Todo artista de renome é a instanciação de forças históricas. Morreu hoje Rita Lee, fruto de conflitos esquecidos da história da identidade brasileira. A fim de prestigiar sua memória e estimular ponderações sobre sua falta de sucessores artísticos, falaremos sobre a história de Rita Lee antes de Rita Lee. E que descanse em paz.
A pré-biografia deste obituário alternativo começa em 1922, na Semana de Arte Moderna.
Subjazia àquele festival de apresentações das mensagens e qualidades mais diversas uma intensa preocupação pela fundação de uma intelectualidade nativamente brasileira. Logo ficou claro que havia em jogo projetos completamente diferentes sobre o que isso significaria, inclusive dentro das próprias lideranças, o Grupo dos Cinco: Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Menotti Del Picchia e Anita Malfatti.
Em 1924, Oswald publicou o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. O texto se constrói sobre a psicanálise e o surrealismo, então populares entre as vanguardas científicas e artísticas europeias, e aqui apresentados enquanto instrumentos para que a intelectualidade brasileira pudesse analisar seu próprio povo em sua natureza mais primal. Em suma, propunha-se uma síntese entre o “Doutor” e o “Silva”. É o juízo estético por trás dos estranhos quadros de Tarsila do Amaral, que chegou a ser casada com Oswald.
Por revolucionária que fosse a proposta, surgem aí ao menos dois problemas. Primeiramente, como podemos ser nativistas a partir de horizontes teóricos estrangeiros? Ademais, como e por que postular uma teoria literária onde não parece haver uma literatura nativa consolidada? Esse questionamento levou Del Picchia a se aliar a veteranos da Semana de 22 como Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, a fim de inaugurar o Movimento Verde-Amarelo e lançar uma guerra literária contra Oswald. Contra o galicismo e o dogmatismo deste, o grupo promovia prol uma postura mais nativista, tradicionalista, primitivista e intuicionista.
Uma síntese entre ambas as tendências surgiu em 1928, num sarau na casa de Mário de Andrade, no qual Oswald e Tarsila apresentaram seu Manifesto Antropófago. Em meio a metáforas complexas, a tese central era simples: a cultura estrangeira não deve ser “alugada”, mas sim “devorada”. A influência europeia era explícita, com especial atenção ao futurismo, mas o nativismo e a intuição que o nascente Movimento Antropofágico enfatizava seduziram mesmo Del Picchia e Salgado, para não citar gigantes como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Raul Bopp.
Desavenças pessoais e políticas, contudo, debandaram os antropófagos e o Grupo dos Cinco precocemente. Oswald e Tarsila se filiariam ao Partido Comunista Brasileiro e logo se divorciariam. Del Picchia nutriu simpatia pública à Ação Integralista Brasileira, fundada e liderada pelo próprio Salgado, nas palavras de Cassiano Ricardo enquanto desdobramento natural do verde-amarelismo. Mário de Andrade totalizou seu silêncio político após a Revolução de 1937, e Anita nunca se interessou particularmente por esses assuntos.
Não obstante a dissolução do núcleo central, a importância da herança antropófaga permaneceu inconteste na poesia brasileira até 1948, quando Domingos Carvalho da Silva, dando por marco o golpe contra Getúlio Vargas, anunciou uma Geração de 45 aos poetas que rejeitavam a Semana de 22, o nacionalismo e a originalidade formal. Revoltados com tamanha iconoclastia, artistas como os irmãos Campos romperam com os principais círculos líricos brasileiros, buscando inaugurar uma renascença antropófaga.
Hélio Oiticica nas artes visuais e Caetano Veloso na música abraçaram a causa de Haroldo de Campos, pregando ao nascente rock nacional a necessidade de que suas referências estrangeiras fossem irredutivelmente adaptadas a paradigmas brasileiros. Entre seus conversos estava Rita Lee, uma descendente de refugiados da Guerra Civil Americana e colonos italianos nascida na capital de São Paulo, perto do Trópico de Capricórnio. Emprestou sua melíflua voz e seu multi-instrumentismo a Os Mutantes, marcando a Tropicália.
Não alongaremos este texto com as típicas biografias aduladoras dos obituários. A Nova Resistência anuncia aqui seu respeito a esta personalidade histórica, e espera que de seu contexto enquanto tal possam ser tiradas lições sobre um debate que em larga parte se perdeu antes mesmo da ascensão de Rita Lee ao estrelato.