O caso do Léo Lins acendeu a discussão sobre o “humor”, o “humor negro”, “a pós-ironia” e outros temas correlatos, especificamente no sentido dos “limites do humor” e se piadas devem se submeter aos rigores da lei como declarações sérias e potencialmente perigosas.
Uma discussão sobre os limites do humor, porém, passa necessariamente por uma breve reflexão sobre a função social do humorista, do comediante, remetendo-nos necessariamente para a figura que emerge como um de seus principais predecessores, o bobo ou bufão.
Nos comentários das últimas semanas, a posição assumida pelos progressistas gira em torno da tese de que o comediante deve estar encarnando necessariamente um “personagem” para poder fazer graça, bem como que a legitimidade do humor está atrelada ao seu “alvo”: o comediante deve se limitar a zombar dos “ricos” e “poderosos”, jamais dos “oprimidos”.
Essas regras são integralmente inventadas por uma sensibilidade moralista politicamente correta contemporânea, porém, e não guardam qualquer conexão com a atividade do “humorista” tal como desenvolvida ao longo de séculos.
Agora bem, tratando do bufão ou bobo, ele remete à figura arquetípica do “trapaceiro”. E apesar de não ser o escopo aqui abordar esse simbolismo, é interessante ressaltar o papel do “trapaceiro” como uma figura liminar que se apoia no “entre”, transitando entre os extremos, um agente do caos e da heresia que renova através da destruição e da ambiguidade. Essa existência liminar pode ser, também, uma porta para a sabedoria. No filme “O Homem do Norte”, por exemplo, Heimir é um “tolo sábio” que exerce, inclusive, o papel de “iniciador” do jovem Amleth.
Enfim, apesar do bufão nascer como uma derivação do comediante do teatro antigo, já na Antiguidade tardia o comediante havia se desvinculado da necessidade de estar interpretando um “personagem” e subsistia como um provedor autônomo de entretenimentos diversos que dará origem ao bobo ou bufão, figura já suficientemente completa e estabelecida em suas funções notórias no século XII nas cortes feudais.
De um modo geral, o humor do bufão se baseava majoritariamente em entretenimentos simples envolvendo malabarismo e acrobacia, bem como no grotesco e no obsceno. Flatulências musicadas e encenações de atos sexuais eram típicas. Mas indo além desses aspectos, bem como do interessante papel do bufão como “pontífice” entre cultura popular e cultura erudita no Medievo, ele parecia exercer funções mais profundas nas cortes.
Em primeiro lugar, é importante apontar que os bufões não faziam troça “dos poderosos”, e sim de todos que eram levados a sério e se levavam a sério por conta dos valores dominantes. Por assim dizer, o bufão sempre foi um crítico zombeteiro ou sarcástico do “politicamente correto” de sua época. Nesse sentido, eles contavam piadas (como já dito, às vezes obscenas) sobre reis, nobres e bispos (sem deixar de zombar de servos, de judeus e de estrangeiros) fundamentalmente porque essas eram as “vacas sagradas”, os “ídolos” de sua época. Para os poderosos, inclusive, o bufão servia como um fator de cultivo da humildade. Diante da tentação da soberba, as zombarias, humilhações e desrespeitos do bufão recordavam aos reis e nobres a permanecerem com os pés no chão.
E isso não raro era feito com um humor quase-sério que parece apresentar prenúncios da pós-ironia, como quando o bufão de Felipe VI ao contar ao seu senhor (e os bufões costumavam ser os responsáveis por más notícias devido à sua “imunidade”) sobre a destruição da marinha francesa pelos ingleses narrou que os marinheiros ingleses não tinham a coragem de se lançar ao mar como os marinheiros franceses.
Enfim, se o rei estava prestes a cometer uma estupidez, se uma nova lei era absurda, se um projeto era patentemente fadado ao fracasso ou se alguém estava se achando importante demais, lá estava o bufão para dizer aquilo que ninguém se atrevia a dizer. Era ele quem – apelando à anedota clássica – diria que “o rei está nu”.
Transplantando essa função para o mundo contemporâneo quem deve ser o alvo do comediante? A resposta para isso depende de identificar o que é o “politicamente correto” de hoje e quais são as “vacas sagradas” do mundo contemporâneo.
É evidente que na “nova ordem moral” pós-liberal é o conjunto das ditas “minorias oprimidas” que ocupa postos simbólicos da mais alta hierarquia social. Com o judeu na cúspide como o “maximamente oprimido e sofredor”, o conjunto das “minorias oprimidas” constitui a coletividade de “vacas sagradas” incriticáveis da pós-modernidade. É autoevidente, portanto, que não há alvo mais legítimo do humor, hoje, do que eles.
Qual é o risco de zombar de um presidente em uma democracia liberal? Ou de padres em uma sociedade dessacralizada e secularizada? E se permanece vigente e atual zombar dos ricos, mesmo isso é suficientemente normalizado. O verdadeiro humor, portanto, em seu estado mais puro só pode ser o humor com os “oprimidos” e com segmentos sociais e nichos minoritários.
Ao fazê-lo, o bufão ou comediante subverte temporariamente a ordem moral e recorda que talvez não se deva levar tão a sério tudo isso que é levado maximamente a sério. Com isso, ele é como uma instanciação individual do espírito subversivo e sazonal do Carnaval. Ele estava ali no passado para nos recordar, por exemplo, de que “ok, a religião é importante, mas de vez em quando podemos rir dela também” e ele está aí, hoje, para mostrar os pés de barro e as rachaduras na armadura de santidade de todos os grupos “oprimidos”, mostrando que podemos e devemos, sim, trivializar ocasionalmente o seu sofrimento.
Quando, porém, decai a figura do bufão? Precisamente a partir da ditadura puritana de Oliver Cromwell, na Inglaterra. Ali se inaugura uma era de “seriedade” moralista que simplesmente não sabia tolerar nem o grotesco, nem a zombaria, nem a ironia, nem nada mais que subvertesse os “elevados” sentimentos morais da ordem vigente. O moralismo avesso à humilhação inocente vai se espalhando pelo resto da Europa, de modo que no século XIX apenas algumas cortes na Europa Oriental ainda dispunham de bufões. A partir de Cromwell, o bobo é devolvido ao teatro e trancado nele, pelo menos até o século XX.
Não me parece coincidência que se tenha iniciado no século XXI uma onda de perseguições a comediantes de stand-up (inaugurada pelas ações judiciais contra o comediante Dieudonné na França desde 2006). Vivemos propriamente em uma era de atualização do puritanismo anglo-saxão, mas sob um formato arco-íris, no sentido de que estamos sob uma “ordem moral” intolerante na medida de sua própria pretensão à correção moral e à santidade.
O wokismo, enquanto força moral, não é outra coisa que esse chamado a um novo puritanismo.