Na história, os princípios fundamentais se atualizam de tempos em tempos. É o que vemos no atual confronto mundial que coloca Rússia contra os EUA, atualizações contemporâneas de Roma e Cartago respectivamente. Aqui não se trata meramente de “conflito de interesses”, mas de um embate essencial entre princípios espirituais intrinsecamente opostos.
Aparecendo em meados do século IX, a expressão latina translatio imperii[1] indicava originalmente o conceito de que o imperium Romanorum tinha se mudado de Constantinopla para Roma. De fato, acreditando que em Constantinopla o trono imperial havia permanecido vago, já que foi ocupado por uma mulher, Irene de Atenas, o Papa Leão III havia coroado o rei dos lombardos e francos, Carlos, em Roma, dando-lhe o título de Imperador dos Romanos. Posteriormente escritores curialistas puderam formular a doutrina que Leão III, o verdadeiro autor da translatio, havia demonstrado o poder de disposição da Santa Sé sobre o Império.
Na realidade, a primeira transferência geográfica do imperium havia ocorrido quando Constantino, motivado por razões estratégicas, fundou uma nova sede imperial nos pars Orientis do Império Romano, no território da antiga Bizâncio. O ato oficial de fundação da nova capital ocorreu em 11 de maio de 330, quando Constantino, como Pontifex Maximus, desenhou com sua lança o perímetro sagrado das muralhas[2]. Entretanto, embora o antigo ritual de fundação tivesse sido respeitado, Constantinopla estava a caminho de tornar-se uma cidade cristã: ao lado dos templos da religião tradicional, a igreja de Santa Sofia já estava sendo construída.
Tendo assumido “o papel de continuação político-institucional da Roma imperial”[3], a nova capital recebeu o título de “nova Roma”[4] do conselho ecumênico de Constantinopla em 381; Depois, como resultado do saque da Urbe em 410 e do estabelecimento do reinado de Odoacro em 476, Roma e Itália declinaram ainda mais, de modo que qualquer função político-imperial efetiva, que havia desaparecido no pars Occidentis, passou para Constantinopla, onde o basileu continuou a representar a autoridade política sobre todo o território do Império Romano. “O aspecto formal mais óbvio desta continuidade se encontra no caráter ‘romano’ permanente do imperador de Constantinopla (da politeia ou basileia), como refletido nos títulos e designações oficiais. De um ponto de vista material (geopoliticamente, se preferir) a inclusão dos russos na ecúmene romano-cristã é relevante aqui”[5]; de fato, já antes do chamado “batismo da Rus” em 988 (em 907, 911, 944 e 971) já estavam concluídos tratados entre príncipes russos e imperadores “gregos”[6].
A conquista otomana de Constantinopla iniciou um processo que amadureceu a ideia de Moscou como a Terceira Roma. Um evento decisivo foi, em 1º de junho de 1472, o casamento de Zoe (Sofia) Paleóloga, neta e herdeira do último imperador Constantino XI, com o Grão-Príncipe Ivã III de Moscou, que considerou legítimo dar-se o título imperial de Czar (de César) e introduzir o símbolo da águia de duas cabeças.
Outro evento de particular importância ocorreu em 1492, que de acordo com a datação russa estabelecida correspondia ao ano 7000 desde a criação e que deveria marcar o fim do mundo. De fato, esse foi um ano fatídico, que inaugurou uma nova era histórica, entre outras coisas estendendo o poder do Sacro Império Romano “Plus oultre” (de acordo com a divisa de Carlos V), para que as mudanças produzidas na Europa Ocidental fizessem “sobressair ainda mais a continuidade oriental, da Segunda à Terceira Roma”[7]. Entretanto, o fim do mundo esperado pelos russos não aconteceu; então, “como o calendário tinha que ser refundado, ele foi estabelecido com base num novo plano providencial que tinha em seu centro o papel que Moscou, após a queda das outras duas Romas, teria que desempenhar em nome da autêntica herança cristã, a ortodoxa”[8]. Zósimo, Metropolita de Moscou, anunciou o início do oitavo milênio com estas palavras: “Esperamos o advento do Senhor (…) Constantino o Grande fundou a nova Roma, São Vladimir batizou a Rússia, agora Ivã III é o novo Imperador (Czar) Constantino da nova Constantinopla, Moscou”[9].
Nas primeiras décadas do século XVI, foi o monge Filoteu do mosteiro Eleazarov em Pskov que formulou a teoria de Moscou-Terceira Roma. Embora a “grande Roma (a velikij Rim)” da antiguidade e o “Império Grego (grečeskoe carstvo)” tenham perecido, – afirmou o monge de Pskov – “o Império Romano (romejskoe carstvo) é indestrutível, porque o Senhor foi inscrito [no censo de Augusto ed.] sob o poder romano (rimskaja vlast’)”[10]. A eternidade do Império de Roma, segundo o argumento de Filoteu, não está comprometida pelo colapso das potências imperiais que historicamente precederam o poder imperial russo, já que Roma continua a viver em sua terceira epifania histórica: o Império Russo. “Todos os impérios cristãos”, escreveu Filoteu a Basílio III, Grão-Duque de Todas as Rússias, “chegaram ao fim (priidoša v konec) e foram reunidos (snidošasja) no único Império de nosso soberano, segundo os livros proféticos, ou seja, no Império Russo (roseiskoe carstvo). Duas Romas caíram, mas a terceira permanece firme (stoit) e não haverá uma quarta”[11]. Os mesmos conceitos se repetem na Carta ao Czar e Grão-Príncipe Ivan Vasilevič: “Saiba, Vossa Majestade, piedoso Imperador, que todos os impérios da fé cristã ortodoxa se uniram em seu único Império. Vós sois o único Imperador dos cristãos na Terra”[12].
Em 1547, Ivã IV o Terrível (Grozny) foi coroado pelo Metropolita de Moscou, Macário, com o título de “Czar de Todas as Rússias”. Uma carta sinodal enviada a ele pelo Patriarca constantinopolitano reconheceu seu direito “de ser e ser chamado o legítimo e piedoso Imperador, coroado também por nós legitimamente e eclesialmente, pois, como já dissemos, ele é descendente da linhagem e sangue imperiais e é de benefício para toda a cristandade”[13]. Ivã IV não perdeu a importância política da translatio de Constantinopla a Moscou: “sua Terceira Roma, se religiosamente herdou a universalidade da Igreja ortodoxo-bizantina, assumiu politicamente em si mesma a continuação da universalidade política do império”[14].
O ato final do processo que começou em 1453 ocorreu cinco anos após a morte de Ivã IV, em 1589, quando o Patriarca de Constantinopla Jeremias II Tranos formalizou por decreto a nomeação do Patriarca Metropolitano de Moscou e de Todas as Rússias. A carta fundacional do Patriarcado, redigida por um “sínodo de nosso grande Império russo e grego (soborom našego velikogo rosiiskogo i grečeskogo carstvija)”, citava Moscou como uma “cidade imperial (carstvujuščii grad)” e dirigia-se ao novo czar Teodoro I com estas palavras: “Seu grande Império russo, a Terceira Roma, superou a todos em piedade, e todos os impérios piedosos se reuniram em seu único Império, e entre todos os cristãos diz-se que você é o único Imperador cristão na terra”[15]. Assim, a teoria da Terceira Roma de Moscou “foi incluída (…) em um documento oficial de importância fundamental”[16], que seria posteriormente confirmado em Constantinopla pelo Sínodo dos Patriarcas Orientais.
Filoteu havia mencionado Roma, Constantinopla e Moscou não como capitais políticas, mas como as três sedes da fé cristã ortodoxa que se haviam seguido no curso dos acontecimentos históricos em épocas diferentes. Roma, a cidade do martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo, havia sido dominada pela heresia; Constantinopla havia sucumbido porque, ao concordar em unir-se à Igreja latina sob a autoridade do Papa, havia falhado em sua missão; restando como o único bastião da verdadeira fé havia Moscou.
No entanto, o conceito religioso enunciado pelo monge de Pskov estava destinado a comportar as “implicações geopolíticas”[17] das quais falava Mikhail Agursky, segundo o qual “a ideia da Terceira Roma era precursora daquela que queria a Rússia no centro do desenvolvimento mundial”[18], de modo que “a ideia de uma centralidade da Rússia tornou-se gradualmente mais precisa, quase como um corolário da expansão territorial”[19].
Nem poderia ser de outra forma: a centralidade da Rússia – “aquele imenso império intermediário (Zwischenreich) no qual a Europa, por assim dizer, flui de volta para a Ásia”[20] – induziu a geopolítica a identificar no coração do território russo aquela área geográfica, a chamada Heartland, cujo controle, segundo a famosa fórmula de Mackinder[21], deve necessariamente ser conquistado por aqueles que querem controlar politicamente a Eurásia e, portanto, o mundo inteiro.
Aqui surge espontaneamente a analogia entre a centralidade russa e a centralidade de Roma – a primeira Roma – no antigo Mediterrâneo, assim como a identificação da talassocracia anglo-saxônica (britânica ontem, americana hoje) com o paradigma cartaginês parece bem fundamentada. De fato, se para Simone Weil a nova Cartago era a Inglaterra[22], Oswald Spengler viu uma identidade neocartaginesa na grande potência anglo-saxônica, portadora de um tipo similar de Zivilisation: “Aquele que pensa apenas em termos de meras vantagens econômicas, como os cartagineses fizeram no período romano e como os americanos fazem hoje em muito maior escala, não pode sequer pensar como um puro homem político”[23]. Não é diferente o julgamento de um dos maiores historiadores do século XX, Fernand Braudel, para quem “Cartago, uma cidade nova que cresceu ao ‘estilo americano’ (…) ‘americana’ foi também em sua civilização elementar, que prefere o sólido ao refinado”:[24] aqui, com “formas desumanas e terríveis de devoção (…) uma vida empresarial intensa, que um historiador não hesita em definir como ‘capitalista’ em espírito, é combinada com uma mentalidade religiosa retrógrada”.
Na segunda metade do século passado, um “geopolítico militante”[26], Jean Thiriart, reatualizou o dualismo que tinha colocado Roma e Cartago um contra o outro da seguinte forma: “O modelo perfeito do império marítimo continua sendo Cartago e o modelo perfeito do império continental continua sendo Roma. A luta titânica que atualmente se desenrola e ocorrerá no próximo século será a luta pela hegemonia entre uma potência distribuída nos mares e uma potência terrestre compacta: a luta entre os Estados Unidos e a Europa”[27], uma Europa que na visão de Thiriart adquire dimensões eurasiáticas: de Vladivostok a Dublin[28].
O choque previsto por Thiriart, aquele que hoje coloca o poder neocartaginês contra uma Europa representada por Moscou – a única capital europeia não sujeita à hegemonia norte-americana – é, portanto, configurado como uma Guerra Púnica. Uma quarta guerra Púnica aguardando um novo Cipião e uma nova Zama.
Notas
[1] L’espressione compare per la prima volta mezzo secolo dopo l’incoronazione di Carlo Magno, nella Vita di Willehad, attribuita ad Anscario (801-865). Cfr. Gian Luca Potestà e Giovanni Vian, Storia del cristianesimo, Il Mulino, p. 151.
[2] Louis Bréhier, Constantin et la fondation de Costantinople, “Revue historique”, 119 (1915), p. 241 ss.
[3] Massimiliano Pavan, Roma, Costantinopoli, Mosca: l’ideologia delle tre Rome, “Il Veltro. Rivista della civiltà italiana”, 1-2, 1984, p. 31.
[4] “nova Roma, propterea quod urbs ipsa sit iunior Roma” (Mansi, Sacrorum conciliorum nova amplissima collectio, Parigi 1899-1927, III, p. 567; cfr. p. 519).
[5] Pierangelo Catalano, Alcuni aspetti del concetto giuridico di imperium populi Romani, “Studi sassaresi”, VIII Cultura iberica e diritto romano, Serie III, Anno Accademico 1980-81, p. 29.
[6] Cfr. I trattati dell’antica Russia con l’Impero romano d’Oriente, a cura di Antonio Carile e Andrej Nikolaevič Sacharov, “L’Erma” di Bretschneider, Roma 2011.
[7] Pierangelo Catalano, Alcuni aspetti del concetto giuridico di imperium populi Romani, cit., p. 38.
[8] Massimiliano Pavan, op. cit., p. 40.
[9] In Pamjatniki drevnerusskogo kanoničeskago prava, I, St-Peterburg 1908, pp. 795 ss.
[10] V. Malinin, Starec Eleazarova monastyria Filofei i ego poslanija, Kiev 1901, Suppl. p. 43.
[11] V. Malinin, op. cit., Suppl. pp. 41, 45.
[12] V. Malinin, op. cit., Suppl., pp. 50a, 54a s.
[13] “τοῦ εἶναι ϰαὶ ὀνομάζεσθαι αὐτὸν εἰς βασιλέα νόμιμον ϰαὶ εὐσεβέστατον, ἐστεμμένον ϰαὶ παρʹ ἡμῶν νομίμως ἅμα ϰαὶ ἐϰϰληστιϰῶς. ἐπεὶ ἐϰ γένους ϰατάγεται ϰαὶ αἵματος βασιλιϰοῦ, ὡς εἴπομεν, ϰαὶ παντὶ συμφέρει τῷ χριστιανισμῷ” (W. Regel, Analecta Byzantino-Russica, Petropoli 1891, p. 72).
[14] Massimiliano Pavan, op. cit., p. 41.
[15] Sobranie gosudarstvennych gramot i dogovorov, Moskva 1819, p. 95 s.
[16] Pierangelo Catalano, Fine dell’Impero romano? Un problema giuridico-religioso, “Religioni e Civiltà”, 1982, p. 113.
[17] Mikhail Agursky, La Terza Roma. Il nazionalbolscevismo in Unione Sovietica, Il Mulino, Bologna 1989, p. 24.
[18] Mikhail Agursky, op. cit., ibidem.
[19] Mikhail Agursky, op. cit., ibidem.
[20] “(…) jenem ungeheuren Zwischenreiche, wo Europa gleichsam nach Asien zurückfliesst” (Friedrich Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, VI, 208).
[21] “Who rules East Europe commands the Heartland: who rules the Heartland commands the World-Island: who rules the World-Island commands the World”. World-Island (“Isola mondo”) è l’espressione coniata da Mackinder per indicare il complesso continentale costituito da Eurasia ed Africa.
[22] “La causa principale della debolezza di Hitler è che egli applica i procedimenti immancabilmente riusciti a Roma dopo la vittoria di Zama, quando non ha ancora vinto Cartagine, cioè l’Inghilterra” (Simone Weil, Sulla Germania totalitaria, Adelphi, Milano 1990, p. 246).
[23] Oswald Spengler, Il tramonto dell’Occidente, Longanesi, Milano 1957, p. 1374.
[24] Fernand Braudel, Il Mediterraneo. Lo spazio la storia gli uomini le tradizioni, Bompiani, Milano 2007, p. 73.
[25] Fernand Braudel, op. cit., p. 79.
[26] Yannick Sauveur, Jean Thiriart, il geopolitico militante, Edizioni all’insegna del Veltro, Parma 2021.
[27] Jean Thiriart, USA: un empire de mercantis, “La Nation Européenne”, 21, ottobre 1967; trad. it.: USA: un impero di mercanti, “Eurasia”, 2/2018. E ancora, nel 1982: “Roma dovette distruggere Cartagine. Nel Mediterraneo non c’era posto per due potenze. Noi dovremo scacciare gli Americani dal Mediterraneo. (…) Il Mediterraneo deve diventare un mare chiuso, una sorta di grande lago” (Jean Thiriart, Entretien accordé à Bernardo-Gil Mugurza rectius: Mugarza, in: Le prophète de la grande Europe, Jean Thiriart, Ars Magna, 2018, p. 96).
[28] Jean Thiriart, L’Impero euro-sovietico da Vladivostok a Dublino, Edizioni all’insegna del Veltro, Parma 2018.
Fonte: Eurasia Rivista