Um novo homem, lançado a um novo mundo. A epopeia bandeirante é o nascimento de um Brasil que ainda sonha em despertar, o verdadeiro herdeiro da Nova Roma.
O povo é formado por um gesto heroico monumental, um “ponto de partida da parábola de um destino”. Conforme se desenvolvem suas estruturas sociais e leis, o seu Estado, a força existencial de sua permanência reside no retorno ao princípio, relembrado e revivificado.
Por consequência do caráter monotônico de seu tempo, a memória histórica do sujeito moderno e pós-moderno tem muita dificuldade em acessar o seu passado como um momento real (que é superior ao factual) e integral, causando uma fissura entre o fenômeno histórico e a consciência histórica apropriada. Assim, os eventos do passado são amiúde lidos por teias morais anacrônicas e sofrem desconstruções injuriosas pelo cinismo materialista.
A figura do bandeirante que hoje lembramos e celebramos, o desbravador brasilíndio por excelência e destino, é uma das entidades da formação brasileira que mais sofre neste século pela mazela das más interpretações, ora por ignorância do contexto, ora por um caráter melindroso de quem visa derribar todas as estruturas simbólicas que formam o imaginário do povo e resgatam eideticamente seu vínculo.
Evidentemente, se como afirma Eliade a recitação do mito reúne o homem com o tempo sagrado e lhe permite reavivar os fundamentos de sua origem e caminho preconizado, os inimigos do povo, muitos deles de descendência do próprio, buscam o silenciamento da recordação, a cacofonia narrativa, a queima dos registros. Daí seguem-se a deturpação histórica, eliminação de documentos e supressão de relatos, até o descaso e destruição de monumentos. Isto é, o apagamento do patrimônio material e imaterial da identidade.
Muito além de quaisquer justificativas materiais colocadas sobre a origem e fundamentação das bandeiras, o bandeirante é a força motriz da formação brasileira. Um arquétipo da sua síntese mestiça e mística, que é chamado pelo pressentimento existencial a desbravar o interior da América e fazer dela o lar para um novo sujeito, para uma nova história.
Ele representa o primeiro rompimento autêntico com a mera continuidade colonial portuguesa (o calabouço de nossa pseudomorfose) e é o esforço em centralizar a figura do bandeirante como herói mítico fundador que nos é imperiosa.
Se a história do Brasil é composta por movimentos, uma figura que Aldo Rebelo evoca com oportuna visão, esses movimentos são marcados, talvez, não pelo desenvolvimento contínuo do Brasil propriamente dito, mas por esse embate dialético de uma essência nascente e uma forma decadente que aqui veio desaguar sua semente e herança, mas cuja elite resistiu e ainda resiste em reconhecer o próprio fim. É através dessas contradições fundamentais que se expressa a luta (streit) como desvelamento da identidade brasileira; enfim como filosofia do seu destino, plasmada desde a primeira bandeira.
Martin Heidegger sugere que esse momento fundamental é quando o Dasein coletivo está exposto aos deuses, algo também aludido pelo grande Vicente Ferreira da Silva, para quem o homem torna-se receptáculo de uma substância dos deuses e então assume seu caráter histórico-social autêntico. Na noomaquia de Alexander Dugin, esse é o momento noomáquico, o embate supraconsciente entre os logoi e a sua emergência no intelecto e na vontade.
Isso sugere que o bandeirantismo precisa ser lido por uma lente superior à materialista ou historicista, seja esta uma lente metafísica e existencial. Na história dos povos, a sua formação jamais é lida através de esforços humanos individuais, mas pela sua mobilização através de forças que o transcendem e motivam atos que atravessam as eras e se repetem, continuamente, revelando o fundamento do seu aparecimento.
Os bandeirantes primeiro demonstram a grandeza de nossa mestiçagem e sua visão como novo sujeito; incorporando a verticalidade áurea do reinado português com a sabedoria mística dos indígenas, seu simbolismo preenche nossa alma com a tenacidade imbatível e os ímpetos heróicos e anti-heróicos que compõe uma parte significativa do drama brasileiro, combinando a virtude e o pragmatismo.
Gilberto Freyre foi um dos primeiros entre nossos grandes intérpretes a reconhecer no bandeirante a assunção do mestiço como portador da brasilidade, mas via em seu esforço uma continuação do mandamento litorâneo português que reverenciava ainda a coroa. Foi Sérgio Buarque de Holanda que, propositalmente buscando refutar a tese freyreana, reconhece para além, no bandeirante, uma vontade fundamentalmente distinta, um potencial telurocrático apontado para o interior, distinguindo-se do olhar marítimo que ainda dominava o centro da logística colonial no litoral.
Por vezes essa missão interiorana levantou comparações possíveis entre a figura do bandeirante e a do cossaco russo, ambos elementos fronteiriços e de expansão. A diferença marcante é que o cossaco é incorporado ao já forte ethos dominante russo que representa seu império. No caso brasileiro, o bandeirante brasilíndio foi sendo incorporado primariamente por elites que ainda se encontravam num conflito ideológico e político com a própria possibilidade de uma identidade local.
Entre os ecos presentes, a proximidade nas datas não representa mera coincidência: notem que a guerra contra o terrorismo do tráfico, hoje, evoca muitos elementos da epopeia bandeirante.
O povo se alinha com a força policial que, composta também pelos seus, arrisca a vida em guerrilhas armadas contra uma força “nativa” embrenhada nas matas nativas e de pedra, politicamente inclinada a surrupiar territórios inteiros, força essa defendida pela mesma linha ideológica que olha para o bandeirante como um criminoso colonial que nada fazia além de pilhar, estuprar e matar.
O policial, civil ou militar, se vê numa missão extremamente complexa de reconquista da ordem e da integridade territorial nacional à revelia de projetos políticos entreguistas que manipulam e minam seus esforços, incluindo a rejeição do uso de força militar nacional nessa missão tão importante.
E quando elites políticas assumem o lado desses esforços, o fazem com o mesmo caráter artificial com que as elites se aproveitaram do bandeirante em outros tempos. Hoje essa luta não se restringe ao Rio de Janeiro, onde mais a percebemos. Ela é urgente em todo o território nacional, contra diferentes tipos de banditismo e terrorismo político e territorial.
Como no princípio, também agora o Brasil precisa e sempre precisará ser bandeirante, pois é isso que corre em sua alma. Uma bandeira contínua na busca pelo elixir, pelo ouro, pela terra prometida de nossa saudade… a Nova Roma.








