A queda da União Soviética e o desaparecimento de Moscovo como ator geopolítico global deixou para trás uma horda de órfãos políticos na América Latina. Em meio a esse vazio, vimos como a esquerda continental lentamente abandonou suas raízes populistas e nacionais e desembocou cada vez mais numa “esquerda cor-de-rosa” ao serviço do imperialismo e do globalismo. Cristián Barros expõe como a esquerda ibero-americana consistentemente se degenerou – no Chile, no Peru, na Argentina, na Colômbia, e lança dúvidas sobre o papel de Lula no Brasil.
Chile quente
A queda do Muro de Berlim deixou numerosos órfãos — acima de tudo, deixou órfãos os quadros dos partidos comunistas espalhados pelo Ocidente. Os tremores sísmicos posteriores afetaram todos os cantos do mapa, particularmente a própria periferia do Ocidente: a América Latina. Tradicionalmente reformistas, parlamentares e pequeno-burgueses, muitos burocratas comunistas do continente — descartados pela súbita retirada soviética — reciclaram-se nas ONG financiadas por Washington, defendendo os “direitos humanos”, a “democracia” e o feminismo. Foi a época em que Moscou, mergulhada na sua própria crise de legitimidade, havia aparentemente abandonado a arena internacional para sempre. Mas o vazio profissional deveria ser preenchido de uma forma ou de outra: assim, um dia, por necessidade, o marxismo escolástico deu lugar a um pós-modernismo loquaz nos salões oficiais e nas academias. O período em questão coincidiu aproximadamente com o fim das ditaduras neoliberais na América do Sul, especialmente no Chile, cujo regresso à democracia foi marcado por verdadeiras maratonas de protestos sociais na segunda metade dos anos 80.
Agora, avancemos trinta anos.
Gerações após a queda de Pinochet, o Chile reencenou um ciclo semelhante de insurgências populares precisamente na véspera da erupção do COVID-19: cidades invadidas por quase dois milhões de manifestantes, alguns deles equipados com coquetéis molotov e fervor quase ludista. Até então, as “cadeiras musicais” do eleitorado haviam sido divididas entre social-democratas de fala mansa e neoliberais draconianos, embora as políticas econômicas no fundo permanecessem sempre as mesmas. Era um jogo de conchas jogado sucessivamente pelas raposas e leões de Pareto, ‘esquerda’ e ‘direita’ modeladas ao estilo ianque. Tudo isso enquanto a economia chilena – uma mescla do PIB da Finlândia com o GINI[1] do Lesoto — lançava o precariado num cúmulo de desesperança. Eventualmente, a Revolução Colorida do Chile em 2019 levou a um processo duplo. Facilitou a futura vitória presidencial de uma aliança esquerdista mal acabada, formada tanto por progressistas woke quanto por comunistas clássicos.
Por outro lado, a mobilização nas ruas deu início a uma Assembleia Constitucional, originalmente planejada pelo establishment como válvula de segurança para mitigar a volatilidade dos cidadãos. No entanto, como se viu, a Assembleia ganhou uma lógica própria, e assim avançou o projeto de uma nova constituição semelhante a uma colcha de retalhos multiculturalista — embora, é preciso admitir, os direitos dos trabalhadores tenham obtido algum reconhecimento residual em suas últimas deliberações. Atualmente, a Assembleia Constitucional e a nova administração representada pelo próprio Sr. Boric, ex-líder estudantil, parecem mal sincronizadas, em parte porque Boric, ignorando as promessas feitas em sua campanha de eleição, abraçou em cheio medidas deflacionárias e de austeridade orçamentária. Em verdade, um mês depois de Boric assumir a presidência, a habitual lua de mel entre o eleitorado e o novo cabinete já pressagiou um divórico tempestuoso.
A causa é simples. O Chile praticamente monopoliza a mineração mundial de cobre, embora o Estado não consiga — devido a arranjos geopolíticos que datam desde o período da ditadura — capturar para si a renda gerada por seu próprio subsolo. Por conta disso, a tributação age como um predador para as massas trabalhadoras, cujas poupanças para aposentadoria também acabam sequestradas por esquemas de pirâmide impostos por lei que caem em cascata no labirinto de corretores financeiros americanos – os infames Administradores de Fundos de Pensão (PFAs).
Ao longo das recentes quarentenas, os subsídios públicos para os desempregados têm sido tão escassos que as pessoas exigem dinheiro nos livros de pensão, de onde se seguiu um cabo de guerra entre os PFAs e sua clientela cativa e envelhecida. Presumivelmente, os investimentos são tão ilíquidos e opacos que beiram a inexistência literal. No entanto, a atual administração comunista-progressista, “rosa-vermelha” se aliou fortemente ao lobby financeiro local, umbilicalmente ligado a Wall Street. Assim, o próprio eleitorado esquerdista de Boric vacila entre o estupor e a raiva, respondendo à traição percebida com a ameaça de defenestração política. O bom senso dita que, mais uma vez, a rebeldia popular está a se fermentar no subsolo. Mas desta vez será pior, já que não há ninguém mais “à esquerda” do governo — e nenhum antagonista formal para confrontar, apelar ou negociar, exceto uma multidão amorfa, turbulenta, principalmente juvenil, aglomerando-se em barricadas onipresentes e piquetes. É claro que um inimigo institucional pode muito bem se tornar um aliado leal e, portanto, uma fonte de legitimação. Infelizmente, isso não é mais uma opção. Em vez disso, a agenda multicultural de Boric pretende amenizar a penúria material e o rancor social invocando e divulgando o mantra dos direitos sexuais, do ambientalismo de butique e da reabilitação de minorias. Mas talvez o esforço seja um tanto inútil e sua atualidade bastante ultrapassada. Porque? Pois bem: a Assembleia Constituinte, que corre paralelamente com cumplicidade oblíqua, já se apropriou de todos estes temas de antemão. Em suma, o Chile é uma piada política sem nenhuma punchline, sem nenhuma conclusão até agora.
Antinomias Andinas
No ano passado, o professor rural Pedro Castillo, conhecido como El Professor, com seu chapéu de caubói, teve que improvisar um pacto com a representante da esquerda acadêmica, a antropóloga Verónika Toledo, para enfrentar o iminente segundo turno eleitoral. Castillo venceu enfim, mas não antes de sofrer um processo judicial visando impugnar o número de seus votos, concentrados principalmente na roça indígena.
Embora nominalmente apoiado pelo partido leninista Perú Libre, Castillo continuou sendo um populista clássico da variedade latina, focado no camponês e repleto de um ethos católico enraizado. Desnecessário dizer que tal perfil constrangeu seus aliados progressistas em Lima. Esquerdistas urbanos “educados” desaprovaram a maior parte da plataforma de Castillo e também olharam com desconfiança para sua própria personalidade política, rústica e moralista. Pior ainda, a fraseologia hiperbólica de Castillo não combinava, entre outras coisas, com o élan abortista da camarilha acadêmica por trás de Toledo. Socialismo-com-familismo incomodou estridentemente os ouvidos do conformismo esquerdista. Mas eles deveriam saber melhor.
Famílias camponesas foram duramente dizimadas pela eugenia neoliberal durante o regime autoritário de Fujimori (1990-2000), que perpetrou esterilizações não consensuais e sem aviso prévio em dezenas de milhares de mulheres indígenas. A cruzada de despovoamento, patrocinada e financiada pelo NED e por instituições de caridade oficiais japonesas (o próprio Fujimori nasceu no Japão), traumatizou profundamente as jovens mulheres, cujo meio nativo valoriza muito a gravidez e o ato de dar à luz. Paradoxalmente, essa política punitiva de planejamento familiar ocorreu em um país de baixíssima densidade demográfica, o que levanta suspeitas sobre o real propósito de tal iniciativa.
No entanto, a redução das taxas de natalidade é perseguida atualmente pela junta abortista, começando com o expurgo pós-moderno do chamado patriarcado e da masculinidade da classe trabalhadora: primeiro pau, depois cenoura… Na verdade, até recentemente, o bloco governante peruano tem tido uma trajetória acidentada e errática, e parece improvável que a coabitação quimérica entre populistas do interior e idiotas universitários pudesse funcionar de qualquer maneira. Para começar, o Ministro de Finanças pertence à comitiva liberal de Verónika Toledo, daí se explica a continuidade inabalável do capitalismo de matérias-primas.
Tango e Grana
Após uma incubação tortuosa, a dissidência proletária na América Latina atingiu o clímax por volta da primeira década do século XX, numa conjuntura que inaugurou a política de classes moderna ao sul do Rio Grande. A famosa Greve de Cananea no México e a Greve Geral na Argentina, ambas ocorridas no início dos anos 90, marcam a ascensão política dos oprimidos fabris – protagonistas de árduas lutas sociais que culminaram, respectivamente, nos experimentos redistributivos de Cárdenas e Perón. Quanto ao último processo, a própria Argentina, apesar da volumosa imigração transatlântica lançada em suas costas, nunca desenvolveu realmente partidos de massa marxistas de estilo europeu – o que foi o caso do vizinho Chile. Em vez disso, o “fascismo” paternalista e plebeu da Argentina sob o general Perón (1945-1955) serviu como substituto e catalisador para a contestação da classe trabalhadora nos anos seguintes. Até agora, os tempos de Perón retratam vividamente a idade de ouro da industrialização por substituição de importações e do sindicalismo vertical.
Uma vez derrotado por uma junta militar de direita, o peronismo logo convergiu com o guevarismo, formando uma subcultura de carisma macho revolucionário, que mais tarde evoluiu para a guerrilha urbana. Esse contexto emergente induziu os partidos marxistas convencionais à introversão reformista. O tropismo foi tão intenso que o Partido Comunista local aliou-se aos conservadores latifundiários e até apoiou brevemente a Ditadura do General Videla durante a década de 1970. Enquanto isso, o peronismo revolucionário degenerou em uma série de grupelhos golpistas, cujos militantes foram por sua vez massacrados pelos capangas da Junta. Ao longo desse lapso efervescente, a esquerda revolucionária cultivou uma práxis nativista e sacrificial. Portanto, não foi até o retorno dos governos civis que os movimentos anticapitalistas adquiriram um senso de vitimização e passividade. Certamente, isso só foi possível graças à instalação da ideologia dos direitos humanos – discurso cujo epicentro foi o governo Carter. Daí a trágica ironia: os repressores militares argentinos recebiam instruções de Fort Benning e do Pentágono, enquanto suas vítimas eram assistidas e doutrinadas por missionários leigos de ONGs americanas.
Simultaneamente, a crise de inadimplência mexicana de 1982 – originalmente causada pelo golpe de Volcker na taxa de juros – precipitou o curto-circuito final do paradigma keynesiano-fordista na América Latina. Decididamente, essa inflexão abriu a sombria bonança dos programas de ajuste estrutural (PAEs) do FMI, que minaram o vigor econômico da maioria dos países do hemisfério. A esse respeito, a dívida externa da Argentina constitui uma lição objetiva transparente. A república do sul exibiu relativa solvência até 1976, momento em que a ditadura sextuplicou o nível anterior de endividamento. Desde então, os números vermelhos dispararam, sujeitando o contribuinte argentino à servidão por dívidas crônicas perante os credores internacionais. Em retrospectiva, pode-se perguntar se a ideologia dos direitos humanos – e depois o multiculturalismo e seus temas concomitantes – não era apenas um consolo maquiavélico, um truque de domesticação para neutralizar e despolitizar a sociedade civil, especialmente as organizações de trabalhadores.
Uma vinheta jornalística se faz necessária, se quisermos esclarecer as coisas. Em meados de 2002, o abutre detentor de títulos Paul Singer processou com sucesso Buenos Aires por inadimplência em sua dívida soberana, após o que ele conseguiu seqüestrar legalmente o navio de treinamento da Argentina atracado em Gana, tripulado com 22 jovens marinheiros. Foi um resgate virtual ordenado de longe, seguindo uma ordem de desativação do tribunal de Nova Jersey, cujo efeito extraterritorial hoje parece questionável. Mas a chantagem funcionou, e o investidor de ativos Singer finalmente espremeu para fora 2,4 bilhões de dólares do Tesouro da Argentina – quatro vezes seu investimento inicial. Nesse ínterim, os debates parlamentares em Buenos Aires foram dominados pelas guerras culturais, alegadamente pelos direitos dos homossexuais ou outras controvérsias do momento, de modo que apenas vozes marginais discutiram o cerne da dívida odiosa. Curiosamente, o próprio Singer é um gigantesco financiador dos direitos dos homossexuais em escala global, um empreendimento de caridade que pode não ser tão altruísta quanto se supõe.
Se pararmos para refletir um pouco, um padrão gradualmente se manifesta a nós. Como observado anteriormente, a retórica dos direitos humanos e do multiculturalismo reforça a inércia da disciplina de dívidas e do extrativismo econômico, uma vez que os atores políticos na América Latina se tornam vítimas institucionalizadas que imploram por acomodação. Esse curso das coisas não pode ser mudado adequadamente a menos que a hegemonia liberal na cultura seja desafiada e reduzida à banalidade que ela no fundo é. A nova esquerda pós-moderna na América Latina, enxertada artificialmente em uma rica tradição populista, cuja memória os antigos parasitas astuciosamente se esforçaram para erradicar, só pode trazer desilusão e anomia. Exemplos disso são abundantes.
Cavalos de Troia
Hoje, parece claro que o capitalismo atlântico escolheu a esquerda progressista como um caminho suave para manter sob controle seu tradicional quintal geostratégico de matérias-primas. Na verdade, a esquerda socio-liberal, desprovida de qualquer insinuação proletária, vem como o Cavalo de Tróia perfeito para promover a agenda globalista em sua nova encarnação extrativista. Desenvolvimentos recentes confirmam tal suspeita. Petro, ex-guerrilheiro convertido em bajulador dos Clinton, reafirmou o papel da Colômbia dentro da OTAN, bem como ampliou a ocupação militar americana virtual do país caribenho, com dezenas de bases financiadas pelo Pentágono. Enquanto isso, Boric no Chile acelerou a aprovação da Parceria Trans-Pacífico (TPP11), uma iniciativa anteriormente descartada por Trump, mas agora liderada pela diplomacia de Biden. Curiosamente, uma esquerda mais tradicional, emergindo de processos revolucionários reais no México (1910), Cuba (1959) e Nicarágua (1979), ainda mantém um élan antiglobalista. O Brasil de Lula é uma lição objetiva para o futuro do populismo de esquerda no continente. O Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro tem origem no sindicalismo cristão e nas cooperativas camponesas. Sendo assim, sua ideologia deveria tender a se expressar em temas nacionalistas, comunitários e desenvolvimentistas. No entanto, o primeiro governo de Lula se mostrou um experimento neoliberal com um verniz de redistribuição inflacionária. Não é à toa que os ministros da Fazenda e os controladores do Banco Central sob Lula sempre vêm do FMI-GoldmanSachs
Não obstante, devido ao seu peso demográfico, o Brasil ostenta um mercado interno que permite uma burguesia nacional minimalista, estrato que aspira a consolidar-se dentro do bloco dos BRICS. Daí a postura neutra de Bolsonaro em relação à Rússia, de onde o Brasil obtém a maior parte de seus fertilizantes para a soja que alimenta a China. Atualmente, Lula pode ou não abraçar o projeto dos BRICS. A encruzilhada está entre a economia real e a financeira: o motor de crescimento do Brasil depende da demanda chinesa por safras, enquanto os mecanismos anglo-atlânticos de dívida em dólar ainda acorrentam o Brasil à subordinação hemisférica.
Desnecessário dizer que a política internacional é mais do que um mero reflexo de assuntos internos, então a planejada extraterritorialização e desnacionalização da bacia amazônica, sob o pretexto de uma gestão ambiental global, será um momento decisivo para o novo governo Lula. Outro ponto em questão é o futuro papel da Petrobrás, empresa pública de petróleo continuamente defasada por eventos de clientelismo e corrupção. A autossuficiência energética é crucial para o desenvolvimento nacional, sendo o Brasil um exportador líquido de petróleo bruto, ao mesmo tempo que ostenta preços locais caríssimos para os consumidores domésticos. Nesta conjuntura, podemos apenas rezar para que Lula aborde ao menos o mínimo de nacionalismo econômico, reforçando a diplomacia neutra dos BRICS…
[1] O Índice de Gini, criado pelo matemático italiano Conrado Gini, é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos.
Fonte: Geopolitika.ru