando mais com a vida cotidiana e, portanto, com sofrimento humano, amor infeliz, infortúnios, mas também com temas que não funestos, tais como festas de bairro, natureza, episódios religiosos mediados pelas Sagradas Escrituras e temas de compromisso social.

Artigos Seguintes

O Fado (Parte II) – Das Tabernas de Lisboa a Coimbra: Viagem às raízes do Fado

Notas

(1) Entre os séculos VIII e VI a.C. houve a invasão da Península Ibérica pelas populações celtas, com a chamada celtização de toda a península do noroeste, incluindo o norte de Portugal.
(2) “O trilhar do motivo monódico dos “fados” de nossos dias tem algo que nos faz lembrar a melopeia árabe” [Barreto, s. d. (1970): 42].
(3) Em particular o “plang”, uma canção simples e elegante, da qual descende tanto a “cantiga de amigo” (cantada por uma mulher, como é mais freqüentemente o caso do “fado” de Lisboa) quanto a “cantiga de amor” (cantada por um homem, como no caso do “fado” de Coimbra [Idem: 9-10].
(4) Um instrumento que não corresponde ao nosso violão – em português “viola” – mas é uma espécie de bandolim com uma ampla caixa de som e um fundo plano, com doze cordas.

Bibliografia

– Barreto, Mascarenhas, 1959. «Fado. A canção portuguesa». Gráfica Boa Nova, Lisboa.
– Barreto, Mascarenhas, s. d. (1970). «Fado. Origens líricas e motivação poética», Aster, Lisboa.
– Brito, Joaquim Pais de, 1983. «O fado: um canto na cidade». In «Ethnologia», ano I, n. 1: 149-184.
– Carvalho, Pinto de (Tinop), 1984. «História do Fado». Publicações Dom Quixote, Lisboa.
– Costa, Mário, 1962. «Danças e dançarinos em Lisboa». Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa.
– Moita, Luís, 1936. «O fado. Canção de vencidos». Empresa do Anuário Comercial, Lisboa.
– Osório, António, 1974. «A mitologia fadista», Livros Horizonte, Lisboa.
– Pimentel, Alberto, 1904. «A triste canção do Sul (subsídios para a história do fado)». Livraria Central, Lisboa.
– Serrão, Joel (introdução e organização), 1979. «Fernando Pessoa. Sobre Portugal, introdução ao problema nacional». Ática, Lisboa.
– Sucena, Eduardo, 1992. «Lisboa, o fado e os fadistas». Vega, Lisboa.

Fonte: Barbadillo

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