Da Apropriação de Dioniso pelo Wokismo

Os defensores do macronismo estético que apareceu na abertura das Olimpíadas de Paris agora se escondem por trás da figura de Baco, tentando legitimar a exibição grotesca com apelos à religião dos antigos gregos. Mas será que faz sentido essa narrativa?

A saída encontrada pela militância progressista ocidental para defender os rituais organizados por Macron e Jolly para a abertura das Olimpíadas, agora, é dizer que os eventos nada tinham a ver com a Última Ceia, porque a criatura azul que aparece na mesa é “Baco”.

E “Baco” é um deus grego! E as Olimpíadas são gregas! Tudo resolvido!

Por algum motivo ninguém deveria se incomodar com a profanação de uma miríade de símbolos e princípios religiosos e culturais, tampouco com a presença de uma criança em um evento que contou com uma pessoa com a genitália de fora – a qual inclusive estava colada na criança – basicamente porque alguém vomitou alguma “explicação” vagabunda qualquer pra dizer que o que aconteceu não tem nada a ver com o Cristianismo.

Os “pagãos” e todos aqueles que estudaram as religiões europeias antigas discordam.

Em primeiro lugar, uma diferenciação que precisa ser feita é que toda religião tem os seus deturpadores e corruptores. Toda religião tem as suas “heresias”, “seitas” e “profanações”. E isso vale tanto para as religiões europeias antigas quanto para o Cristianismo ou o Islã.

Cada deus possuía inúmeros aspectos. Cada aspecto de um deus tinha as suas próprias formas de culto, não raro os seus festivais específicos. E isso, ademais, podia variar radicalmente também conforme a geografia. O mesmo deus cultuado, por exemplo, em Atenas e Esparta poderia aparecer com características muito diferentes, dependendo de uma série de circunstâncias históricas, culturais ou mesmo espirituais.

Nesse sentido, cada deus era como se fosse muitos deuses, e nessa multiplicidade nem tudo era permitido ou autorizado. Os gregos e romanos tinham autoridades religiões, tinham noções de legitimidade espiritual, e o Estado (que era, também, religioso) regulamentava os cultos – não raro banindo e perseguindo os cultos considerados ilegítimos, corruptores ou ofensivos aos deuses.

Assim, é necessário olhar com atenção para essa noção aí de que Dioniso seria o deus das orgias poliamoristas e pós-gênero envolvendo crianças, para ver se isso tem fundamento na religião grega e na religião romana em suas manifestações tradicionais.

Quanto ao Dioniso/Baco, divindade à qual alguns atribuem uma origem trácia e outros uma origem paleo-helênica (a qual, inclusive, o aproxima de Shiva), ele era uma divindade agrícola ligada à fertilidade e aos frutos da terra, especialmente do cultivo de uvas e da produção do vinho. Por isso mesmo, ele estava associado ao êxtase espiritual e à iluminação extática.

Dioniso, não obstante, é um legislador dos costumes e foi ele quem ensinou os gregos a misturar o vinho com a água e exigia moderação em tudo (e, inclusive, na moderação – como exceção). Dioniso “pune” aqueles que desrespeitam os limites e abraçam o excesso desmesurado.

Dessa forma, se estivermos falando da dimensão social dos festivais de Dioniso, ele é o deus que demanda que seus cultistas bebam vinho (misturado com água) até ficarem alegres… e de vez em quando pode exagerar. Mas mesmo essa dimensão social é apenas um pequeno aspecto do culto.

Na Grécia, entre os festivais mais importantes a Dioniso tem-se a Dionísia, a Antestéria, a Haloa, a Ascólia e a Lenaia. Nenhum desses festivais envolvia “orgias” ou tinha qualquer sentido de “superação do gênero” ou sei lá o que.

Esses festivais envolviam, com as especificidades de cada um, procissões religiosas, apresentações teatrais, símbolos fálicos, abundância de alimentos e o consumo moderado de vinho. A Dionisía incluía uma folia de rua, a Antestéria, que era um festival dos mortos, envolvia libações aos mortos. Alguns festivais dionisíacos (ou os momentos de alguns festivais) eram exclusivos para as mulheres – e não tinha margem pra um homem dizer que era mulher e participar, a conceituação que os gregos tinham dos sexos era rígida.

Já nos mistérios, como os mistérios dionisíacos, nos eleusinos e no orfismo, Dioniso é vinculado ao ciclo de nascimento-morte-ressurreição, tanto em um sentido agrícola como em um sentido mais elevado. No orfismo, por exemplo, a morte de Dioniso pelas mãos dos Titãs, que comem a carne do deus, leva à incineração dos Titãs por um raio de Zeus. Das cinzas nasce o homem – o qual, portanto, teria tanto uma natureza material, titânica, quanto uma fagulha divina, aquela parte do deus Dioniso ingerida pelos Titãs.

Dioniso, nesse sentido, é o deus que liberta o homem em relação aos aspectos titânicos (materiais) que oprimem a sua fagulha divina. Os orfistas, aliás, eram ascetas. Nem em moderação ingeriam vinho, e a sua iluminação era alcançada por outras técnicas.

Nos mistérios dionisíacos, porém, a intoxicação moderada desempenha um papel, a qual leva a um transe junto aos batuques, flautas e danças dos cultos. No frenesi da dança, entendia-se que o iniciado era preenchido pela energia divina do Dioniso e se tornava “um” com o deus.

De um modo geral, Dioniso era um deus popular em todos os sentidos, porque ele representava para os plebeus a possibilidade cíclica de momentos de descontração, de abundância e mesmo de violação de certas normas sociais de separação entre estamentos e sexos.

Novamente, aqui em momento algum encontramos fundamento para as insinuações “wokes” que querem justificar o “grotesco” com apelos superficiais (feitos por ateus) a Dioniso.

E em Roma?

Os romanos já tinham o seu “deus do vinho” antes da importação de Dioniso, era Liber Pater, da Tríade Aventina, filho de Ceres e irmão de Libera. Essas divindades eram consideradas protetoras dos plebeus, de suas liberdades políticas e de suas prerrogativas.

O seu festival, a Liberalia, era um festival da fertilidade que envolvia, também, a iniciação dos adolescentes em homens adultos. Apenas mulheres podiam ser sacerdotisas de Liber, mas essas sacerdotisas eram mulheres idosas que distribuíam bolos de mel durante a Liberalia. Em geral, como Liber era um deus das sementes e da potência das sementes, isso estava associado tanto à agricultura quanto à semente masculina, de modo que suas procissões envolviam réplicas de falos.

O Baco romano, porém, foi uma introdução estranha de Dioniso em Roma, feita na mesma época da introdução do culto de Magna Mater (Cibele) em Roma. Ele teria sido introduzido por algum sacerdote grego desconhecido na zona rural da Etrúria, onde se realizavam bacanálias em homenagem ao deus.

Nessas bacanálias, que diferentemente dos cultos tradicionais a Dioniso na Grécia e a Liber eram eventos privados, ingeria-se vinho em excesso e se realizavam orgias.

Essa situação durou alguns anos até que as autoridades político-religiosas romanas descobriram essa seita, prenderam milhares de sacerdotes e adeptos, os executaram como profanadores da Tradição, e promulgaram uma lei para regulamentar o culto de Baco em Roma.

A partir de então, o culto de Baco passou a seguir as diretrizes romanas tradicionais, com homens banidos do sacerdócio e qualquer festividade precisando de autorização do Senado.

Naturalmente, orgias em homenagem a Baco possivelmente continuaram acontecendo em alguns lugares, mas onde fossem descobertas eram punidas com a morte.

Eventualmente, essas seitas báquicas ilegais se sincretizaram com o culto subterrâneo de Magna Mater, os quais se ressentiam da romanização de Cibele, e que envolvia o elemento da castração ritual. Dioniso, aí, às vezes ocupa o lugar de Átis como filho-amante de Cibele, é o deus visto a partir do mundo dos titãs, a partir das profundezas.

Na contramão dessas tendências, Dioniso reaparecerá em Juliano como sendo uma das três manifestações do Sol e como um dos Demiurgos, o responsável pela criação do mundo das percepções sensoriais. Em outras palavras, como um “Ser do ente”, “o Sol dos sentidos”.

A conclusão aqui é que quando os liberal-progressistas apelam à “religião dos gregos e romanos” e a Dioniso, eles estão tão somente falsificando as religiões antigas, e apelando às práticas de minúsculas seitas consideradas criminosas e rechaçadas como ímpias pelas legítimas autoridades religiosas do mundo greco-romano.

E essas seitas eram perseguidas porque se considerava que suas práticas violavam os elementos fundamentais da espiritualidade tradicional.

Acrescento que, filosoficamente, Dioniso e o dionisíaco nada têm a ver com a concepção liberal de liberdade (ou seja, fazer o que dá na telha), com orgias, com as pautas da ideologia de gênero ou do poliamorismo, ou qualquer coisa do tipo.

Em Nietzsche, por exemplo, Dioniso é como a outra face de Apolo, ele é o deus do eterno retorno do mesmo na medida em que o dionisíaco jaz no reconhecimento do caráter trágico e caótico da existência como motivador não da inação, mas da afirmação absoluta da vida. Ele é, para Nietzsche, inseparável de Apolo e é do equilíbrio entre ambos que Nietzsche afirma nascer a tragédia grega (bem como toda arte realmente sublime). Nesse sentido, apesar do dionisíaco nietzscheano abarcar alguns aspectos cibelinos (o que só é solucionado por Dugin), a filosofia nietzscheana não é uma de triunfo de Dioniso sobre Apolo, mas de união entre ambos.

Dioniso é o deus da transcendência imanente, da encarnação do incriado, do presenciamento, do fenômeno e do manifesto, do sol que brilha à noite, da linha do horizonte separando o céu e a terra. Aristóteles, por exemplo, é um filósofo do dionisíaco na medida em que é um filósofo dos entes manifestos e das leis naturais que os regem (enquanto, por sua vez, Platão é um filósofo do apolíneo). Mesmo a metafísica aristotélica é, nesse sentido, dionisíaca.

Cristo, da mesma maneira, é uma figura dionisíaca: Deus-Homem, um imortal que é morto e triunfa sobre a morte, a historicização da eternidade, basta recordarmos também o simbolismo da Eucaristia, a própria descida ao Hades, os elementos agônicos da Paixão de Cristo que culminam com o triunfo do Espírito (o qual, ademais, espiritualizará a carne no Fim dos Tempos). Tudo isso é dionisíaco, porque o dionisíaco, noologicamente (à luz das obras de Dugin), é simplesmente uma “modalidade” do intelecto que se expressa na realidade.

Não se “resolve”, portanto, a questão do ritual da abertura das Olimpíadas de Paris alegando que trata-se, ali, de Baco, quando os próprios Cristo e Dioniso possuem uma certa associação simbólica.

Quando se toma a Santa Ceia, com os apóstolos substituídos por personagens semelhantes aos “galli”, os sacerdotes eunucos de Cibele, e se apresenta como banquete desses sacerdotes-apóstolos um Baco visto a partir do subterrâneo como patrono das orgias, do poliamorismo, do triunfo da carne e da matéria sobre o Espírito, das liberdades negativas, etc., fica muito mais claro o tipo de paródia e inversão que se tenta fazer ali.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 41

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