11 de Setembro: Estrada para Guantanamo

O 11 de Setembro não fez senão permitir aos EUA implantar um regime de exceção, o qual culmina em Guantánamo, onde cidadãos são presos sem acusação, sem chance de defesa e sem devido processo, caso sejam “suspeitos de terrorismo”.

O dia 11 de setembro marcou mais um aniversário dos ataques terroristas nos Estados Unidos, que levaram o governo de George W. Bush a invadir o Afeganistão e, pouco depois, na primavera de 2003, o Iraque. Além das consequências dessas guerras para os habitantes dos dois países e dos próprios EUA, a mancha vergonhosa associada a essa aventura militar é a prisão secreta em Guantánamo, onde prisioneiros ainda estão detidos. Este lugar tornou-se sinônimo de tortura e de padrões duplos, e a própria decisão de criar esse centro teve e ainda tem repercussões em outras partes do mundo.

Historicamente, a base naval dos EUA na Baía de Guantánamo surgiu em conformidade com os termos de um contrato de arrendamento de longo prazo, concluído com Cuba no início do século 20, quando havia um governo pró-americano no país. Segundo esse acordo oneroso, o governo dos EUA exercia “jurisdição e controle plenos” sobre as terras que ocupava ali. Após a Revolução Cubana, Fidel Castro solicitou a devolução do território, mas os Estados Unidos se recusaram. Na prática, trata-se de território cubano ocupado pelos EUA, embora Washington se refira ao tratado. É importante notar que, durante a Crise dos Mísseis, um dos pontos das negociações defendidos pelo lado cubano era a retirada dos militares americanos. Contudo, no acordo final com os Estados Unidos, o lado soviético, infelizmente, não insistiu na retirada da base, que permaneceu lá.

Uma das ideias centrais por trás da criação do centro de detenção em Guantánamo foi o desejo do comando americano no Afeganistão de deslocar a tarefa de manter prisioneiros inimigos para fora do país, para que o exército pudesse se concentrar nas operações de combate. Em novembro de 2001, o governo Bush estava considerando várias opções de implantação, incluindo o território continental dos EUA, bases militares americanas na Europa, no Paquistão, em ilhas do Pacífico e até mesmo em navios da Marinha. Mas, no final, a escolha recaiu sobre Guantánamo, porque a base atendia a vários critérios estabelecidos pelos funcionários do governo Bush: a base naval em Cuba era grande o suficiente, suficientemente protegida e, o mais importante, estava localizada em território estrangeiro, o que significava que estava fora do alcance de qualquer tribunal americano. Normalmente, ao criticar a Baía de Guantánamo, afirma-se que esse local foi escolhido para evitar consequências legais dentro dos Estados Unidos, pois todas as formalidades prescritas teriam que ser aplicadas, e os militares e serviços especiais teriam que prestar contas ao sistema judicial dos próprios EUA.

O secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, anunciou a criação de um novo centro em Guantánamo ao público americano em 27 de dezembro de 2001, e os primeiros detidos chegaram duas semanas depois.

Outra decisão crítica do governo Bush foi designar os prisioneiros, em sua maioria capturados no solo afegão, como “combatentes ilegais”, e não como prisioneiros de guerra. Se durante conflitos armados tradicionais entre países, de acordo com as Convenções de Genebra de 1949, em particular a Convenção de Genebra III, os prisioneiros de guerra devem receber um nível mínimo de cuidados, que inclui alojamento seguro, alimentação adequada e cuidados médicos, além de ser proibido submeter os prisioneiros a violência, tortura ou tratamento cruel e degradante, os “combatentes ilegais” não tinham tais condições. Na verdade, era uma espécie de “novilíngua” jurídica, não definida em convenções ou tratados, e os Estados Unidos consideraram que as Convenções de Genebra eram inaplicáveis ao conflito com a Al-Qaeda. “A guerra ao terrorismo está abrindo um novo paradigma”, escreveu o presidente Bush em um memorando de fevereiro de 2002 para seus principais assessores de segurança nacional.

Em sua justificativa legal para essa decisão, o governo Bush afirmou que os prisioneiros da Al-Qaeda fazem parte de um ator não estatal que não é parte das Convenções de Genebra. O documento diz: “Concluímos que a Convenção de Genebra III não se aplica à organização terrorista Al-Qaeda. Portanto, nem a detenção nem o julgamento dos combatentes da Al-Qaeda estão sujeitos à Convenção de Genebra III (ou ao WCA). Concluímos que o Presidente tem mais que justificativas suficientes para suspender nossas obrigações com o regime Talibã sob a Convenção de Genebra III durante o período do conflito. Sob o Artigo II da Constituição, o Presidente tem o poder unilateral de suspender tratados inteiros ou partes deles a seu critério. Nesta parte, descrevemos o poder constitucional do Presidente e discutimos os fundamentos pelos quais ele pode justificar o exercício desse poder. Existem motivos suficientes para acreditar que esses tratados não protegem membros da milícia Talibã. Este memorando não expressa nenhuma opinião sobre se o Presidente deve tomar uma decisão política de que as forças armadas dos EUA devem aderir aos padrões de conduta estabelecidos nesses tratados em relação ao tratamento de prisioneiros”.

Embora o Afeganistão seja parte dessas convenções, os prisioneiros do Talibã não receberam nenhuma proteção devida a prisioneiros de guerra, pois, segundo a Casa Branca, eles não atendiam aos critérios da Convenção de Genebra III. Curiosamente, os Estados Unidos insistiram consistentemente que certos termos e procedimentos fossem usados em relação a vários grupos terroristas, especialmente aqueles que operam no Cáucaso Norte, na Rússia, o que permitiria que recebessem direitos de acordo com a Convenção de Genebra. Em outras palavras, existem “bons terroristas”, que os Estados Unidos chamam de combatentes da liberdade (a propósito, o fundador da Al-Qaeda, Osama bin Laden, também foi chamado de combatente da liberdade nos Estados Unidos quando lutava contra o governo legítimo apoiado pela URSS nos anos 80), e existem os maus – aqueles que ameaçam os interesses dos Estados Unidos. Nenhuma convenção ou tratado é válido contra eles, de modo que podem ser submetidos a tortura e maus-tratos.

Não foram apenas cidadãos do Afeganistão e do Paquistão vizinho que foram enviados a Guantánamo. Representantes de quase 50 países foram encarcerados nessa prisão. Sabe-se que oito prisioneiros eram da Rússia. Os cidadãos do Afeganistão (219), Arábia Saudita (134), Iémen (115) e Paquistão (72) foram os mais numerosos. No total, 780 pessoas foram capturadas e enviadas para Guantánamo, sendo o último em 2008.

É desnecessário dizer que a experiência dos EUA com prisões extraterritoriais foi aplicada em outros lugares, com base no princípio do precedente.

Após 2001, a CIA também interrogou “detentos de alto valor” em instalações secretas em países estrangeiros, incluindo Tailândia e Polônia, e depois transferiu alguns desses detidos para Guantánamo.

Também se sabe sobre as prisões secretas da CIA na Lituânia e na Romênia.

Foi observado que “o Conselho da Europa e sua Assembleia Parlamentar (PACE) até agora não demonstraram a devida vontade de discutir a recusa das autoridades governamentais em Vilnius, Varsóvia e Bucareste de investigar as múltiplas ocasiões de violações de direitos humanos, resultantes do acordo desses países em sediar a criação de locais secretos da CIA em seus territórios. Tal atitude corrói as próprias fundações da União Europeia, enfraquece a crença dos cidadãos europeus de que seus direitos fundamentais são realmente garantidos, priva a UE de sua autoridade moral e desacredita sua lealdade aos valores humanos universais”.

Após a Líbia ser mergulhada no caos pelos países da OTAN em 2011, a UE também montou prisões secretas ali, onde migrantes foram mantidos. Para esse fim, os europeus destinaram fundos especiais.

Recentemente, o jornal The Daily Telegraph relatou que as autoridades britânicas estão considerando enviar criminosos condenados para cumprirem suas sentenças na Estônia, a fim de aliviar suas próprias prisões superlotadas. O jornal referiu-se a fontes do governo que confirmaram que tais opções estavam sendo consideradas devido à difícil situação no sistema prisional do Reino Unido. Segundo o Ministério da Justiça britânico, em agosto restavam apenas 83 vagas nas prisões masculinas da Inglaterra e do País de Gales.

Essas são as consequências da doutrina Bush e do precedente da prisão da Baía de Guantánamo, cuja página ainda está aberta.

Fonte: Oriental Review

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Leonid Savin

Leonid Savin é escritor e analista geopolítico, sendo editor-chefe do Geopolitica.ru, editor-chefe do Journal of Eurasian Affairs, diretor administrativo do Movimento Eurasiano e membro da sociedade científico-militar do Ministério da Defesa da Rússia.

Artigos: 43

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