Na volta a gente conversa: os erros e acertos da reforma tributária de Haddad

Após a votação da Proposta de Emenda à Constituição 45/2019, que estabeleceu a simplificação dos tributos sobre consumo (PIS/Cofins, ICMS e ISS), além da criação de um imposto seletivo (em substituição ao IPI), cabe uma análise verificando os méritos e deméritos da PEC. Nosso economista, Deivid Jorge, analisou o tema.

Antes tarde do que nunca, já dizia o poeta. Em um país que há décadas apresenta indicadores lamentáveis em termos de desempenho econômico, uma reforma tributária que simplifique nossos tributos e amenize a estrutura caótica do sistema tributário brasileiro é fundamental para o crescimento e desenvolvimento do país.

Apenas a título de informação: uma empresa no Brasil gasta, em média, 1.958 horas no ano para pagar impostos no país, enquanto que, para uma média de 190 países, essa cifra chega a 209 horas [1]. A mediana do contencioso tributário administrativo, ou seja, os autos de infração lavrados pela fiscalização tributária a nível federal e questionados na esfera administrativa, é de 0,28% para os países da OCDE e é de 0,19% para os países da América Latina (excluindo o Brasil), enquanto que, para o Brasil, tal número chega a 15,9% [2], o que coloca o país em uma situação pouco atraente para qualquer empreendimento.

Mas a realidade nacional nesse quesito consegue ser pior: 

  1. Diferentes produtos com diferentes alíquotas dificultam o cálculo de impostos no país, o que consequentemente cria uma barreira aos investimentos;
  2. A tributação na origem acirra a guerra fiscal entre os estados e concede poder de barganha a grupos empresariais oportunistas que, após terem usufruído de benefícios fiscais (seja por redução de alíquota, crédito presumido, redução da base de cálculo ou mesmo isenção tributária por décadas), fazem suas malas e vão embora da região que estavam, sugando cada vez mais os recursos fiscais dos entes federativos sem nenhuma contrapartida justa;
  3. A cumulatividade dos impostos do país, isto é, a oneração da produção em cada fase da cadeia produtiva, prejudica o setor industrial, uma vez que este possui cadeias mais longas em comparação com outros setores da economia. Além de ser um incentivo à verticalização produtiva, isto é, a centralização da cadeia de produção em uma mesma empresa, inviabilizando a formação de economias de escala e impedindo ganhos de produtividade para a economia nacional, além de desincentivar o avanço das pequenas e médias empresas;
  4. O atual sistema regressivo penaliza os mais pobres, uma vez que grande parte da tributação incide sobre o consumo, colocando uma carga tributária desproporcional sobre as famílias de baixa renda, já que gastam grande parte dos seus recursos em itens de necessidade básica.

É louvável, portanto, uma reforma tributária que busque combater todas estas deficiências que prejudicam o organismo econômico do país. Mas ainda existem pontos que exalam desconfianças.

Por exemplo, como forma de compensação à criação de uma alíquota única para quase todos serviços [3], o que manteria a regressividade tributária sobre o consumo, a proposta em tramitação prevê a criação de um  cashback, que seria uma forma de devolução de parte dos impostos pagos às famílias carentes. Não se sabe ao certo como será realizado, tampouco se será o suficiente para que essa compensação seja realizada de forma justa, já que o texto da PEC suscita que o mecanismo citado seja regulado por lei complementar a ser realizada posteriormente.

Outro item que ficou para o ‘na volta a gente vê’ é a reforma que consiste na tributação sobre  a renda. Cabe assinalar que uma característica notável do imposto sobre a renda no Brasil é sua baixa progressividade, além de ser um dos poucos países em que os dividendos são isentos de tributação, introduzida em 1995, e a possibilidade das pessoas jurídicas reduzirem a tributação devida a partir de uma despesa fictícia denominada juros sobre capital próprio (JSCP).

Esse perfil do sistema tributário brasileiro sobre a renda tem raízes em prescrições do mainstream macroeconômico dos anos 80/90, chamado de ‘tributação ótima’, e cujo os próprios proponentes já realizaram, por assim dizer, um ‘mea culpa’ [4]. A premissa era de que tributar menos os ricos geraria incentivos, induzindo mais crescimento e desenvolvimento econômico, o que beneficiaria toda sociedade, o chamado “tricke down”. Entretanto, tal ideia caiu em descrédito ao longo das décadas pela ausência de dados conclusivos sobre tais efeitos.

Ainda em relação à tributação sobre a renda no Brasil, é importante frisar que nem mesmo Reagan conseguiu fazer o que o governo brasileiro fez, isto é, isentar por completo o imposto sobre dividendos [5]. Além disso, enquanto nos EUA o avanço liberal-conservador e neocon foi parcialmente revertido durante os governos democratas, no Brasil não houve nenhuma reforma sobre o IRPF visando ampliar sua progressividade nos últimos 30 anos da Nova República, dos quais mais de 12 anos foram sob um governo de centro-esquerda.

Esse histórico brasileiro é suficiente para gerar uma dose de desconfiança em relação ao processo de implementação em etapas da reforma tributária, levantando o risco de um adiamento indefinido em relação a temas fundamentais que dizem respeito à justiça social.

Outros problemas da proposta é a alíquota padrão do IVA – Imposto de Valor Agregado – definida em estrondosos 25%, o que colocaria o Brasil bem acima da maioria dos países que adotam este sistema. A média dos países da OCDE é de 19%, e na União Européia é de 21%, enquanto o Japão usa uma taxa de apenas 10%. Teríamos a segunda maior alíquota padrão do mundo, atrás apenas da Hungria, que definiu o valor em 27%. Tal configuração continua penalizando os mais pobres, que continuarão sendo os mais afetados nos impostos sobre o consumo. Além disso, no que diz respeito à tributação sobre patrimônio, o texto da PEC apresenta medidas apenas pontuais, como IPVA sobre jatinhos, iates e lanchas, bem distante de uma proposta “radical”, como imposto sobre grandes fortunas.

Entre erros e acertos, a proposta em questão revela uma falta de audácia no que diz respeito à justiça tributária, caso essa tenha sido realmente sua intenção. Fica evidente que a prioridade é constantemente favorecer as classes mais privilegiadas – sobretudo as empresariais – como inclusive é de praxe nesse país, enquanto as classes menos favorecidas são deixadas em segundo plano, sendo atendidas segundo o “na volta a gente conversa”.

★★★

[1] WORLD BANK GROUP. Training for Reform. [s.l: s.n.]. Disponível aqui.

[2] CANADO, V. et al. Contencioso tributário no Brasil. Núcleo de Tributação do Insper. [s.l: s.n.]. Disponível aqui.

[3] O texto prevê a criação de duas alíquotas: uma padrão de 25%, outra reduzida para serviços de transporte público coletivo, medicamentos, serviços de saúde, educação e etc. e ainda isenção para alguns serviços, como medicamentos específicos, programas como o Prouni e ainda mantém regimes diferenciados como o Simples e a Zona Franca de Manaus.

[4] BANKS, J.; DIAMOND, P. The base for direct taxation. In: IFS – INSTITUTE FOR FISCAL STUDIES (Ed.). Dimensions of tax design: the Mirlees review. Oxford University Press 2010. p. 548-648.

[5] GOBETTI, S. W.; ORAIR, R. O. PROGRESSIVIDADE TRIBUTÁRIA: A AGENDA NEGLIGENCIADA. In: Discussion Papers 2190, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA.

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Deivid Jorge

Deivid Jorge é membro da NR- GO e mestre em economia.

Artigos: 54

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