O que há para o Brasil na disputa Telegram vs. Judiciário

O Telegram já saiu dos trends, mas convém ressaltar aqui: a guerra à plataforma é fruto da ignorância em Geoestratégia de nosso Judiciário.

Antes de tudo, o Telegram não é uma “rede russa”. Pavel Durov criou o Telegram já depois de emigrado da Rússia justamente por causa de conflitos com o governo – que havia assumido controle parcial sobre o VK, projeto anterior de Durov.

O Telegram foi criado inclusive em território americano e para proteger o programador da inteligência russa. Dentre os países que já o baniram figuram Rússia, China e Irã. Durov é basicamente um libertário, ideologicamente orientado contra a espionagem estatal e os serviços de vigilância. E são estes os princípios que guiam o Telegram.

A plataforma é cheia de “questões” por conta de seu aspecto libertário. Muitas coisas boas e ruins surgem ali. Recrutamento terrorista e recrutamento humanitário. Contatos entre redes criminosas e entre agências estatais e serviços de inteligência. Absolutamente tudo. É um campo neutro na guerra de informação. Não tem lado. É uma utopia digital absoluta.

Dito isso, fica claro que não é uma empresa “russa” – e que quem o defende no Brasil em detrimento do Google, que também militou contra a censura, não o está fazendo por ter posição no atual conflito mundial.

Logo, fica a questão: como atuar no campo neutro? Como minimizar os riscos e buscar algo de interesse nacional no vácuo moral e legal da plataforma?

Mas, antes, voltemos ao Brasil. Há duas questões no caso brasileiro. Uma foi a troca de informações entre grupos nazi-terroristas durante a onda de atentados escolares, que gerou o banimento temporário de plataforma. Outra foi a militância ativa do Telegram contra a PL da Censura, que gerou ameaça de novo banimento e até multas exorbitantes para quem driblasse as regras com técnicas de segurança da informação.

É interessante notar como cada uma destas questões aborda um potencial específico do Telegram. No caso das redes terroristas, há o potencial de comunicação direta – troca de mensagens individuais e criação de grupos de chat. Nesse quesito, o Telegram é frontalmente rivalizado pelo Whatsapp do Meta, tendo como única e decisiva vantagem os elevados níveis de segurança, que infelizmente também levam criminosos a optar pela rede.

O problema é que o banimento não significa nada para este potencial. É preciso ter em conta que o bloqueio tem pouco peso real. Como qualquer outro site clandestino, se bloqueado, o Telegram continuará a ser facilmente acessado por servidores proxy/VPN. Se alguém realmente utiliza a plataforma e depende dela, aprenderá em poucos minutos a usá-la sob as novas circunstâncias.

E há um risco ainda maior, que é a popularização dos chats hipersecretos de destruição automática de mensagens, que abundam na internet. O Telegram está longe de ser o meio mais seguro de chat, havendo sistemas muito mais complexos e que serão inevitavelmente descobertos e explorados à medida que criminosos não se sintam mais confortáveis em usar o Telegram (seja pelo possível fornecimento de dados pela plataforma à Justiça, seja pelo banimento).

Pergunta: interessa ao Brasil que redes criminosas comecem a explorar estes sistemas mais complexos de segurança da informação?

Há quem pergunte “mas como resolver?”. Pois bem, eu realmente não posso dar a palavra final sobre isso, mas lembro, por exemplo, que foi amplamente aconselhado por especialistas ao longo de toda a onda de massacres que a cobertura midiática fosse interrompida. Muitos profissionais alertaram para o perigo de dar atenção excessiva e fama aos terroristas escolares, já que isto inspiraria novos atentados.

E isso foi atendido? Houve sanções ao Big Press por lucrar com a espetacularização dos eventos e possivelmente co-participar na inspiração de novos massacres? Então, talvez a resolução do problema vá muito além do Telegram.

Agora, voltando para a outra questão – a da PL da Censura. Vemos aí tocado o outro potencial do Telegram – o mais avassalador -: o de comunicação de massa. Conforme já falei em outras ocasiões, O Telegram é o maior meio de comunicação do mundo atualmente. Não considero sequer “informado” quem não seja inscrito em algumas centenas de canais da plataforma.

Pois bem, eu analiso qualquer assunto através da minha área de expertise, que é a Geopolítica/Geoestratégia. No caso específico, o faço levando em conta os interesses por trás da guerra de informação. O Telegram é – ou pretende ser – a utopia informacional, onde é possível dizer tudo sem ser espionado por ninguém. E justamente por isso rivaliza fortemente com a mídia corporativa, que quer reaver o monopólio da informação dos tempos pré-internet.

Muitos veem aí um conflito entre Big Tech e Big Press, mas não é o meu caso. Big Tech e Big Press são partes do mesmo establishment, embora com a chegada de Musk ao Twitter tenhamos assistido um leve afastamento, ainda muito incipiente. Para mim, o Telegram simplesmente não é uma Big Tech. Está fora do establishment.

Perceber isso foi o que fez muitos países que o baniram no passado revisarem suas decisões. Todas as provas mostram ser mais estratégico manejar o Telegram, que é neutro, em favor de interesses soberanos do que lutar contra ele. O Brasil, porém, em ignorância das experiências prévias, atua em sentido oposto.

Graças ao uso intensivo do aplicativo, inclusive por oficiais de Estado, a Rússia hoje rivaliza de igual para igual com o Ocidente, que mantém o monopólio da Big Tech e do Big Press. Por exemplo, as maiores redes de informação sobre o conflito ucraniano estão no Telegram, cujos canais contam com um número de correspondentes de guerra infinitamente superior ao dos canais de TV, onde a própria estrutura corporativa e burocratizada impede o dinamismo da correspondência de campo.

O nosso caminho deveria ser o mesmo: criar redes em parceria público-privada para alavancar o Telegram em benefício dos interesses nacionais e fazer do Brasil um país representado e com narrativas próprias na guerra global de informação.

Mas continuamos reféns da ignorância do Judiciário em tudo que se refere à geopolítica e à geoestratégia. Nossos juízes não estão muito familiarizados com o importante conceito de “Geodireito”, ilustremente defendido pelo grande professor e meu amigo pessoal Guilherme Sandoval Góes. Falta visão estratégica àqueles que operam nosso Direito.

Enfim, se eventualmente vigorar um novo banimento do Telegram, eu só prevejo duas coisas: 1- massa de usuários deixando a plataforma por não aprender a usar proxy/VPN ou por medo de punições impraticáveis (como a multa proposta pelo Ministro); 2- núcleo de usuários dependentes de sigilo de informação insistindo no uso ou encontrando “alternativas”.

Resultado direto de “1”: massa ainda mais alienada da realidade mundial; mídia alternativa ainda mais inacessível; Big Press e Big Tech fortalecidos.

Resultado direto de “2”: jornalistas independentes sobrevivendo aos trancos e barrancos e criminosos que realmente têm algo a esconder das autoridades se iniciando no mundo obscuro dos chats secretos de autodestruição automática, se tornando ainda mais indetectáveis para nossa Justiça.

É isso que interessa ao Brasil? É conveniente ver a população refém do monopólio informacional da mídia corporativa e criminosos entrando em redes ultra-secretas de segurança máxima, ainda mais longe do controle das autoridades?

Fica a pergunta.

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Lucas Leiroz

Ativista da NR, analista geopolítico e colunista da InfoBrics.

Artigos: 597

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