O futebol de ponta tornou-se um tipo de atividade pós-humana, puramente técnica, sustentada por análises metódicas fornecidas pela tecnologia, e que eliminam o elemento da espontaneidade e do improviso.


“Acho que o que jogam hoje não é futebol; acredito que seja um novo esporte com uma bola de futebol. Então, não tem mais graça para mim.” — Emerson Leão.
“Um jogador se movendo onde quisesse implica que há situações de jogo que eu não controlo. No próximo ano, quero checar todas, sem exceção.” — Luis Enrique.
“O bom é que Fernandez sabe que, se não jogar para trás, eu vou substituí-lo. Se o goleiro jogar longe, eu vou substituí-lo. Isso é o que temos.” — Enzo Maresca.
Désiré Doué passa o pé sobre a bola, como um ritual de aviso, enquanto se prepara para conduzi-la do flanco para o centro. Imediatamente, o jogador atrás da linha da bola mais próximo à lateral avança profundamente pelo lado externo; o jogador à frente da linha da bola avança profundamente pelo interno; outro permanece na base. O georgiano “Kvaradona” recebe uma troca de jogo. Como canhoto, ele avança de fora para dentro. Nuno Mendes sai da base da jogada e avança pela linha de fundo, Fabian Ruiz penetra pelo meio, Dembélé se desloca para apoiar, Doué ataca o segundo pau. Os jogadores do PSG se movem por zonas ofensivas predeterminadas, de modo que o padrão geométrico do time nunca muda, mas os jogadores estão constantemente trocando de zonas.
O sonho de Rinus Michels era transpor para o futebol uma estratégia coletiva próxima da perfeição, que dominasse os espaços e fosse independente do caos da natureza — ou seja, tornar-se independente de ter ou não uma geração de jogadores talentosos. No entanto, seu sonho não se realizou em vida. Seus times tinham estrutura, mas seus jogadores trocavam de zonas predeterminadas com certa espontaneidade. Cruyff era o fio solto que ativava o carrossel. Ele trocava de zonas com Neeskens, com Rensenbrink, com o volante, com o lateral, conforme sua intuição, sua imaginação, seu livre-arbítrio. Rinus criou uma estrutura para sustentar essas trocas de zonas ofensivas, mas os jogadores as exerciam com grande autonomia.
O PSG é a realização do sonho de Rinus Michels. Seus jogadores trocam de zonas incansavelmente. Hakimi vai para a zona do meia-atacante, Fabian Ruiz entra na zona do ponta, Dembélé fica na base da jogada, Doué ocupa a zona do camisa 9. Para o olhar não treinado do público, essa troca pode parecer uma bela expressão da espontaneidade humana. No entanto, essa movimentação intensa não é espontânea e tem muito pouco espaço para autonomia. Todas as trocas são previamente treinadas, guiadas, repetidas, memorizadas. Elas se repetem da mesma forma durante os jogos para os observadores mais atentos.
Essa história não é nova. Geralmente, times posicionais sempre permitiram que jogadores trocassem de zonas ofensivas com base na hermenêutica do terceiro homem, desde que mantivessem a estrutura do time. Ou seja, ainda havia abertura para a interpretação e autonomia do jogador na troca de espaços, contanto que a geometria coletiva da equipe não se desfizesse. Nos últimos anos, essa história vem mudando. No Manchester City, Guardiola cria cada vez mais mecanismos para trocas de zonas guiadas. Em alguns jogos, Gvardiol começa como lateral-esquerdo, forma uma linha de três zagueiros e logo ocupa a zona de largura, enquanto o ponta-esquerdo sai do flanco para o centro, e um armador recua para receber a bola como terceiro homem enquanto os outros dois (Gvardiol e o ponta) se movimentam. A troca de zona acelera a posse e complica a defesa. A troca de zona aqui é predeterminada, treinada, memorizada. O Leverkusen de Xabi Alonso foi outro time de destaque usando o mesmo método. Mas o PSG se tornou o maior símbolo desse novo futebol, esse “futebol pós-humano”, cada vez mais distante da espontaneidade e da improvisação, e mais próximo da repetição natural.
A Odisseia da Humanidade
Após os percalços em Troia, Ulisses quer voltar para casa, mas o mundo natural expõe a vulnerabilidade humana, e nosso herói precisa usar sua astúcia para navegar pela imprevisibilidade inevitável do próximo momento. A epopeia de Homero simboliza os dramas da humanidade. O mundo natural é, ao mesmo tempo, sustento e ameaça, ordem e caos, repetição e surpresa. Como filho desse mundo, o ser humano também é incompleto, ausente e uma obra em andamento.
Ulisses quer voltar para casa, mas esse retorno também é um símbolo dos dramas humanos. Voltar para casa é tornar-se plenamente humano no sentido verdadeiro da palavra. Para se tornar “humano”, Ulisses precisa superar as adversidades do mundo natural, as repetições e surpresas do mar com seus cantos, as forças incontroláveis representadas por Cila e Caríbdis, a tentação da onipotência oferecida por Calipso, a brutalidade dos Ciclopes. O mundo natural é um desafio para tornar-se plenamente humano.
Contrariamente a leituras mais desatentas, essa busca por métis não significa dominar a natureza, mas aceitá-la e dialogar com ela. Ulisses só consegue enfrentar as adversidades e surpresas do mundo natural se não tentar destruí-lo. Pelo contrário, ele precisa se adaptar à natureza. Sempre perderemos para o mundo natural se tentarmos vencê-lo, mas podemos nos adaptar a ele e superá-lo se dialogarmos. Tornar-se humano é aceitar a imprevisibilidade e as adversidades do mundo natural, brincar com ele, relacionar-se, fornecer soluções criativas, improvisar, criar diante de cada segundo imprevisível. Tornar-se humano é ser autônomo.
Portanto, a grande arma de Ulisses não é derrotar a natureza, mas dialogar com ela por meio da astúcia. É isso que funda a autonomia, uma brincadeira de “criança” que nos torna “adultos”. Cada obstáculo do mundo natural é uma oportunidade para improvisar, adaptar-se. O conforto, a simples aceitação do mundo natural, anularia nossa humanidade, enquanto o confronto nos levaria à violência, à destruição, à barbárie. Ulisses é o herói da improvisação, do disfarce, da esperteza, do engano para salvar. Dialogar com o mundo natural é “entrar no jogo”, criar, improvisar. Assim, tornar-se humano é alcançar essa autonomia, essa escolha do próprio “destino”. Ulisses mostra que ser humano é saber improvisar diante do mundo natural, não como seu inimigo, mas como parte dele.
Ao tornar-se humano, Ulisses recusa a imortalidade, aceita o caos, torna-se um amante da imprevisibilidade, sabe navegar nesse terreno sem a ansiedade de quem deseja determinar seu destino. Ulisses torna-se um amante da autonomia humana, da espontaneidade, da improvisação, da astúcia, das soluções criativas. Autonomia é descobrir que somos vulneráveis, mas também criadores.
Futebol: Um Jogo de Seres Humanos
O futebol sempre foi uma odisseia. Nenhum esporte demonstrou tão bem as dificuldades e a imprevisibilidade da vida quanto o futebol. Um esporte jogado com os pés (uma parte do corpo menos precisa que as mãos), com uma bola que escorrega facilmente no gramado e é quase impossível de controlar por muito tempo, em um campo muito amplo, com poucas regras, sempre foi um convite ao caos, à surpresa, ao imprevisto, à demonstração da incompletude humana. Em pouco tempo, o futebol se tornou o esporte com mais reviravoltas, “zebras”, jogadas surpreendentes e estéticas inimagináveis.
O futebol nunca desprezou a ordem. Pelo contrário, sempre respeitou o mundo natural sem tentar vencê-lo. Desde o amadorismo, o futebol vem desenvolvendo formulações práticas para organizar o jogo diante de regras tão amplas sobre o que fazer com uma bola em um campo gigantesco. A perspectiva da ordem e suas tipologias sempre foram múltiplas, mas todas convergiam para uma coisa: nenhum jogador perdia sua autonomia. Mais inflexíveis ou flexíveis, mais ordenados espacial ou temporalmente, com ou sem zonas específicas, o jogador sempre teve um espaço de autonomia para interpretar, criar, improvisar. Cruyff improvisou no “Carrossel Holandês”, Pelé improvisou no Brasil de 70, Stoichkov improvisou no Barcelona de Cruyff, Ronaldo improvisou com a seleção brasileira.
Na prática, quando Ronaldo recebia a bola, diante de Djalminha, Rivaldo e Romário, ele tinha noções básicas de organização em mente, mas podia inventar uma relação com os companheiros, criar um tabelinha, improvisar um drible, arriscar um passe não ensaiado. Os movimentos não eram predeterminados. Ronaldo não precisava apenas executar mecanismos bem-estabelecidos, treinados e repetidos. Ele podia improvisar pela direita, pela esquerda, estabelecer relações socioafetivas em campo, usar sua autonomia para driblar o imprevisto com sua astúcia.
O futebol sempre teve ordem, mas os jogadores sempre foram Ulisses. Ao longo do século XX, o futebol foi o esporte que mais exigiu a astúcia do indivíduo. Com a bola, os jogadores precisavam improvisar, criar relações com os companheiros, sair da estrutura, superar os desafios da vida. Os indivíduos precisavam se tornar “humanos” diante das adversidades no campo de futebol, diante do imprevisível, do fracasso, da derrota, da dor. Precisavam inventar, ser espertos, driblar dificuldades. Ao criar relações socioafetivas com seus companheiros de jornada, o jogador de futebol era um Ulisses voltando para casa, brincando com o destino, brincando com o mundo natural, encontrando soluções deslumbrantes que confortavam a alma dos espectadores.
Com a bola nos pés, os jogadores sempre tomaram decisões por conta própria. Decisões coletivas e individuais surpreendentes. A espontaneidade era a alma do jogo. A autonomia era a autoria de um grande drible, de um belo tabelinha, da saída surpreendente e inesperada diante das dificuldades. E nós assistíamos àqueles “Ulisses” escapando das adversidades e da imprevisibilidade do mundo natural. Assistíamos, apaixonados pela astúcia. O futebol era o esporte dos ídolos, dos jogadores, das grandes personalidades, porque nossos heróis se tornavam “seres humanos” definitivos ao conquistarem sua autonomia.
Futebol Pós-Humano: Um Jogo de Estruturas
Há décadas, filósofos debatem o limite entre humano e máquina. Os avanços da biotecnologia, da engenharia genética, da cibernética e da inteligência artificial criaram uma nova fronteira de possibilidades, em que o ser humano poderia passar por profundas transformações genéticas, receber implantes de chips para resolver problemas aparentemente insolúveis e até mesmo perseguir sonhos distópicos, como “mentes digitais”. O pós-humano também é um conceito crítico sobre a possibilidade de manipulação genética para fins específicos ou a subjugação da autonomia e da inteligência humanas a novas possibilidades tecnológicas — como uma arte criada sem espaço para a improvisação. No futuro, abre-se um horizonte de expectativas em torno de superinteligências artificiais, robôs altamente capazes, intervenções genéticas drásticas e até chips que curam doenças.
Essa transformação profunda também acontece no futebol. Por meio do desenvolvimento da tecnologia e de novos métodos, o jogo com a bola tornou-se muito mais metódico, mecanizado e repetitivo. A estrutura de um time de futebol cada vez mais se assemelha a uma máquina, e os jogadores se tornam mais operadores do que intérpretes autônomos. Os corpos são plenamente disciplinados, executando movimentos extremamente ordenados, com e sem a bola, perdendo a espontaneidade. Os times buscam funcionar com o mínimo possível de improvisação. Em vez de Ulisses, os jogadores executam o método, seguem a estrutura, repetem o mecanismo. São corpos-máquina, não criadores. Os novos treinadores implementam seus sistemas, suas estratégias, e buscam minimizar o caos, a imprevisibilidade e a necessidade de improvisação dos jogadores. O futebol pensado para o corpo-máquina é o que chamamos de “futebol pós-humano”.
O futebol “pós-humano” não é “não humano”. Na verdade, o futebol pós-humano reflete a crescente necessidade de usar novas tecnologias para reduzir a improvisação, tornando o jogo mais uma disputa entre estruturas do que entre seres humanos. Sem improvisação, criatividade ou as surpreendentes conexões socioafetivas que nascem em um campo de futebol, o jogo se transforma em uma batalha entre sistemas desenhados por demiurgos, entre corpos-máquina disciplinados seguindo um roteiro e executando-o.
Há décadas, novas tecnologias são usadas para estabelecer padrões e criar sistemas ofensivos que operam acima da espontaneidade individual. No entanto, nosso presente — com dados ilimitados, algoritmos, estatísticas avançadas, vídeos integrados e inteligência artificial — parece um começo tímido perto do que está por vir nas próximas décadas. Com o desenvolvimento da super IA e seu crescente aprimoramento para esses fins, será fácil identificar os padrões mais imperceptíveis de um time de futebol, assim como criar padrões para derrotá-lo e desenvolver métodos para que os jogadores ajam apenas como operadores do sistema. Nas próximas décadas, sem uma reflexão crítica profunda que leve a uma transformação radical, o jogo se tornará cada vez mais uma disputa entre estruturas, e não entre seres humanos.
O futebol moderno é pensado para excluir progressivamente a espontaneidade, a surpresa e a improvisação. O jogo se tornou inimigo do imprevisível, em uma busca frenética por estabilidade, repetição e execução. Os jogadores perderam autonomia, mas já se adaptaram ao papel de corpo-máquina. Treinadores brincam sobre ter um “joystick na mão”, dão entrevistas sobre comandar cada ação de seus atletas em campo e buscam cada vez mais uma estrutura dinâmica, porém coesa. No passado, a maioria das estrelas do futebol não aceitaria esse papel, ficaria indignada com a perda de autonomia e a falta de improvisação — mas hoje, a maioria aceita passivamente esse roteiro, quase como um alívio por não serem mais responsáveis pela própria liberdade. A idolatria migra do jogador para o treinador. Por exemplo, não é mais o “Palmeiras de Ademir da Guia”, mas o “Palmeiras de Abel Ferreira”.
A torcida do futebol também se adapta ao modelo “pós-humano”. Em vez de assistir aos jogos e contemplar talento, espontaneidade, criatividade, improvisação e soluções mirabolantes, olhamos para gols, assistências, estatísticas — fazemos disputas no Excel para decidir quem é o melhor jogador do mundo.
Ao disciplinar dinâmicas e movimentos, o PSG de Luis Enrique é o símbolo mais refinado do “futebol pós-humano”. Um time que se movimenta incessantemente, com jogadores transitando constantemente pelas zonas de ataque, mas fazendo isso de forma incrivelmente metódica, sistemática, ensaiada e repetitiva — deixando pouco espaço para a espontaneidade e nenhum lugar para novos Ulisses. O “futebol pós-humano” é um esforço incessante para tornar o jogo menos caótico e mais ordenado, menos imprevisível e mais repetitivo, menos espontâneo e mais induzido.
As Implicações Éticas e Estéticas do Futebol Pós-Humano
Os resultados são como marés. Vêm e vão. A eficiência do “futebol pós-humano” em comparação com outras formas de vida não é o que me interessa, mas sim refletir sobre o impacto dessa transformação no presente e no futuro do jogo. Mais do que o placar, qual é a sustentabilidade a longo prazo do futebol como atividade “pós-humana”?
O treinador de futebol tornou-se o detentor do biopoder. Ele disciplina os corpos dos jogadores, seus movimentos e reflexos em campo, e controla até mesmo suas vidas fora dele — da saúde à sexualidade. As novas tecnologias permitirão um exercício ainda mais profundo do biopoder — não apenas em termos práticos sobre a vida social dos jogadores, mas também em seus comportamentos dentro de campo. Cada vez mais, o corpo do jogador não é apenas controlado, mas otimizado, calculado e programado. Ele não é mais um Ulisses que busca se tornar “humano”, mas apenas um projeto técnico-financeiro, um local, uma fronteira, um território para intervenção e modelagem. Uma mercadoria não apenas para ser vendida, mas para se comportar conforme a vontade do demiurgo que constrói a estrutura. Esse novo futebol apresenta dilemas éticos profundos.
Ainda faz sentido falar em indivíduos aqui? Falaremos de jogadores ou apenas de coletivos programados? Analisaremos a arte de um jogador ou apenas mediremos desempenho por meio de algoritmos, máquinas e afins? No futuro, a manipulação genética será permitida para produzir atletas? E os implantes neurais? Ou o uso de superinteligência artificial? Não seriam essas novas formas de eugenia? Todo esse discurso sobre disciplinar o corpo não remete às piores violências da história?
As implicações estéticas também são óbvias. O futebol deixa de ser o esporte do imprevisível, perde seu poder de entretenimento, torna-se uma arte da padronização e perde seu caráter épico. Os jovens não se inspiram mais em jogadores como ídolos porque não veem mais em campo a astúcia que nos torna humanos.
Deleuze dizia que não gostamos das coisas porque elas são naturalmente boas — criamos explicações para dizer que são boas porque desejamos essas coisas. Então, por que direcionamos nossos afetos para elas? O que criou essa potência? O futebol não seguiu esse caminho por mero destino ou como simples reflexo da modernidade, mas porque o ambiente canalizou seu afeto na construção do “futebol pós-humano”. Por que o ecossistema do futebol seguiu esse impulso de bloquear a espontaneidade? Por que o ecossistema do futebol repele cada vez mais a improvisação? A conclusão de um texto sobre “futebol pós-humano” só poderia ser uma pergunta sem resposta.