Pensar em multipolaridade nos leva também a refletir sobre como tal multipolaridade estaria distribuída: quais seriam os polos de um mundo multipolar? Essa é também a questão sobre quem seriam, efetivamente, os atores do mundo multipolar.
Pensar em multipolaridade nos leva também a refletir sobre como tal multipolaridade estaria distribuída: quais seriam os polos de um mundo multipolar? Essa é também a questão sobre quem seriam, efetivamente, os atores do mundo multipolar. A inércia intelectual nos levaria a falar nos Estados-nação, mas é praticamente consensual que, aqui, deveríamos estar abordando o tema das civilizações.
O conceito de civilização é polissêmico, o que é perfeitamente compatível com a própria ideia da pluralidade civilizacional. A tese de uma única civilização, por exemplo, é uma construção típica do universalismo iluminista da civilização ocidental. Não há nada de universal no universalismo. Mas sem pretender ir muito fundo, aqui estamos nos referindo às civilizações como complexos histórico-culturais que, apesar de internamente diversos, possuem raízes comuns, abarcando antropologia, espiritualidade, valores, visão de mundo, etc. Intelectuais como Ibn Khaldun já pensavam em termos de pluralidade civilizacional (o que, não raro, implica também na adesão a uma “teoria cíclica”). Mas entre os pensadores mais influentes do pluralismo civilizacional podemos contar Oswald Spengler, Arnold Toynbee e Nikolai Danilevsky. Entre os contemporâneos se destacam nomes como Samuel Huntington, Alexander Dugin e Andrey Korotayev. Alguns desses pensadores consideram que os verdadeiros sujeitos históricos sempre foram as civilizações. E certamente todos eles concordariam que a viabilidade e as possibilidades do Estado-nação isolado, como sujeito histórico, se esgotaram. Para Marcelo Gullo, por exemplo, esse esgotamento teria se dado ao início do século XX com a efetiva conquista, ocupação e colonização do Oeste Norte-Americano pelos EUA, transformando o país em questão em um Estado-Continente, dotado de sua própria civilização. Neste âmbito,, conceitos como Civilização, Império, Estado-Continente e Grande Espaço se misturam e se confundem como peças fundamentais do pensamento político e geopolítico do mundo pós-unipolar: a “Civilização” indicando os amplos contornos de tipos histórico-culturais: os “Estados-Continentes” indicando Estados com dimensões continentais e ocupantes de plataformas geográficas em escala continental; o “Império” como estrutura política aglutinadora de vários povos e etnias sob um centro comum e o “Grande Espaço” como realidade geoestratégica homogênea em que se tenha dado uma consolidação cultural que, nas condições corretas, permite a formação de um “Império”. Uma Civilização, portanto, pode comportar mais de um Grande Espaço e, portanto, mais de um Império. A depender das circunstâncias históricas, esse Império pode ser também ou um Estado-Continente ou uma Confederação construída pela superação conjunta de vários Estados nacionais.
Podemos, assim, tratar dos polos de um mundo multipolar nestes termos. Em um mundo multipolar, os polos devem corresponder às Civilizações, representadas por seus Grandes Espaços (Impérios/Estados-Continentes) em um grande fórum ou conselho intercivilizacional que, idealmente, deveria substituir a ONU ou talvez mais especificamente o Conselho de Segurança da ONU: o que finalmente nos remete à questão de quantos seriam os polos de um mundo multipolar.
Para abordar tal problema, devemos primeiramente rejeitar qualquer noção de “direito” ou “merecimento”. Os polos serão aqueles que atingirem os pré-requisitos de reestruturação imperial e consolidação continental que garantirão soberania plena e autossuficiência, não apenas material como em outros âmbitos. Ainda assim, fazendo um apanhado de diversos autores, podemos enumerar os polos potenciais, seus núcleos e suas áreas de influência da seguinte forma:
1) Civilização Ocidental: Com núcleo nos EUA e abarcando o Canadá e alguns territórios insulares (a Grã-Bretanha pode acabar sendo atraída para esse âmbito);
2) Civilização Russo-Eurasiática: Com núcleo na Rússia e aglutinando os antigos territórios soviéticos e parte da Europa Oriental;
3) Civilização Sínica (Extremo-Oriental): Com núcleo na China e aglutinando a Península Coreana, o Sudeste Asiático e, eventualmente o Japão e outras ilhas do Pacífico);
4) Civilização Europeia: Com núcleo na Alemanha e aglutinando de Portugal às fronteiras da Civilização Russo-Eurasiática;
5) Civilização Ibero-Americana: Com núcleo no Brasil e abarcando da Argentina ao México;
6) Civilização Islâmica (Magiana): Possivelmente com um centro xiita no Irã e um centro sunita na Turquia ou Arábia Saudita, mas com fronteiras fluidas e difíceis pela posição geográfica intermediária, abarcando provavelmente o Norte da África e o Oriente Médio;
7) Civilização Indiana: Com núcleo na Índia e abarcando vários dos países de influência indiana dos arredores, como Butão, Nepal, Bangladesh, Sri Lanka, etc;
8) Civilização Africana: Com núcleo ainda indefinido, mas com países como a África do Sul em vantagem, abarcando todo o espaço subsaariano.
Em um âmbito puramente hipotético, uma desocidentalização cultural e psicológica poderia conduzir um país como a Austrália a se converter no núcleo de uma Civilização Europolinésia, mas algo assim levará tempo.
Para finalizar, logo se vê que estamos muito além do infantilismo de quem enxerga, ao olhar para o mundo, um universo unidimensional, no lugar de um pluriverso de civilizações, culturas e cosmovisões. A humanidade inexiste politicamente. Estamos lidando sempre com seres enraizados e dotados de uma origem, membros de uma civilização, e com o esgotamento do Estado-nação, devemos ampliar nosso horizonte intelectual para pensar em termos mais amplos, mais audaciosos.