Frankenstein; ou, O Prometeu Pós-Moderno

Releitura cinematográfica de uma das obras mais clássicas do horror gótico, o Frankenstein de Guillermo del Toro foi ansiosamente aguardado por entusiastas do gênero ao combinar uma narrativa celebrada com um diretor e roteirista consagrado em sua arte. Mergulhemos então na essência desta nova adaptação e indaguemos sobre o que suas particularidades revelam sobre como o imaginário deste mundo olharia hoje para o mito prometeico de Mary Shelley.

A obra

Uma das obras seminais do horror gótico, Frankenstein; ou, O Prometeu Moderno é uma estória notável pelo alcance imagético e filosófico permitido, embebida fartamente no romantismo alemão e nas longas conversas sobre ciência e esoterismo das quais Mary Shelley foi entusiasmada participante.

A obra representa uma incursão em elementos místicos e estruturais do imaginário histórico através de um reordenamento moderno. A natureza, incluindo a humana, a criação, a culpa, a húbris, conhecimento, ambição e danação, todos são temas universais que aqui são reincorporados nesta roupagem horrífica e, no limite, pessimista.

Com o tempo e sucesso, ela foi incorporada pelo fenômeno tardiamente moderno e pós-moderno que denomino “culto ao horror”, em que este estilo artístico é empregado e consumido como ponte para a escuridão do inconsciente através das ramificações entre os reinos da morte, da treva e do sonho. Esferas cuja emancipação ocorre posteriormente aos danos do iconoclasmo iluminista e o corte que este faz das dimensões verticais da existência.

Isso se verifica, por exemplo, em apesar do nome da obra tratar do seu personagem mais trágica e complexamente humano, o mesmo ser continuamente atribuído, na memória popular, à figura inominada do Monstro, a criação maldita de Victor Frankenstein. Como filho que se apropria do nome, o monstro é reconhecido como o verdadeiro portal para o horror e suas imagens primordiais, enquanto o homem é esquecido como o vilão de uma humanidade corrupta.

O Prometeu Moderno é, de fato, Victor. O homem que rouba a chama da criação sem conceber o alcance de quaisquer consequências e é punido em sua húbris pela própria criação atormentada, lançada ao mundo e impreterivelmente apartada deste. A criatura, que combina os arquétipos do bom selvagem com a tortura existencial do leproso social, não é necessariamente vítima, mas parte de um ciclo narrativo de vingança e perda.

No cinema

As iterações cinematográficas de Frankenstein sempre tiveram dificuldades em captar com a devida acuidade as naturezas monstruosa e humana da criatura. Ela era ora muito mais horrenda do que o descrito por Shelley, ora desprovida de inteligência, sendo capaz de pouco mais que urros e murros. A intenção tornava-se menos a exploração dos temas interiores e filosóficos da obra, mas o aproveitamento da ideia do monstro como válvula da escuridão violenta. Algumas exceções obtiveram mais acesso ao conteúdo psicológico do personagem, como o monstro de Penny Dreadful, embora ali ele fosse apenas um participante de uma trama mais expansiva.

Inobstante, a expectativa era muito mais alta quando anunciada a adaptação cinematográfica de Guillermo del Toro, lançado agora no início de Novembro. Isso se deve tanto ao histórico de del Toro como diretor e roteirista de fantasia e terror, um habilidoso manipulador do grotesco e inominável que reside nas sombras, ao mesmo tempo que é capaz de conferir à própria natureza monstruosa de suas criações uma profundidade existencial digna. Além disso, trata-se de um projeto de amor artístico, obstinadamente perseguido ao longo de 30 anos… uma epopéia frankensteiniana, ao seu modo.

O Monstro de del Toro é uma vivificação bastante criativa, incorporando a feiura e uma certa delicadeza como fonte de reflexão acerca da natureza fundamental da criação, adequadamente incorporando a limitação inicial deste homúnculus lançado ao mundo e rejeitado até sua adoção e educação, quando adquire o caráter reflexivo e letrado que tanto evadiu as adaptações precedentes.

O diretor também se propôs corajosamente a um tipo de produção que detêm cada vez menos espaço no cinema, ao abandonar a onda massiva de efeitos digitais em favor de efeitos práticos e longas preparações com figurino, cenário e artefatos. Trata-se de um importante gesto na direção não só da autenticidade criativa, mas um reavivamento da noção de trabalho como envolvimento direto entre artista e arte.

O resultado não poderia ser mais visualmente espetacular. De modo semelhante ao realizado pelo já aclamado diretor de terror Robert Eggers, del Toro propicia uma imersão onírica no contexto histórico e no mundo fantástico e gótico, reservando a todos os elementos centrais estéticos da obra o seu devido posicionamento e grandeza, com a fotografia sendo particularmente notável e colossalmente opressora, ao retratar simultaneamente uma natureza deslumbrante e calabouços sombrios num contraste equivalente e grandioso. Nota-se um cuidado louvável também em reverenciar obras clássicas e consagradas em posicionamento preciso e cativante.

De fato, pode-se aproveitar a alusão a Eggers de outro modo. Assim como no caso deste Frankenstein, o Nosferatu de Eggers também é um trabalho de amor artístico ao qual o diretor ansiava dar vida e cujo resultado é uma experiência sensorial como poucas vezes vista no universo do horror gótico.

Em via contrária, porém, se o Nosferatu de Eggers foi criticado por oferecer pouco além de uma homenagem estética e historialmente impecável do arquétipo vampírico, sem dar-se o direito de alçar voos narrativos mais ousados, o Frankenstein de del Toro é uma releitura bastante pessoal sobre a obra original, alterando, criando e eliminando elementos do texto para acomodar um novo momento historial, assumindo uma posição mais alinhada com as essências obscuras do mundo contemporâneo.

O Prometeu pós-moderno

O horror de Frankenstein não é como geralmente tratamos o horror. Ele está no impacto visual do grotesco e na tensão trágica, sim, mas o horror de del Toro é acima de tudo dramático. O filme está muito mais colocado dentro da dimensão da intimidade psicológica do que no niilismo pessimista que aterroriza pelo desespero.

O roteiro preparado por Guillermo del Toro faz justiça à sua fama e performa com a mesma fluidez de outros grandes filmes de sua carreira, como Labirinto do Fauno, Pinocchio e A Colina Escarlate. É bem desenvolvido e intuitivo, apesar de nos pegar pela mão em dois momentos bastante inoportunos. No entanto, o que acho digno de enfatizar são as mudanças que fazem desta obra uma releitura muito mais pós-moderna do texto original, e que refletem um cenário mais amplo.

A primeira e mais notável dessas mudanças está na relação entre Victor e a Criatura. Na obra original, Shelley foca na desgraça do próprio Frankenstein pela sua obsessão alquímica e vitalista não contra a morte, mas pela possibilidade de conquista da vida. Há um claro elemento de crítica ao antropocentrismo e o roubo dos deuses, especialmente pela conquista científica sem limites éticos e morais transcendentes. O resultado é que os dois personagens passam por um conflito trágico, em que a sede de vingança da criatura logo a leva na direção do assassinato, da mentira, do subterfúgio. A natureza é corrompida pela própria possibilidade de humanidade decaída.

Para del Toro, esses elementos são substituídos por um reforço da figura do bom selvagem condenado que é constantemente ferido pela rejeição de seu criador, de outros humanos, pelo infortúnio com a própria natureza e pela crueldade e mentira. O monstro é humanizado para o nível mais puro e até infantil, enquanto o humano é levado ao limite da sua crueldade, o inferno do outro. Esse reequilibrio ontológico remete antropologicamente às ontologias amazônicas de Viveiros de Castro e a necessidade de reimaginar as fronteiras da identidade do humano e do animal, da natureza e da cultura, do eu e do outro. Quem é mais humano? E será o humano civilizado? Será o civilizado, humano?

Para aprofundar, a infância de Victor é aqui psicologizada pela lente analítica do abandono paterno e a confusão edípica, levando-o ao estágio obsessivo não pela busca do transcendente, mas pela quebra com o reino da morte.

Tudo isso reflete uma horizontaliação na imanência, também enfatizada pelo caráter ainda mais cientificista do estudo de Frankenstein, aqui praticamente despido dos elementos esotéricos e alquímicos que Shelley evocava.

Outra mudança significativa é a opção por fazer de Elizabeth a cunhada de Victor, por quem ele adquire sentimentos amorosos, e introduzir o personagem de Christoph Waltz, Henrich, tio de Elizabeth e patrocinador dos experimentos de Frankenstein. Del Toro realiza assim uma aproximação mais clara do personagem com o espírito faustiano do qual já é uma forte representação. Fazendo do tio seu Mefistófelis cujo acordo sela o destino de Victor e de Elizabeth a Margarida que o mesmo anseia possuir e assim potencialmente corromper, o diretor fortalece a monstruosidade do doutor obcecado pela conquista, mas jamais satisfeito com ela.

A personagem de Elizabeth, em si, incorpora um arquétipo feminino por quem del Toro aparenta ter grande afeto, desde obras anteriores, que seja uma sacerdotisa de Cibele. Sua inadequação e mistério se relacionam intimamente com os elementos ctônicos reprimidos, o que a aproxima tanto por uma via maternal quanto erótica da criatura que percebe também como alma incompreendida em um mundo dominado pela guerra e pela vontade. Isso se apresenta fortemente na mudança de período da obra, da emergência da sociedade industrial para o período da guerra na Crimeia, incluindo a seleção dos corpos para o experimento ser feita diretamente no campo de batalha.

Elizabeth e Heinrich personificam a conflituosa relação de Victor com, respectivamente, a vida e a morte. É através da percepção de que o doutor se aprofunda cada vez mais na sua relação aborrente com a morte e a sede pela conquista dessa que Elizabeth afasta derradeiramente a possibilidade de sua danação. E é o destino de ambos estes personagens, assim como de William, o irmão de Victor, que selam sua queda vertiginosa e mergulho na violenta luta contra sua criação até os confins da terra.

O Frankenstein de del Toro é, portanto, uma releitura do original em que a atitude de aprisionamento do transcendente se aprofunda ainda mais, agora desde um mundo em que o alto já está condenado e o mergulho é às profundezas ctônicas que emergem vindicadas pela caracterização de possibilidade roubada: da pureza tolhida, desejos reprimidos e uma eternidade perdida. A conciliação final entre criador e criatura, que Shelley deixara suspensa em função da tragédia anunciada e necessária para representar o destino esvaziado, representa a autorização final para que essa existência até então tida como grotesca e incapaz atinja sua própria autenticidade.

Frankenstein é uma obra cuja mitanálise é essencial: O homem de Shelley queria superar Deus ao roubar a centelha da vida. O homem de del Toro nega ao divino a criação e busca se apropriar da morte que referencia como símbolo da tirania metafísica.

O monstro de Shelley era a consequência trágica da húbris humana, uma criatura permanentemente sem lugar, cujo destino é ligado ao criador intimamente. O monstro de del Toro torna-se, para ele, mais humano que os humanos ao sofrer com a crueldade da cultura, assim como no mito liberal.

A obra de Shelley denuncia a essência decadente do homem moderno que emergia. Del Toro termina de enterrar esse homem moderno e proclama a pós-humanidade do não-homem.

Augusto Freddo Fleck
Augusto Freddo Fleck

Gaúcho, dissidente, bacharel em Ciências Sociais e tradutor.

Artigos: 636

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