Nietzsche oferece, para além de todas as vãs tentativas de categorização, uma teoria política sui generis: uma ordem orgânica, hierárquica, em que todos encontram seu lugar e podem viver uma vida realizada e feliz, segundo sua natureza.
A filosofia política de Nietzsche resiste a classificações fáceis. Rejeitando tanto o igualitarismo progressista quanto o reacionarismo tradicionalista, ele projeta uma sociedade ideal marcada por uma estratificação funcional dos indivíduos, com base em sua natureza, vontade e força criadora. Nesse cenário, a hierarquia não é opressiva, mas afirmativa: garante não só o florescimento dos grandes espíritos, como também assegura uma forma legítima de felicidade às almas mais passivas — aquelas que anseiam por segurança e sentido. Por este motivo Nietzsche não cabe facilmente em categorias políticas tradicionais como “conservador”, “progressista”, “reacionário” ou “revolucionário”. O leitor atento de suas obras tropeçará a cada tentativa de localizá-lo utilizando os marcos da teoria política clássica. Justamente porque, como todo grande pensador original, estamos diante de uma novidade radical do pensamento, uma teoria sui generis, dotada de força, vitalidade e sentido próprios. Nietzsche pode ser considerado um conservador progressista, uma vez que ele prega uma revolução nas formas de entender e organizar a realidade, mas justamente para que a classe dos senhores dotados de um poder muito específico, a capacidade de compreender e controlar, ou seja, os filósofos e os fortes de temperamento, se coloquem à frente da humanidade, governando para manter a ordem social capaz do verdadeiro progresso. Para ele, o erro está em deixar no comando os sacerdotes ou os cientistas, que são presas da fraqueza do ceticismo ou da falsificação do mundo real pelo idealismo. Ele é crítico tanto da moral religiosa-sacerdotal (baseada no ressentimento, negação da vida) quanto da ciência positivista (vista como uma nova forma de niilismo e como incapaz de fundar valores), mas não da ideia de progresso e da ciência em geral. Em Alguns momentos parece reacionário, quando aplaude as formas tirânicas de governo, e em outras parece muito progressista quando aplaude a revolução francesa, de modo que poderíamos dizer que ele é um conservador progressista. Seu pensamento articula elementos que podem parecer, ao mesmo tempo, radicais, progressistas e elitistas. Ao tensionar os limites dos conceitos de “conservadorismo” e “progressismo”, propõe-se aqui interpretar Nietzsche como um conservador progressista trágico: alguém que vislumbra uma ordem hierárquica estável como condição do progresso humano e da felicidade diferencial, tal como em Platão, mas reformulada à luz da vontade de potência e da crítica ao niilismo moderno.
Nietzsche propõe uma reavaliação de todos os valores, o que é radical. Ele quer destruir as ilusões herdadas do platonismo, do cristianismo e do cientificismo moderno — todos acusados de negar a vida em favor de construções idealistas ou niilistas. Essa destruição não é defendida pela destruição em si: ela visa abrir espaço para a afirmação da vida, para uma nova forma de existência regida não pelo ressentimento (como nas morais de escravos e sacerdotes), mas pela criação ativa — que ele associa aos “espíritos livres” ou filósofos do futuro. Ou seja, é num primeiro momento uma revolução ontológica, ética e estética, mas não igualitária ou democrática. Esta primeira constatação tem feito todos os leitores progressistas, vinculados à democracia liberal, taxarem imediata e descuidadamente o filósofo como retrógrado, elitista, fascista. Contudo, o verdadeiro papel atribuído à elite dirigente — senhores, filósofos, artistas criadores – escapa a eles. Nietzsche deseja que a elite espiritual e criativa (não necessariamente a elite política ou econômica tradicional) composta por indivíduos fortes, capazes de criar valores e viver sem ilusões metafísicas — os “tipos nobres”, os “senhores”, em oposição aos “escravos” do ressentimento, assuma um papel de liderança sendo colocada em seu devido lugar natural. Se às vezes elogia formas tirânicas (no sentido de concentração de poder em indivíduos fortes), tem posições ambivalentes sobre a Revolução Francesa. Ao mesmo tempo em que critica Rousseau, a igualdade e os ideais da revolução (porque vêm do ressentimento e da compaixão), admira a força dionisíaca do levante de 1789, o caos criativo, a transvaloração violenta que ela representa. Isso mostra que Nietzsche não é reacionário no sentido tradicional: ele não quer restaurar nenhuma ordem antiga. Mas também não é progressista no sentido moderno, de busca por justiça social ou emancipação universal. Ao menos não como estes conceitos são entendidos pela tradição liberal e socialista.
Pensar Nietzsche como “conservador progressista” só é possível se entendermos “conservador” no sentido de querer preservar e exaltar os instintos fortes, afirmadores da vida, que existiram em aristocracias antigas — ele se inspira nos valores da Grécia pré-socrática e da nobreza romana. E “progressista” no sentido de querer uma revolução cultural e espiritual, superando o niilismo moderno e criando novos valores, que contribuam para uma ordem social harmônica e feliz para todos. Assim como Platão, imagina uma sociedade ideal regida pela casta dos senhores mas na qual cada um ocupa o seu lugar por natureza, indicado pelo seu temperamento dominante (que é inato para ele mas também pode ser desenvolvido pela vontade, como aparece em vários trechos ambíguos da sua obra), no melhor ordenamento para garantir o bem e a felicidade de todos, assegurando a estabilidade para o progresso da ciência, que representa o acréscimo sempre maior de poder e controle sobre a natureza. Nietzsche, assim como os progressistas portanto, projeta um tipo de ordem hierárquica ideal baseada na natureza dos indivíduos (temperamento, força de vontade, capacidade criativa), mas com finalidades bastante distintas das modernas noções de justiça, igualdade ou emancipação social. Não defende uma hierarquia tradicional ou estática (como o conservadorismo burguês ou aristocrático do século XIX), mas sim uma ordem orgânica, baseada em tipos humanos que ele vê como naturais — mas também passíveis de serem formados, educados ou refinados por meio da vontade, do sofrimento, da superação. A ideia de casta por temperamento ecoa os textos de Platão, com um acréscimo importante: a natureza é fundamento para a estratificação social, mas não é herdada geneticamente pelo sangue e a vontade e o destino também a moldam, havendo portanto mobilidade e intercâmbio. Nietzsche recusa o progresso como uma marcha moral ou civilizatória universal e progressiva (como no liberalismo primevo e no socialismo), mas aceita um tipo de progresso trágico: o crescimento da vida como potência, intensidade, criação. Ele quer uma cultura forte, que gere grandes homens (filósofos, artistas, criadores de valores) e uma ordem que permita a estabilidade necessária à criação, à superação e à ciência — quando ela serve à vida, e não à sua negação; quando ela é, numa palavra, instrumento dos filósofos. Assim como Platão Nietzsche parece sugerir que uma sociedade ordenada segundo os tipos naturais permitirá que a cultura floresça — e que os “filósofos do futuro” possam conduzir o destino humano. Nietzsche é portanto “progressista” em um sentido aristocrático e trágico. Ele quer a superação da mediocridade coletiva em mundo onde os grandes possam florescer e onde o restante da sociedade funcione como base para essa cultura elevada, não como massa igualitária. Esse progresso não é democrático, mas é civilizacional. Se entendermos progresso como ascensão de formas mais elevadas de vida, não como inclusão, igualdade e justiça equitativa. Seu projeto visa a criação de uma ordem dinâmica, baseada na natureza e na vontade; a formação de uma casta de criadores, que guia a cultura para o progresso e o conforto de todos, e a estabilidade necessária à criação verdadeira. Por isso, Nietzsche talvez seja melhor descrito como um progressista aristocrático ou um idealista trágico da cultura — alguém que quer um novo tipo de civilização, mas baseado em princípios que negam os valores modernos de igualdade e compaixão.
É importante enfatizar a felicidade geral que essa ordem geraria. Nosso pensador define que as almas passivas, de escravos, que serão comandadas, serão também felizes. Ele trabalha com uma noção de uma felicidade adequada aos diferentes tipos humanos, e não uma felicidade universal, homogênea, igualitária. Há uma “felicidade dos fracos”, a maioria das pessoas não deseja liberdade criativa ou responsabilidade radical, mas sim segurança, estabilidade, sentido dado de fora por outrem. Os fracos precisam, desejam mesmo, um timoneiro forte. Ele critica a postura niilista ou ressentida do temperamento escravo tão somente quando ela se apodera das classes dirigentes por natureza, os criadores, os fortes e os filósofos — mas não nega que este temperamento possa proporcionar satisfação, até mesmo felicidade — desde que as pessoas que dispõem do temperamento de manada aceitem sua natureza e seu lugar de comandados. Essa “felicidade passiva”, que seria considerada alienada por correntes modernas, é para Nietzsche uma forma legítima de realização para almas reativas, desde que não interfiram na ordem cultural superior nem tentem impor seus valores (como a compaixão universal, o igualitarismo ou o ressentimento) aos fortes. Isso lembra muito Platão na República, em que a justiça é cada parte da cidade fazendo o que lhe é próprio — e só nessa harmonia, todos serão felizes à sua maneira: os governantes são felizes governando com sabedoria; os guerreiros, defendendo com coragem, e os trabalhadores, produzindo com temperança e satisfação. Nietzsche inverte os valores de Platão contudo: recusa o idealismo e o bem em si, mas mantém a ideia de que a ordem natural bem estruturada é a condição para a felicidade proporcional de cada tipo de alma. Nietzsche é portanto um idealista trágico da felicidade diferencial. Ou seja: acredita em uma forma de felicidade geral, mas é uma felicidade desigual, não uniforme. Cada tipo humano realiza a sua felicidade de acordo com sua função ontológica na ordem da vida: os fortes criando, dominando, assumindo o peso da liberdade; os fracos, obedecendo, sendo protegidos, aceitando uma vida com sentido fornecido do exterior. E essa ordem, se bem estruturada, evita o ressentimento, o niilismo e o caos, que seriam fontes de infelicidade para todos. Nietzsche se pretende arquiteto de uma ordem funcional da felicidade. A chave é que essa felicidade não nasce da igualdade, mas da diferença reconhecida e bem organizada.
Nietzsche não é progressista nem conservador, mas há sim algo que poderíamos chamar de “conservadorismo progressista nietzschiano” — uma revolução para restaurar a força aristocrática da criação e do poder vital, e não para instaurar igualdade, compaixão ou racionalismo científico. Apontemos a injustiça de taxa-lo como um defensor das formas de tirania de governo, justamente porque nas tiranias as maiorias são predadas e exploradas pela casta minoritária dirigente, não sendo nunca felizes mas oprimidas. Em Nietzsche, a classe dirigente está ocupando o seu lugar devido em benefício da ordem ideal, e todos são felizes como podem. É quase uma utopia comunista, se abstraímos toda a noção de igualdade radical. Nietzsche pode ser incluído entre os pensadores da quarta teoria política (QTP), uma vez que está em desacordo tanto com os liberais quanto com os socialistas, quanto com os fascistas (embora pudesse elogiar nos fascistas o predomínio da autoridade e da força, nos socialistas o progresso da ciência e a preocupação com a felicidade geral, e nos liberais a capacidade e a força inventiva de criar e impor novos valores, desde a revolução francesa). O que ele busca é uma forma muito particular de teoria política que articula todos os termos. A ordem social aparece em sua obra como expressão do temperamento individual: uma espécie de hierarquia vital é estabelecida. Nietzsche projeta uma hierarquia funcional da sociedade, fundada na constituição psicológica dos indivíduos: os senhores (força criativa, vontade de poder) e os escravos (mentalidade reativa, ressentimento). A hierarquia, para ele, não decorre de privilégios arbitrários, mas de naturezas distintas que dão forma à sociedade organicamente. A moral dos senhores afirma-se na criação espontânea de valores e na expressão da potência, enquanto a moral dos escravos, baseada no ressentimento, recusa essa afirmação. A sociedade ideal, assim, seria aquela em que cada indivíduo ocupa o posto natural correspondente à sua constituição, fornecendo à cultura a estabilidade necessária para florescer. Haveria portanto felicidade na hierarquia: alegria de estar no lugar certo. Nietzsche reconhece que muitos preferem a felicidade passiva, ligada à segurança e à obediência — contanto que voluntárias. Essa forma de felicidade é legítima na medida em que corresponde ao tipo humano em questão — alicerçando, inclusive, a ordem social que garante a liberdade criadora dos mais aptos. A analogia com Platão é clara: a justiça está em cada parte cumprir sua função, gerando felicidade para o todo.
Nietzsche nunca deixa de valorizar o progresso científico e cultural, sobretudo quando este se subordina à vida criadora e à potência de criação de valores. Ele repudia a ciência fria que desvaloriza o sentido vital, mas reconhece o progresso científico como elemento indispensável ao avanço da filosofia e da cultura. Assim, propõe uma utopia aristocrática em que Ciência, Filosofia e Arte colaboram sob liderança criadora, gerando uma civilização mais vital, intensa e produtiva. É incomum Nietzsche sustentar o autoritarismo opressor das tiranias históricas. Ele alterna elogios à autoridade e à força, sim, mas critica a opressão que serve a interesses mesquinhos da minoritária classe dominante. Num regime genuinamente tirânico, a maioria nunca será feliz — apenas explorada. Na ordem nietzschiana, não: há lugar para a realização de todos conforme sua natureza. A acusação de tirania contra Nietzsche falha ao ignorar que sua elite não explora, mas cria sentidos, assegura ordem e permite que cada tipo humano realize seus valores. O ideal nietzschiano contudo não propõe uma felicidade uniforme, mas uma felicidade específica para cada tipo ontológico — uma correspondência adaptativa que evita o ressentimento de uma maioria alienada. O progresso, nesse contexto, é múltiplo: cultural, individual, coletivo — sem sacrificar a diferença, mas estabelecendo-a funcionalmente.
A Quarta Teoria Política, articulada por Alexander Dugin, propõe-se como alternativa ao liberalismo, socialismo e ao fascismo. Nietzsche antecipa muitos elementos dessa teoria. Contra os liberais: rejeita o igualitarismo abstrato, mas reconhece a capacidade criativa e inventiva do liberalismo — especialmente desde a Revolução Francesa (como espírito inventivo da criação de valores). Contra os socialistas: recusa o coletivismo, mas valoriza o progresso científico e a felicidade geral. Contra os fascistas/nacionalistas: rejeita a massificação e o totalitarismo do Estado, embora elogie a autoridade e a vontade de poder como expressões da energia vital. Nietzsche oferece, assim, uma teoria política sui generis: uma ordem orgânica, hierárquica, em que todos encontram seu lugar e podem viver uma vida realizada e feliz, segundo sua natureza. Os progressistas que pretendem ver em Nietzsche um pensador aliado do fascismo e do conservadorismo reacionário se surpreenderiam ao encontrar elementos antinacionalistas candentes em sua obra, na medida em que projetava uma ordem geopolítica divida em blocos cosmopolitas, possivelmente absorventes de unidades nacionais. Tratar-se-ia de imperialismo? Da conquista do mundo pela raça de senhores, para o estabelecimento da ordem social que discutimos, a nível planetário? Este sentido de progresso nietzscheano está presente em uma série de pensadores do socialismo e do liberalismo igualmente, e se diferencia sobremaneira da expansão imperialista do fascismo, na medida em que esta conquista não tem como mola propulsora a ideia de produzir felicidade geral e progresso sobre as nações dominadas.