A palavra “civilização” é utilizada livremente como se seu significado fosse óbvio. Mas o conteúdo do conceito de “civilização” é variável e é duvidoso se é até mesmo possível falar em “civilização” no singular.
Como no Brasil é muito comum que todo debate seja extremamente tardio, discute-se hoje sobre se o Brasil é ou não é “ocidental”. Alguns grandes brasileiros, à frente do seu tempo, como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, Plínio Salgado, entre outros, consideravam ponto pacífico que o Brasil era parte de uma civilização “latino-americana” (em outro texto eu já expliquei o porquê de rechaçar esse termo em prol do “ibero-americana”), e não de qualquer outra.
Mas como as gerações nascidas e educadas na Sexta República são, infelizmente, menos brilhantes que as gerações anteriores, especialmente em suas camadas intelectuais, cá estamos nós, tentando reinventar a roda e redescobrir o fogo – e, pior, vociferando, esbravejando e nos debatendo quando algum estrangeiro, razoavelmente inteligente e mais douto na nossa literatura ibero-americano do que nós mesmos, vem e diz: “vocês não são ocidentais, mas uma outra coisa, uma coisa nova e particular”.
O próprio conceito de civilização tem as suas controvérsias, porque a palavra tem sido usada por autores diferentes e em épocas diferentes para significar coisas distintas.
Em um Norbert Elias ela não serve senão para descrever um processo de “domesticação humana” ao longo do tempo através do progresso técnico, da burocratização e da centralização das relações humanas. Em Morgan, Engels, Comte e outros, ela aparece como uma “fase” em uma evolução das formas sociais, usualmente seguindo a “selvageria” e a “barbárie”. Para todos esses, como para praticamente todos os pensadores iluministas e modernos, existe apenas uma civilização, a “humana”, e a história humana é a história do progresso dessa única civilização.
Os “pensadores da suspeita” como Nietzsche, porém, felizmente sepultaram todo o otimismo positivista e cientificista do século XIX e obliteraram incontornavelmente e irremediavelmente qualquer noção filosófica de “progresso”, “humanidade” e insanidades semelhantes – as quais só conseguiram prosperar no pós-Segunda Guerra Mundial não por mérito filosófico, mas por imposição.
Civilização aparecerá em Oswald Spengler já como o “espelho” da Cultura, e com um significado pluralístico. As civilizações seriam as fases tardias e mecanicistas das culturas, que teriam um caráter mais orgânico e espontâneo. É como já aparecia em Richard Wagner, por exemplo, e como aparecerá também em Thomas Mann. Aqui as civilizações já são locais, territorializadas, como sistemas histórico-culturais complexos supraétnicos de larga escala dotados de uma mesma cosmovisão, um mesmo fundamento paradigmático.
Outros autores como Nikolai Danilevsky (que antecede Spengler), Arnold Toynbee, Pitirim Sorokin, e outros grandes teóricos das civilizações não trabalharão com essa distinção tão rígida entre Cultura/Civilização (que é um tema típico do pensamento alemão), mas neles se consagra essa noção territorializada, pluralista e sincrônica das civilizações.
Em nenhum lugar, em nenhum autor, aparece a noção de equivalência entre “civilização” e “hemisfério”. Não existem, por óbvio, apenas duas civilizações no planeta, uma “ocidental” e a outra “oriental” – de modo que falar em “civilização ocidental” não pressupõe uma “civilização oriental” e vice-versa. Imagino, aliás, que nenhum teórico das civilizações jamais cogitou essa possibilidade, mas ela ainda é aquilo que pauta reflexões brasileiras sobre o lugar do Brasil nesse debate.
Por essa lógica, brasileiros, estadunidenses, ingleses, portugueses, tupis e iorubás pertenceriam à mesma “civilização ocidental” – o que implica que poloneses, etíopes, persas e japoneses pertenceriam à mesma “civilização oriental”. Quem puder que tente entender um raciocínio desses.
Agora bem, essa visão pluralista, sincrônica e organicista das civilizações está quase sempre associada a “teorias do ciclo social”. Os teóricos das civilizações são, quase sempre, também defensores de uma visão cíclica do desenvolvimento das estruturas socioculturais humanas, sendo aí inspirados tanto por Giambattista Vico, Hegel e Ibn Khaldun quanto pelas perspectivas antigas das passagens de “eras”.
Para Nikolai Danilevsky, havia as seguintes civilizações: 1) egípcia, 2) assírio-fenício-babilônica, 3) chinesa, 4) caldeia, 5) indiana, 6) iraniana, 7) hebreia, 8) grega, 9) romana, 10) árabe, 11) romano-germânica (europeia). Danilevsky considerava o tipo histórico-cultural eslavo como ainda estando na infância, mas imbuído da missão de amadurecer enquanto civilização. Ele diria que surgiria, também, uma “civilização americana” eventualmente.
Para Oswald Spengler, pode-se falar nas seguintes culturas: 1) egípcia, 2) babilônica, 3) indiana, 4) chinesa, 5) meso-americana, 6) greco-romana (apolínea), 7) perso-árabe-bizantina (magiana), 8) ocidental (faustiana), 9) russa. Spengler não negava a existência de outras culturas, e essa lista para ele é apenas exemplificativa. Ele, ademais, se concentra em apenas 3, a apolínea, a magiana e a faustiana em suas análises, mas comenta com interesse que se testemunhava o nascimento de uma nova civilização, a russa. Spengler, aliás, exerceu grande impacto na América Latina, inclusive no Brasil dos anos 30.
Arnold Toynbee listará um número bem maior: 1) minoica, 2) shang, 3) indiana, 4) egípcia, 5) suméria, 6) andina, 7) maia, 8) helênica, 9) síria, 10) sínica, 11) índica, 12) hitita, 13) babilônica, 14) iucateca, 15) mexicana, 16) ocidental, 17) ortodoxo-russa, 18) ortodoxo-bizantina, 19) iraniana, 20) árabe, 21) chinesa, 22) nipo-coreana, 23) hindu.
Há ainda outras enumerações e classificações, como as de Gobineau, Leontiev, Quigley, Sorokin, Koneczny, Bagby e Coulborn, e algumas bem famosas e recentes, como a de Samuel Huntington, que lista: 1) ocidental, 2) ortodoxa, 3) islâmica, 4) budista, 5) hindu, 6) africana, 7) latino-americana, 8) sínica, 9) japonesa.
A de Huntington é curiosamente polêmica por uma pluralidade de motivos contraditórios. Entre certos atlantistas, ela é criticada por “negar” o projeto pan-americanista, parte da geopolítica atlantista desde a Doutrina Monroe. Entre alguns católicos latino-americanos, por outro lado, essa teoria negaria o nosso pertencimento à “civilização judaico-greco-romana”, que seria a “ocidental”, à qual eles entendem pertencer. Os atlantistas eslavos também criticam Huntington por querer que os seus países (até a Rússia!) deveriam ser considerados parte da “civilização ocidental”.
Mas da nossa perspectiva, a classificação de Huntington, herdada por exemplo por Dugin, é extremamente meritória e pode ser vista como um triunfo do “arielismo” de José Enrique Rodó, uma das primeiras obras a traçar de maneira contundente e completa uma oposição radical e fundamental entre a América Anglo-Saxã e a América Ibérica/Latina como pertencentes a diferentes civilizações.
Esse arielismo, que trabalha pela distinção das figuras arquetípicas de Ariel e Calibã, deduzidos da obra shakespeariana, oporá o espiritualismo latino-americano ao materialismo anglo-saxão, bem como apontará uma pluralidade de outras oposições que tornam impossível conceber ambas esferas como pertencendo à mesma cosmovisão. Esse arielismo influenciará todo o pensamento de José Vasconcelos, Manuel Ugarte, Haya de la Torre, e os brasileiros supracitados.
Esse “descolamento” ibero-americano em relação ao Ocidente, quando “Ocidente” significa “América do Norte” é um movimento análogo àquele que Alain de Benoist, Claudio Mutti, Giorgio Locchi ou mesmo Régis Debray tentam fazer para descolar a Europa e sua civilização em relação ao Ocidente norte-americano.
Nesse sentido, não há qualquer ruptura em negarmos a nossa ocidentalidade, já que o próprio Ocidente é a negação da Europa. E como, por óbvio, seria absurdo nos afirmarmos “europeus” (ainda que claramente sejamos frutos da Europa e legados de sua civilização) ou negar nossas raízes indígenas e africanas, não há como negar, contrapor ou superar o nosso status como latino-americanos/ibero-americanos.
De fato, a confusão entre a Nossa América e o Ocidente (em um Ocidente que, por si, já confunde América do Norte e Europa), tornou-se elemento central em uma narrativa atlantista e neoconservadora, comum na “alti-right”, que por “civilização ocidental” entende aí a defesa da cosmovisão individualista, talassocrática, materialista e comercial, a qual abarca também inclusive elementos alógenos de raízes semítico-judaicas.