Brasil: Entre a Liderança Regional ou ser Pretor do Comando Sul

A postura cada vez mais ambígua do Brasil no plano internacional, em uma era de transição geopolítica, indica que o novo governo talvez não esteja tão interessado assim na multipolaridade.

Não é semântica, é política

Quando Lula, nos cenários internacionais, insiste no uso da categoria “multilateralismo”, ele não está cometendo um erro semântico, mas está fazendo um claro posicionamento político condicionado pelas longas linhas do Itamaraty.

O multilateralismo refere-se à eventual cooperação de diferentes países no âmbito da ordem global. O atlantismo teve incursões guerreiras multilaterais como no Iraque e desenvolveu uma política externa de multilateralismo, comprometendo seus aliados na reprodução de sua própria política, abandonando isso pelo unilateralismo apenas quando a diplomacia não alcançava seu objetivo.

O Multipolarismo não é uma forma de diplomacia, mas uma concepção civilizatória onde o mundo deve se adequar à convivência e à construção de sinergias entre as diferentes nações, entendendo que podem surgir polos de desenvolvimento, mas não antagônicos, e sim complementares. Claramente, o Multipolarismo impõe uma nova ordem global.

Em um ensaio assinado por Lula e Amorim, publicado no Instituto Índia-China, eles afirmam: “… alianças, baseadas na ‘geometria variável’, permitiriam uma verdadeira refundação da ordem multilateral, baseada nos princípios do multilateralismo real, em que a cooperação internacional possa realmente florescer. Em um cenário assim, China, Estados Unidos e Rússia poderiam se convencer de que o diálogo e a cooperação são mais benéficos do que a guerra (fria ou de outro tipo).”

Ponderação da “Ordem Global baseada em regras”

Caso não tenha ficado claro o posicionamento brasileiro em relação à chamada “ordem baseada em regras”, que até lhe reservou um desempenho cinzento no Conselho de Segurança da ONU quando o Brasil o presidiu; o homem da política externa do PT, Celso Amorim, despachou-se com uma curiosa ponderação da ordem baseada em regras, para encurralar o governo do presidente Maduro, não resultando funcional ao processo de destituição e intervenção por procuração que o Comando Sul conduz no país caribenho, mas vetorando esse processo.

Diante do desmoronamento da fake news que fazia parecer que o centro Carter questionava as eleições venezuelanas, o ex-homem forte do Itamaraty lança uma ponderação sobre a OEA como o único organismo capaz de auditar as eleições na Venezuela, a mesma OEA da primeira declaração de Havana, aquela que o chanceler da Dignidade Raúl Roa García denominou Ministério das Colônias, a OEA que carrega, desde seu nascimento em meio ao Bogotazo, uma história de cumplicidade e vetorização de golpes de Estado, a que recentemente justificou o golpe de Estado na Bolívia, a que nada disse sobre a prisão do presidente legal e legítimo do Peru, Pedro Castillo.

Como se não fosse evidente, reconheceu que a OEA não poderia realizar esse trabalho porque causa alguns ressentimentos em governos progressistas da região (estaria ele se referindo a Cuba, à própria Venezuela e à Nicarágua, que não fazem parte da OEA?) e então propôs que esse papel poderia ser cumprido pela União Europeia, o que parece uma afronta à inteligência de qualquer analista, faltando apenas dizer que deveria auditar essas eleições o Comando Sul!

Está propondo que, em meio a uma operação de diplomacia por procuração, uma manobra fracassada de imposição de guerra civil ao modo sírio ou líbio, com o processo de destituição em desenvolvimento, a Venezuela deveria recorrer às plataformas de produção política do globalismo atlantista para que auditem suas eleições. Isso é verdadeiramente vergonhoso e converte o senhor Celso Amorim, que foi uma referência permanente da política externa da esquerda brasileira, em uma versão neocolonial lamentável própria do Barão do Rio Branco.

Mas, caso isso não fosse suficiente, o próprio presidente Lula, secundado por um desfigurado presidente colombiano Petro, melhor prefeito do que presidente, atado à política externa brasileira quase como única esperança de sobrevivência; lançou-se a propor novas eleições com um organismo suprapartidário que as controle ou um governo de coalizão com os mesmos que ativaram o golpe contra Chávez, o magnicídio contra Maduro, entronaram um presidente de facto em Guaidó e organizaram as guarimbas criminosas, com esses Lula indica de forma alucinada e insolente ao presidente Maduro que deve formar um governo de coalizão.

Surgido o Brasil moderno rompendo o pacto oligárquico do Café com Leite ou Acordo de Ouro Fino, propõe à Venezuela, que destruiu a velha república pontofixista, que conviva com aqueles que diretamente propõem uma política de entrega de soberania.

Subcontinentalizar o Brasil com a Colômbia e abandonar a região ao Comando Sul

O anúncio de propor a integração da Colômbia aos BRICS por parte do próprio Luiz Inácio “Lula” da Silva é chamativo.

A Colômbia, além da mudança de governo, não evidencia uma estabilidade programática como Estado nacional, precisamente pela fraqueza do atual governo, acuado pela poderosa burguesia transnacional pró-norte-americana e pela fortíssima oligarquia colombiana. A Colômbia tem sido pensada há décadas como um porta-aviões continental do próprio Comando Sul e está longe de ter desmantelado as bases norte-americanas instaladas em todo o seu território, e menos ainda de ter descolonizado o Estado nacional, cujos juízes, policiais, forças armadas, diplomacia e tecnocratas foram formados e são dependentes dos Estados Unidos.

Bolívia e Venezuela são os dois cenários que poderíamos chamar de elos decisivos na cadeia de suprimentos do imperialismo em sua política de redesdobramento frente ao avanço do Multipolarismo, a nova ordem e sua inevitável decadência hegemônica global.

O país caribenho tem a maior bacia petrolífera do mundo e o país andino possui a maior bacia de lítio do mundo. Ambos os governos são acuados por sanções e guerras híbridas. Ambos os governos precisam do auxílio político, produtivo, comercial e financeiro que pode ser aberto com sua entrada nos BRICS e, como contrapartida, estariam concentrando nos BRICS a maioria da capacidade energética mundial para um projeto multipolar.

A omissão deliberada desses países, que são pioneiros nas trocas com Rússia, China e Irã, é sugestiva.

Um líder regional se afirma sendo uma barreira de contenção contra o redesdobramento que o estado profundo norte-americano pretende acometer na região. Mas, longe disso, o país carioca parece ter se resignado a constituir-se em uma espécie de sub-região aliada a uma volátil Colômbia, controlando as bacias do Orinoco e da Amazônia; sua conduta em política externa reforça o redesdobramento norte-americano e deixa a região entregue aos jogos do Deep State de saque e aprovisionamento.

Comportamentos que o chanceler indiano Subrahmanyam Jaishankar definiu como de “alinhamento múltiplo” em países como a Índia e Turquia podem ser compreendidos, podem ser convenientes para os próprios países, e podem até permitir o fortalecimento da margem de manobra desses Estados. Mas estamos falando do país com a maior demografia e uma capacidade produtiva invejável como a Índia, e de Turquia com uma história plurissecular de potência e autonomia, não de uma ex-colônia lusitana convertida pela força de uma derrota estratégica em capital imperial extrametropolitana, para depois se tornar a joia da coroa britânica e, posteriormente, peão dos caprichos norte-americanos. O Brasil não é Turquia nem Índia, é apenas Brasil. E poderá consolidar seu fortalecimento como líder regional apenas comandando uma articulação latino-americana; caso contrário, o único crescimento será o seu enfraquecimento.

Integração para uma Pátria Grande ou integração subordinada

Com uma retórica ambígua que confunde o leitor leigo, Lula promove uma ofensiva diplomática de políticas de integração, mas inspirado nas longas linhas de Itamaraty.

Com uma atitude titubeante como arquiteto periférico da CELAC e da UNASUL, que ganharam relevância em sua agenda como plataformas para disputar um eventual lugar no Conselho de Segurança da ONU, o que, além disso, o mostra esperançoso na sobrevivência da ordem baseada em regras; ele manteve uma marca construtiva no MERCOSUL, o que resultou em sua absoluta hegemonia comercial e produtiva regional, posicionando-o como interlocutor regional frente aos polos comerciais e produtivos globais.

Tudo indica que a geopolítica brasileira está pensada em uma chave de integração subordinada e discreta. Mais voltada para uma integração que amplie a plataforma comercial do que para uma integração que constitua um polo de desenvolvimento autônomo. O que pode explicar a insistência do Brasil no acordo assimétrico de livre comércio com a União Europeia não é tanto a sua necessidade comercial, mas sua própria concepção geopolítica; é um TLC que não está sendo promovido nem com a Rússia nem com a China.

O fracasso do Banco do Sul, sonhado por Chávez e construído em outro canto do mundo por Xi Jinping, Putin e outros líderes, tem muito a ver com o austero, para não dizer inexistente, auxílio do Brasil nessa política que teria colocado a América Latina em outra situação geopolítica e que, com certeza, tornaria impossível a situação que hoje enfrentamos como povos da região.

O que hoje é anunciado como vitórias sobre o dólar com cestas de moedas ou sistemas de comércio com moedas e mecanismos de compensação, foi pensado cedo na Nossa América e proposto como SUCRE, que recebeu todos os possíveis obstáculos por parte do Brasil, de Lula e Dilma, obstáculos que hoje ele não enfrenta à frente do Banco dos BRICS.

Não merece consideração, por ser obsceno e óbvio, as distrações diante da situação de golpismo no Peru, do intervencionismo na Bolívia e Guatemala, mas da ponderação de dispositivos pan-americanistas como a OEA. Sua oficiosa intermediação para liberar opositores levou à ruptura de relações com a Nicarágua, com expressões grosseiras de Lula sobre o presidente Ortega, assim como já havia feito contra o presidente Maduro. A grosseria não é uma virtude dos estadistas, mas o contrário.

Entre os BRICS e o atlantista G20

O Brasil é a única expressão americana nos BRICS devido à deserção da Argentina após sua convocação. Além disso, é o país com maior inserção no âmbito de influência atlantista dentro dos BRICS, que são todos asianistas ou do Sul Global.

Está à frente do Novo Banco de Desenvolvimento e Investimentos dos BRICS, com Dilma Rousseff como presidente. Banco cujas competências permitem assistir financeiramente países endividados e financiar obras de infraestrutura. O fato é que uma entidade com a importância e o papel que o NBD ou Banco dos BRICS possui não tem sido suficientemente dinâmica nem presente diante de desafios pontuais da associação, o que coloca em dúvida o entusiasmo que a liderança carioca demonstra na construção de uma engenharia financeira para a nova ordem global.

A participação permanente do país em fóruns internacionais da Ordem baseada em regras expõe não só as aparentes contradições da diplomacia brasileira, mas também a intenção de jogar em dois lados que se tornam cada vez mais antagônicos.

Sua luta pela reforma do Conselho de Segurança evidencia uma aposta na reprodução da ordem baseada em regras, que se tem mostrado impotente para enfrentar os problemas contemporâneos mundiais. A ausência da China em âmbitos como o G7 ou o envio de missões de segundo nível tanto da China quanto da Rússia para a institucionalidade da ordem global é um claro sintoma do crescente desinteresse das potências mundiais nesses espaços, valorizando outros, como as próprias cúpulas dos BRICS, Organização de Cooperação de Xangai e outras instâncias.

Além disso, ao reforçar sua pretendida autonomia, posicionou-se com uma neutralidade insustentável frente a conflitos globais nevrálgicos, como o ataque da OTAN por meio de uma guerra por procuração contra seu parceiro Rússia. Sustentou a responsabilidade compartilhada dos beligerantes e propôs-se a organizar uma espécie de Clube da Paz.

Com seu outro parceiro estratégico, a China, cometeu um gesto inexplicável que foi a designação, em junho passado, por parte de Brasília, de um embaixador do mesmo nível hierárquico do chefe da missão brasileira na China para atuar em Taipé, capital de Taiwan, que desfaz a tradição diplomática do país de respeitar o princípio de “uma só China”.

A manifesta intenção francesa e europeia de internacionalizar a Amazônia com proteção militar da OTAN não parece ser um inconveniente nem uma afronta à soberania brasileira diante de uma diplomacia que defende o fortalecimento dos laços com o primeiro-ministro francês.

Claro que podemos encontrar altos e baixos na trajetória política do governo de coalizão do PT, gestos em que impõe liderança questionando sanções à Venezuela ou bloqueio a Cuba. Ao mesmo tempo, ensaia manobras militares junto ao Comando Sul na área em questão, em pleno conflito da Venezuela pelo Esequibo com a Guiana.

Mais cedo ou mais tarde, o Brasil terá que tomar uma decisão firme e clara, sem ambiguidade, porque não tem as capacidades de outras potências regionais para ganhar autonomia pretendendo seduzir a Deus e ao Diabo. «Mas porque és morno, e não és frio nem quente, estou a ponto de te vomitar da minha boca» e esse não é um bom final… (Ap 3:16)

Podem-se entender gestos que consolidam sua liderança, mas não gestos que permitam perder território em mãos do atlantismo. Brasil, Lula, Itamaraty parecem estar protagonizando a construção de um mundo multipolar no qual não acreditam e vinculados intelectualmente a uma utopia de mundo apolar.

Não se trata de uma crítica à sua diplomacia, mas de apontar a responsabilidade histórica que o Brasil tem em facilitar e acelerar a consolidação da multipolaridade e a defesa da integridade territorial da Nossa América, abraçando a Bolívia e a Venezuela; ou permitir o fortalecimento dos decadentes Estados Unidos, para se refugiar em um espaço de conforto que lhe permita coexistir enquanto se desenvolve na utopia imperdoável de que o escorpião deixe de ser escorpião.

Enfraquecer Nossa América importa no enfraquecimento do Brasil, embora sua elite seja incapaz de entender isso.

Fonte: PIA Global

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Fernando Esteche

Fernando Esteche é líder político, doutor em comunicação social e diretor geral da PIA Global.

Artigos: 39

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