As ONGs, por baixo do verniz idealista e humanitário, fazem parte intrínseca da lógica de dessoberanização e diminuição do Estado, na medida em que constituem entes privados, vinculados a interesses corporativos, que se substituem ao governo nos serviços públicos abandonados pela submissão à lógica neoliberal.
A “gerencialização” do Estado, imposta com grande arrogância após 1989, corresponde, na verdade, à sua neutralização ou, mais precisamente, à sua subsunção à dinâmica econômica que levou à realização da profecia de Foucault: “devemos governar para o mercado, em vez de governar por causa do mercado”.
A inversão do equilíbrio tradicional de poder finalmente levou à transição do mercado sob a soberania do Estado para o Estado sob a soberania do mercado: em meio ao cosmopolitismo liberal, o Estado não é mais do que o executor da soberania do mercado.
Celebrada pela nova esquerda pós-gramsciana e sua agenda (que coincide cada vez mais claramente com a da elite liberal), a abolição da primazia do Estado ajudou a liberar não as classes dominadas, mas a “fera” que é o mercado.
Na era do Estado com soberania limitada ou dissolvida, a prerrogativa de superiorem non recognoscens é adquirida de forma estável e direta pela elite globalista, que assume a aparência de senhor neofeudal e a exerce por meio de órgãos que refletem seus interesses – do BCE ao FMI. A economia global adquiriu o status de um poder que não reconhece nada como superior.
Os órgãos privados e supranacionais mencionados acima destroem qualquer possibilidade de abordar com recursos públicos as questões sociais dramáticas e urgentes ligadas ao trabalho, ao desemprego, à miséria crescente e à erosão dos direitos sociais.
Na ausência do poder de construção do Estado, as elites plutocráticas liberal-libertárias pregam abertamente e praticam discretamente, em seu próprio interesse, a moderação salarial, o controle das contas públicas e, é claro, a sanção de qualquer descumprimento. Ao mesmo tempo, elas podem recuperar tudo o que perderam nos conflitos de classe, ou seja, tudo o que o movimento dos trabalhadores conseguiu obter durante o século XX – o século das conquistas sociais e dos trabalhadores, e não apenas das “tragédias políticas” e dos totalitarismos genocidas: do direito de entrar no local de trabalho à formação de sindicatos, da educação gratuita para todos aos fundamentos do estado de bem-estar social.
Além disso, o fanatismo econômico de classe pode facilmente usar as ideologias do passado, ligadas a projetos políticos ignominiosamente fracassados, como um recurso simbólico negativo para se legitimar. Ele agora pode se apresentar como preferível a qualquer experiência política anterior, ou liquidar a priori qualquer projeto de regeneração do mundo e qualquer paixão utópica-transformadora, imediatamente equiparada às tragédias do século XX.
Desde 1992, a proclamação do Fim da História tem sido proposta como o resumo ideológico do mundo atual, totalmente subsumido pelo capital. Emblemática da filosofia destinista do progresso capitalista na história, ela conseguiu incutir na mentalidade geral a necessidade de se adaptar às novas relações de poder. E isso, além disso, com a consciência – cínica ou eufórica, conforme o caso – de ter chegado ao fim da aventura histórica ocidental, concluída com a liberdade universal do mercado planetário e a humanidade reduzida ao estado de átomos consumidores solitários, com uma vontade de poder abstratamente ilimitada e concretamente coextensiva com o valor de troca disponível.
Funcional para o alinhamento geral com o imperativo do ne varietur, a desmistificação pós-moderna das grandes metanarrativas tem andado de mãos dadas com a imposição de uma única grande narrativa autorizada e ideologicamente naturalizada em uma única perspectiva aceita como verdadeira: a desgastada narrativa e a abusiva vulgata liberal do Fim da História no quadro pós-burguês, pós-proletário e ultracapitalista, inaugurado com a queda do Muro e com a cosmopolitização real do nexo de força capitalista.
Basta lembrar aqui, com a ajuda de um exemplo concreto de nosso próprio tempo, o papel das chamadas “organizações não governamentais”. Juntamente com empresas multinacionais e desterritorializadas, elas desafiaram a predominância do Estado. Por trás da filantropia com que essas organizações afirmam agir (direitos humanos, democracia, salvar vidas etc.) estão os interesses privados do capital transnacional.
As organizações não governamentais, de fato, reivindicam de baixo para cima e da “sociedade civil” as “conquistas da civilização”, os “direitos” e “valores” estabelecidos de cima para baixo pelos senhores do globalismo nivelador que “per sé fuoro” (Inferno, III, v. 39), os novos conquistadores financeiros e guardiões do grande empreendimento do mercado supranacional sob a hegemonia da especulação capitalista privada.
Essas conquistas, esses direitos e esses valores são sempre e somente os da classe mundial competitiva, ideologicamente apresentados como “universais”: demolição de fronteiras, derrubada de Estados párias (ou seja, todos os governos não alinhados com a Nova Ordem Mundial unipolar e centrada nos Estados Unidos), incentivo aos fluxos migratórios em benefício do cosmopolitismo corporativo, dessoberanização, desconstrução dos pilares da ética burguesa e proletária (família, sindicatos, proteção ao trabalho etc.).
Sob essa perspectiva, por baixo do verniz humanitário das ONGs, descobrimos o cavalo de Troia do capitalismo global, o painel da elite cosmopolita, com sua regra fundamental implacável (negócios são negócios) e seu ataque à soberania dos Estados.
Se não forem analisadas de acordo com o esquema imposto pela hegemonia da aristocracia financeira, as organizações não governamentais se revelam um meio poderoso de contornar e minar a soberania do Estado e de implementar, passo a passo, o plano globalista da classe dominante para a liberalização definitiva da regulamentação política dos Estados-nações soberanos como os últimos bastiões das democracias.
O confronto entre as ONGs e as leis dos Estados nacionais não esconde, como repetem os mestres do discurso, a luta entre a filantropia, a do “amor à humanidade”, e o autoritarismo desumano; pelo contrário, encontramos nele a guerra entre a dimensão privada dos lucros dos grupos transnacionais e a dimensão pública dos Estados soberanos que eles sitiam.
Mais precisamente, para aqueles que se aventuram além do teatro vítreo das ideologias e afirmam a vontade de saber da memória foucaultiana, no horizonte da globalização como um novo estágio no conflito cosmopolitizado entre Senhor e Servo (Mestre e Escravo, Hegel), as organizações não governamentais parecem ser os instrumentos ideais para impor uma agenda política amadurecida fora de qualquer processo democrático e protegendo exclusivamente os interesses concretos da classe hegemônica.
Além disso, graças ao trabalho diligente dos anestesistas do espetáculo, o último difama como “soberanista” – mais uma categoria fraudulenta inventada pela neolinguagem dos mercados – qualquer um que não diga adeus de uma vez por todas ao conceito de soberania nacional. Como um bastião da defesa das democracias desenvolvidas dentro dos Estados que ainda resistem à Nova Ordem Mundial (que é pós-democrática da mesma forma que é pós-nacional), o objetivo é que a própria noção de soberania nacional seja ideologicamente degradada em um instrumento de agressão e opressão, intolerância e xenofobia.
Fonte: Posmodernia