Confirmado o massacre eleitoral sofrido pela esquerda brasileira, chama a atenção a sua incapacidade de revisar as próprias posições ideológicas.
Grande crise política e de identidade na esquerda brasileira. Foram atropelados nas eleições municipais, o que foi confirmado pelo 2º turno – a análise detalhada do resultado das eleições eu já fiz e não vou repetir.
Agora, tomando duas eleições específicas como simbólicas: em São Paulo, o Boulos, ajudado pelo governo federal, por rios de dinheiro e até por parte da direita bolsonarista (os marçalistas), recebeu apenas 40% dos votos; em Porto Alegre, a Maria do Rosário, também com total apoio do governo federal e rios de dinheiro, recebeu apenas 38% dos votos.
Nunca foi um mistério quem ganharia, aliás. Boulos teve a campanha eleitoral mais cara do país, gastando 57 milhões de reais, e teve o mesmo resultado de quando gastou apenas 7 milhões de reais, há 4 anos. Posso dizer com tranquilidade: em 4 anos Boulos pode gastar 100 milhões e o resultado não será muito melhor.
Quanto à Maria do Rosário, o vexame só não foi maior porque ela estava disputando com o Melo, que foi basicamente um dos responsáveis por afundar Porto Alegre na água há alguns meses. Sem essa circunstância, ela teria recebido ali algo entre 25% e 30%, ou até menos.
É de causar espanto que o PT tenha decidido tentar emplacar essas candidaturas. No caso específico da Maria do Rosário deveriam dar um cargo burocrático no partido para ela e, simplesmente, esquecer qualquer pretensão eleitoral (exceto, talvez, como deputada federal – e olhe lá). Em vez disso, não só decidiram colocar uma das políticas mais rechaçadas e rejeitadas do Brasil para disputar uma das capitais mais importantes…e ainda com campanha de apoio capitaneada pela Janja, que no sul é mais odiada até que o Lula.
Com o Boulos é mais ou menos o mesmo. Ele é deplorado e ridicularizado por grande parte da população, que enxerga no Boulos um “defensor de vagabundo” com uma visão romântica em relação à criminalidade, as drogas e a indigência urbana. Jamais teria como ganhar e já é um milagre receber a votação que recebeu, a qual também se deve aos inúmeros problemas de gestão do Nunes.
Agora assomam os “intelectuais orgânicos” da esquerda, os seus porta-vozes, influenciadores, para “explicar”, para dizer “o que houve de errado”, e o “que fazer” para renovar e restaurar a esquerda.
Repito: não estão aparecendo agora novos nomes para tentar desvendar os eventos. Os canais de Youtube e sítios jornalísticos estão perguntando às mesmas pessoas de sempre, às mesmas pessoas que já davam as suas “orientações” e “sugestões” do que a esquerda deveria fazer: Ian Neves, Márcia Tiburi, Jean Wyllys, Jones Manoel, Jessé Souza, Felipe Neto, e por aí vai.
Mas não foram exatamente essas figuras que participaram ativamente no guiar a esquerda para o rumo atual, como flautistas de Hamelin?
E nenhuma solução é oferecida.
Existem os niilistas de esquerda, que simplesmente vão repetir que “a sociedade brasileira é fascista” e ponto final. Não há nada a ser feito, exceto “desfascistizar” o Brasil. Só que estes são também aqueles que, em outras ocasiões, dizem que “não há conversa com fascista”, de modo que ficamos sem saber como eles pretendem resolver esse “problema”.
Os outros giram entre “é necessário radicalizar, a esquerda tem que parecer de esquerda” – e, inclusive, acham que o Boulos “suavizou” demais o seu discurso – e o pessoal que diz que “a culpa é do identitarismo”, sem explicar exatamente o erro específico, e como solucioná-lo.
O primeiro problema aí é que nessa típica superficialidade brasileira, todos acham que se trata de um “problema técnico”; que é só apertar uns botões e se resolve o problema. Ninguém quer mergulhar nas profundezas do pensamento, da moldura mental que rege a esquerda brasileira para questionar os pressupostos mais básicos, os valores mais caros à esquerda.
Até que ponto o discurso sobre “direitos humanos” faz sentido? Em que medida não estaríamos interpretando o ideal de “igualdade” da maneira errada? Qual é, realmente, o papel das minorias e em que medida se pode concentrar nelas o protagonismo político? Por que insistir no individualismo? Não seria necessário rever o papel político da religião e pensá-lo em novos termos?
Nada disso. O pessoal não quer, realmente, renovar a esquerda porque essas pessoas realmente acreditam ter o Graal da ideologia política. Elas se sentem “certas” e “justificadas” e se sentem moralmente superiores e emocionalmente bem por se sentirem certas e justificadas.
O que querem é improvisar alguma gambiarra discursiva para melhorar resultados eleitorais sem questionar os pressupostos ideológicos básicos da esquerda contemporânea.
Neste caso, quando se diz que “a culpa é do identitarismo”, o que se quer dizer é que não se deve mencionar certas coisas no período eleitoral. Não se trata, realmente, de romper com certas concepções pós-modernas de democracia (como a de Laclau) que privilegia o papel das “minorias” contra o “fascismo das maiorias”, e sim de se fingir de doido, se dizer cristão, contra o aborto e contra as drogas no período eleitoral.
Evidentemente esse tipo de iniciativa sempre fracassa porque na era da internet existe um certo tipo de memória que é seletiva, mas é “longa”: a memória das gafes. Cada maluquice do Boulos e da Maria do Rosário está cristalizada em um “memorial” a ser perpetuamente explorado, e é muito difícil romper com esse “cerco da memória”.
Quem mais teve sucesso nisso foi o Aldo Rebelo, e mesmo assim ainda existem aqueles que, hoje, mesmo com ele tendo boas e respeitosas relações com Jair Bolsonaro, o acusam de “comunista infiltrado”.
Em outras palavras, o que figuras como Ciro Gomes, Guilherme Boulos, Marcelo Freixo, e os “intelectuais de esquerda” não compreendem e nem teriam como aceitar (porque, lembrem-se, eles creem ter a posse do Graal), é que uma “conversão sincera” e uma “autossuperação ideológica” se fazem necessárias para realmente furar o “teto” que cada vez mais comprime a esquerda em uma bolha.
É necessário, nesse sentido, uma “esquerda” que não seja mais “de esquerda”, composta simplesmente por patriotas preocupados com justiça social e com a redução das desigualdades econômicas, tendo os trabalhadores e os aposentados como sua prioridade, mas que é, também, profundamente católica, sinceramente antiaborto, radicalmente anticrime e que rechace, in totum, toda a parafernália da ideologia “arco-íris”.
Só que nenhum site, nenhum jornal, nenhum canal, nenhum blog está lançando este debate ou pretende lançá-lo.