Quanto os conservadores brasileiros deveriam confiar nos EUA?

“Será que os bolsonaristas já não deveriam ter ciência de que não deveriam depositar confiança nos EUA? Não ensinaria a história o suficiente sobre a lealdade dos EUA a seus aliados?”

Depois que Donald Trump revogou as sanções Magnitsky contra autoridades brasileiras – incluindo o nêmesis do bolsonarismo, Alexandre de Moraes – lamúrias de todos os tipos invadiram as redes sociais, entoadas e balbuciadas por macambúzios bolsonaristas, agitando os punhos para os céus contra os EUA.

Eles, que passaram anos desfilando com a bandeira dos EUA em todas as suas manifestações patrióticas, sentiam-se traídos, injustamente abandonados por seu suposto novo Messias.

Desnecessário dizer que Trump nunca prometeu salvar o Brasil ou os bolsonaristas, e eu também já analisei criticamente essa tendência bolsonarista ao messianismo tresloucado.

Mas será que os bolsonaristas já não deveriam ter ciência de que não deveriam depositar confiança nos EUA? Não ensinaria a história o suficiente sobre a lealdade dos EUA a seus aliados?

Já Maquiavel, num sentido mais geral, alertou aos príncipes para que evitassem depender de apoio estrangeiro para tomar o poder. Segundo ele, um príncipe que ascendesse apoiado em forças exógenas seria perpetuamente fraco e dependente, seu poder seria frágil e poderia ser presa fácil de esquemas fora de seu controle.

Não obstante, como parece ser muito difícil para a maioria hoje em dia confiar em princípios gerais, apelar a padrões históricos talvez devesse ser mais eficiente, sem termos aqui a pretensão de sermos exaustivos.

1) Não poderia passar despercebido para qualquer conservador o fato de que ao fim da Segunda Guerra Mundial, em Ialta, os EUA pactuaram com a URSS para dividir a Europa em duas metades, traindo alianças construídas na Europa Oriental. O comunismo por essas partes não chegou organicamente, mas através da traição estadunidense.

2) Num momento imediatamente posterior, a partir do início da Guerra Fria, os EUA passaram a incentivar, através da Radio Free Europe e outras iniciativas semelhantes, os países europeus orientais a organizarem levantes contra a ocupação soviética, garantindo apoio. Quando isso aconteceu na Hungria, em 1856, os EUA recusaram qualquer tipo de apoio e deixaram a revolta ser esmagada.

3) O contexto na Invasão da Baía dos Porcos, em 1961, é semelhante. Os EUA treinaram e armaram milicianos com o objetivo de uma invasão de Cuba para derrubar o novo governo de Fidel Castro. O papel dos EUA na invasão seria garantir a superioridade e apoio aéreo aos milicianos. Assim que os invasores chegaram em Cuba, porém, os EUA negaram apoio aéreo e venderam seus aliados.

4) Já nos anos 70 foi a vez dos sul-vietnamitas. A partir de meados da década de 70, Washington corta o apoio militar ao governo criado por eles mesmos no sul do Vietnã e simplesmente os abandona. Antes disso, em 1963, a CIA havia orquestrado um golpe contra seu próprio aliado o Presidente do Vietnã do Sul Ngo Dinh Diem, assassinando-o.

5) Dos anos 50 aos anos 80 os EUA cultivaram inúmeras ditaduras ibero-americanas, com algumas delas particularmente instrumentais para a política externa dos EUA e dependentes de Washington, como os Somoza na Nicarágua e Noriega no Panamá. Somoza foi abandonado no momento em que ele mais precisava de ajuda contra os sandinistas; quanto a Noriega, por quase duas décadas ele foi um dos operadores de um dos esquemas mais importantes da CIA e do Departamento de Estado dos EUA, envolvendo narcotráfico, paramilitarismo e inteligência, no esquema dos Contras. Mas ao final dos anos 80, Bush pai invadiu o Panamá para prendê-lo.

6) A esses casos podemos acrescentar um bem recente e do qual todos se lembram, o abandono de Cabul pelos EUA diante do avanço do Talibã. Por duas décadas, os EUA cultivaram funcionários, autoridades, contatos, clientes e fornecedores entre os afegãos. Repentinamente, decidiu abandonar o país e, por conseguinte, abandonar todos os seus aliados, que seriam evidentemente executados pelo Talibã triunfante. Numa das cenas mais bizarras de anos recentes, esses aliados, contatos e clientes se agarravam aos aviões dos EUA para tentar sair, sem sucesso, do país.

Todos esses casos são notórios e há ainda muitos outros. Poderíamos voltar até mais no tempo, com as várias violações de tratados assinados entre Washington e tribos indígenas, ou mencionar o caso histórico dos curdos, o abandono dos xiitas na época da Guerra do Golfo, o caso dos hmong no Laos, e assim por diante.

Aliás, testemunharemos em nossos tempos (e, na verdade, já o estamos) o abandono de Vladimir Zelensky e da elite ucraniana por parte dos EUA, depois de tê-los instrumentalizado como bucha-de-canhão para tentar enfraquecer a Rússia.

Depois de tantos exemplos, só se pode explicar a fé irracional do conservador brasileiro nos EUA numa obra de desmonte das defesas cognitivas empreendido por influenciadores e intelectuais brasileiros pró-EUA, começando por Olavo de Carvalho, mas não se resumindo a ele.

Raphael Machado
Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 53

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