Perón e o Brasil

As reflexões de Vargas seriam familiares para qualquer peronista e, certamente, foram familiares para Perón. As coincidências, porém, não devem surpreender. Nas convicções políticas de ambos estava um traço comum direcionado para a concretização da multipolaridade na América Ibérica.

Nos anos 70, em uma entrevista, ao ser perguntado sobre o presidente brasileiro Getúlio Vargas, Juan Domingo Perón disse o seguinte:

Ele tinha conexões argentinas mais profundas do que as pessoas poderiam supor. Era um homem do Sul, um riograndense gaúcho até a medula, que sentia o genuinamente crioulo como não sentem muitos dos nossos compatriotas. Eu o considero um governante excepcional, e seu fim trágico me perturbou. Sua decisão envolvia uma advertência que eu não soube aproveitar. Eu pensei, à época, que comigo não aconteceria o mesmo.

Para Perón, Vargas aparece claramente como uma contraparte, uma espécie de espelho brasileiro, e apesar de diferenças biográficas óbvias, ele via em Vargas também o prenúncio do próprio destino, de sua ruína, se pudermos falar nesses termos.

Para que isso seja mais compreensível para o público argentino, é relevante recordar a Carta-Testamento de Getúlio Vargas, amplamente circulada pelos jornais de todo o mundo à época de sua morte, onde ela diz o que segue em determinado momento:

Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho.

As reflexões de Vargas seriam familiares para qualquer peronista e, certamente, foram familiares para Perón. As coincidências, porém, não devem surpreender: Brasil e Argentina eram países pertencentes à mesma civilização ibero-americana e se deparavam com os mesmos problemas.

Não é surpresa, portanto, que os dois países, sob a liderança de Vargas e Perón, trilharam caminhos semelhantes de libertação e sofreram reações vindas dos mesmos setores, que os derrubaram e reescravizaram os países.

Estariam os destinos de Brasil e Argentina entrelaçados?

Perón provavelmente entendia assim. Afinal, ao falar sobre a Nossa América, Perón disse:

“O ano 2000 nos encontrará unidos ou dominados”

Por isso, pensou Perón, como ponto de partida, no Pacto ABC. A Argentina, que a partir de suas condições concretas já pensava nos termos de um “Movimento Não-Alinhado” em relação às superpotências em choque na Guerra Fria, mesmo antes da criação formal do movimento em questão, queria atrair Brasil e Chile para um projeto de integração que permitisse que esses países (e depois outros) coordenassem seus interesses e suas necessidades.

As circunstâncias, porém, eram extremamente adversas. Quando Perón entrou em conflito com a junta militar argentina em 1945, Vargas ofereceu a possibilidade de asilo em Brasil. Quando Perón chegou ao poder em 1946, Vargas já havia sido derrubada.

No início dos anos 50, quando os dois estavam no poder, foi a melhor oportunidade de aproximação entre nossos países, o que gerou inúmeros entendimentos bilaterais, mas o Brasil já estava sob forte pressão dos EUA, consequência da infiltração estadunidense no Brasil que já vinha desde os últimos anos da Segunda Guerra Mundial.

Nesse sentido, enquanto Vargas favorecia o Pacto ABC, os setores antivarguistas, cada vez mais fortes, se opuseram à união com a Argentina em prol dos interesses norte-americanos. Vargas, para tentar preservar a estabilidade nacional, tentou apaziguar as facções reacionárias suspendendo a adesão do Brasil ao Pacto ABC.

Isso não adiantou para impedir a sua queda e sua morte.

O peronismo e o varguismo, porém, permaneceram como legados político-ideológicos, e até mesmo filosóficos, que constituem autênticos esforços originais pela superação, a partir da realidade ibero-americana, do liberalismo, do comunismo e do fascismo, no espírito de intentos de construir quartas teorias políticas, e até mesmo teorias da multipolaridade. Nisso tudo, Perón via a integração continental como indispensável, e a parceria Brasil-Argentina como o passo fundamental. Sem a integração, todos os países da região estariam subjugados. E sem a aproximação com o Brasil não haveria integração.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

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