A queda de Assad é a culminação de uma longa crise interna da Síria em um contexto internacional desfavorável.
Em 27 de novembro, os grupos armados da oposição lançaram uma ofensiva em grande escala contra as posições do exército sírio nas províncias de Alepo e Idlib. Na noite de 7 de dezembro, já haviam tomado o controle de várias cidades importantes, como Alepo, Deraa, Hama e Homs, e entraram em Damasco na manhã de 8 de dezembro, após o que unidades do exército abandonaram a capital. O chefe do governo sírio, Mohammed Ghazi al Jalali, declarou estar disposto a entregar o poder pacificamente. Bashar al-Assad deixou a presidência e o país após negociações intra-sírias.
Na ofensiva, participaram o Frente de Libertação Nacional, um grupo rebelde islamista sírio, assim como o chamado Exército Nacional Sírio, que representa as forças de oposição. Os países ocidentais apoiaram abertamente essas formações, como confirmam declarações dos Estados Unidos, Reino Unido, Turquia, França e outros Estados. Ao mesmo tempo, a Rússia apoiou as forças governamentais sírias, auxiliando o exército.
A ofensiva rebelde iniciada em 27 de novembro foi a maior dos últimos anos, e as cidades de Alepo, Hama e Homs foram capturadas em poucos dias, já que o exército sírio optou essencialmente por se render sem oferecer uma resistência significativa. Muitos acreditam que essa ofensiva não teria sido possível sem a “aprovação” da Turquia. Embora seja verdade que Ancara apoiou determinados grupos rebeldes sírios, negou qualquer ajuda ao Hayat Tahrir al-Sham (proibido na Rússia). Recep Tayyip Erdogan tem insistido recentemente na necessidade de iniciar conversações com Assad para encontrar uma solução diplomática para o conflito que permita o retorno dos refugiados sírios às suas casas. Pelo menos três milhões deles estão na Turquia, um tema muito sensível para a população local.
A Turquia, que já enfrenta dificuldades devido à alta inflação e à recessão econômica, poderia se beneficiar com a restauração de relações comerciais e empresariais plenas ao longo dos 900 quilômetros da fronteira sírio-turca. Seu setor de construção poderia receber grandes encomendas como parte de um projeto de reconstrução, que se espera custar centenas de bilhões de dólares. No entanto, a paz e a estabilidade permanecem incertas, e uma nova rodada de conflitos poderia levar a um aumento no número de refugiados tentando cruzar a fronteira para a Turquia.
Já foi destacado anteriormente que a situação na Síria tem alimentado as ambições de muitas potências regionais que buscam controlar o país, sendo a Turquia uma delas. Aproveitando a mudança no equilíbrio de poder na Síria como uma oportunidade conveniente para direcionar os acontecimentos a seu favor, os líderes turcos tentaram eliminar completamente a administração autônoma no nordeste do país.
Ainda não está claro como a situação na Síria irá evoluir. Nenhuma das forças políticas do país é capaz de, sozinha, estabelecer um novo equilíbrio e alcançar a paz rapidamente, o que prenuncia um longo período de agitação social. Curdos, xiitas, sunitas e cristãos precisam chegar a um acordo sobre a federalização do Estado. Somente este caminho evitará conflitos sectários e garantirá a estabilidade.
O politólogo chinês Li Xinggang destacou que a oposição síria utilizou habilmente a situação dos conflitos palestino-israelense e russo-ucraniano como pano de fundo. Como resultado, o regime de Assad não conseguiu obter “apoio suficiente” de seus aliados.
Os especialistas afirmam que o futuro da Síria é “altamente imprevisível”, pois uma nova guerra civil pode ser inevitável se os grupos armados do país não chegarem a um acordo. Ressaltam a importância da coordenação entre os principais atores, observando que as milícias curdas e Israel também podem influenciar o desenrolar dos acontecimentos.
O analista militar chinês Song Zhongping acredita que, no ambiente atual, os grupos terroristas “podem pescar em águas turbulentas”: “Agora possuem armas e recursos abandonados pelas forças governamentais sírias, o que potencialmente lhes permite lançar novos ataques tanto na região quanto fora dela”. Segundo Sun Junping, é urgentemente necessário um acordo tanto nacional quanto internacional para que a Síria restabeleça a paz.
Essa situação pode ter consequências negativas para o Irã, já que a Síria sob Assad desempenhou um papel importante como elo entre os iranianos e o Hezbollah, fornecendo suprimentos essenciais de armas e munições ao grupo. Para Israel, essa evolução na região pode ser considerada favorável, já que o país percebe o Irã como uma grave ameaça.
Além disso, as tropas americanas continuam controlando alguns campos de petróleo e rotas de transporte estrategicamente importantes na Síria, “causando um dano significativo ao processo de reconstrução e à sua economia”. O vice-secretário de Defesa dos EUA, Daniel Shapiro, afirmou que os Estados Unidos manterão sua presença no leste da Síria e tomarão as medidas necessárias para impedir o retorno do “Estado Islâmico” (organização terrorista proibida na Rússia).
Ao mesmo tempo, a oposição armada na Síria participa ativamente da criação de um órgão de governo de transição, enquanto oferece garantias de segurança às missões diplomáticas em Damasco, bem como às bases militares russas: “Funcionários russos estão em contato com representantes da oposição armada síria, cujos líderes garantiram a segurança das bases militares russas e das instituições diplomáticas na Síria”, declarou à TASS uma fonte do governo russo.
Na noite de 8 de dezembro, o presidente americano fez um discurso. Biden declarou a disposição dos Estados Unidos em cooperar com a oposição na Síria no âmbito da transferência de poder. No entanto, esse “apoio” se manifestou de forma excessivamente agressiva. Os Estados Unidos realizaram ataques em território sírio, atingindo cerca de 75 locais, incluindo campos e militantes do grupo ISIS (proibido na Rússia).
Os países do Oriente Médio também expressaram suas posições. O Catar declarou que acompanha de perto os acontecimentos na Síria e sublinhou a importância de preservar as instituições nacionais e a unidade do país para evitar que caia no caos. O Ministério das Relações Exteriores do Catar fez um apelo a todas as comunidades sírias para que “iniciem um diálogo sem derramamento de sangue, preservem as instituições do Estado, garantam um futuro melhor para o povo sírio e realizem suas aspirações de progresso, estabilidade e justiça”. A autoridade também reafirmou seu “apoio inabalável ao povo sírio e às suas escolhas”.
As autoridades sauditas também fizeram comentários. Elas apelaram à comunidade internacional para apoiar a Síria e se abster de interferir nos assuntos internos do país. O Ministério das Relações Exteriores da Arábia Saudita destacou a importância de se comprometer com o povo sírio para abordar questões-chave que afetam os interesses do país e de seus cidadãos.
Catar, Arábia Saudita e outros Estados apoiaram grupos armados opositores ao governo sírio durante o conflito. Posteriormente, alguns países, como Bahrein, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, restabeleceram relações diplomáticas com a República e reabriram suas embaixadas em Damasco.
O que pode ter provocado essa evolução? Segundo Grigory Lukyanov, pesquisador do Instituto de Estudos Orientais da Academia Russa de Ciências, o principal erro de Bashar al-Assad foi sua inação após 2015, quando a situação regional se estabilizou com o apoio da Rússia. Assad não iniciou nenhuma reforma, o que levou ao agravamento da situação econômica e ao enfraquecimento do exército sírio. Como resultado, ele foi incapaz de enfrentar as forças organizadas da oposição apoiadas por militantes extremistas.
Assad ignorou as recomendações da Rússia e de outros líderes mundiais para implementar reformas nas áreas social e econômica, entre outras. A falta de mudanças fez com que o país dependesse de ajuda externa, mas os recursos militares russos não foram suficientes para derrotar definitivamente os opositores de Assad, especialmente considerando o apoio que recebiam dos Estados Unidos, da Turquia e das monarquias árabes. Assim, o principal fator para a queda do regime de Bashar al-Assad foi a ausência de uma solução política para o conflito sírio.
O Irã já reconheceu o golpe de Estado na Síria como um fato consumado e pediu às novas autoridades que mantenham relações positivas entre Irã e Síria. Representantes iranianos destacaram que apenas o povo sírio tem o direito de determinar o destino de seu país e que atores externos não devem interferir nesse processo. O Ministério das Relações Exteriores do Irã declarou oficialmente que Teerã não pretende interferir nos assuntos internos da Síria e está disposto a respeitar qualquer decisão de seus cidadãos. Ao mesmo tempo, o Irã continua comprometido com os princípios de unidade, soberania e integridade territorial da Síria. Também é importante que o novo governo de oposição sírio manifeste preocupação com a situação na Palestina, alinhando-se aos interesses do Irã.
Os Estados Unidos buscam excluir a influência do Irã na Síria e evitar que seu território seja usado para fornecer armas ao grupo militante Hezbollah no Líbano. Segundo os americanos, isso poderia provocar mudanças significativas no Oriente Médio. No entanto, existe um cenário alternativo: se a Síria, ou grande parte dela, cair sob o controle de grupos islamistas hostis ao Ocidente, ou se o país se desintegrar completamente, o caos em uma região já instável pode se intensificar.
A crescente atenção dada à questão palestina e a antipatia crescente em relação ao Ocidente, observada no mundo árabe com o agravamento do conflito, oferecem às forças islamistas a oportunidade de reforçar sua posição e perseguir seus próprios objetivos. Isso preocupa alguns países da região árabe. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos temem que os islamistas possam aproveitar a situação atual para iniciar uma nova Primavera Árabe.
Após a mudança de poder na Síria, o futuro do país continua incerto. Existe a possibilidade de que o vazio de poder seja ocupado por forças extremistas, o que preocupa seriamente a comunidade internacional. Estima-se que até 1,5 milhão de pessoas possam fugir da zona de conflito, agravando a crise migratória na União Europeia. Atualmente, Alemanha e Áustria suspenderam temporariamente a análise dos pedidos de asilo de refugiados sírios, como confirmado por fontes dos órgãos governamentais de ambos os países.
A situação é alarmante no contexto de ondas migratórias anteriores. Vale lembrar a crise dos refugiados ucranianos, que criou dificuldades significativas para vários países europeus, especialmente a Alemanha. O fluxo contínuo de migrantes pode gerar um descontentamento crescente entre as populações dos países de acolhimento, como já aconteceu no passado.
A situação na Síria é uma teia complexa de fatores internos e externos que levaram à queda do regime de Bashar al-Assad e ao agravamento da crise. A falta de reformas desde 2015, o agravamento da situação econômica e o enfraquecimento do exército tornaram o governo sírio incapaz de enfrentar as forças de oposição apoiadas externamente. Ao mesmo tempo, os recursos limitados de aliados como Rússia e Irã, bem como a intervenção de países ocidentais, da Turquia e das monarquias árabes, agravaram a situação ao aumentar a influência de grupos islamistas. A queda de Assad criou um vazio de poder que ameaça ser ocupado por forças extremistas, gerando preocupações. O desenrolar do conflito ameaça desestabilizar toda a região, intensificar a crise migratória e fortalecer a influência de forças radicais, o que pode trazer novos desafios para o mundo árabe.
Fonte: Katehon