Dos anos 50 até 1997, os EUA praticaram uma política de contenção contra a URSS e sua sucessora a Rússia. A estratégia pedia a limitação da influência do adversário, sem seu enfrentamento direto. Essa era a prescrição de George F. Kennan. A partir dos anos 90, porém, começa a crescer a influência neoconservadora no Departamento de Estado dos EUA, quando discípulos de Leo Strauss ascendem a cargos importantes, promovendo a expansão da OTAN e um cerco cada vez mais fechado contra a Rússia.
“…a expansão da OTAN seria o erro mais fatal da política americana em todo o período pós-Guerra Fria. Pode-se esperar que tal decisão inflame as tendências nacionalistas, anti-ocidentais e militaristas na opinião pública russa; tenha um efeito negativo no desenvolvimento da democracia russa; traga de volta a atmosfera da Guerra Fria nas relações Leste-Oeste; e empurre a política externa russa em direções decididamente contrárias ao nosso gosto”…
[Trecho de George F. Kennan, “A Fateful Error”, New York Times, 5 de fevereiro de 1997].
Quem diz estas coisas é George F. Kennan (1904-2005), conhecido como “o pai da política de contenção”, uma figura chave durante o período de emergência da Guerra Fria, cujos escritos inspiraram a Doutrina Truman e a política externa dos Estados Unidos com o objetivo de “conter” a União Soviética. De fato, em 1947, foi ele quem disse:
“…o principal elemento da política dos EUA em relação à União Soviética deve ser uma longa, paciente, mas firme e vigilante contenção das tendências expansionistas russas…a pressão soviética contra as instituições livres do mundo ocidental é algo que pode ser contida pela aplicação hábil e vigilante de contramedidas que respondam às manobras políticas dos soviéticos”. [George F. Kennan, “The Sources of Soviet Conduct”, Foreign Affairs, XXV, julho de 1947, pp. 575, 576].
O que mudou desde 1997? Por que as palavras de um estudioso tão respeitável da geopolítica e da geoestratégia militar americana, em pé de igualdade com Zbigniew Brzezinski e Henry Kissinger, foram ignoradas? Porque enquanto isso, um lobby, os chamados “straussianos”, prevaleceu no establishment norte-americano. Quem são eles?
O filósofo alemão de origem judaica, Leo Strauss, que se refugiou nos Estados Unidos quando os nazistas chegaram ao poder, tornou-se professor de filosofia na Universidade de Chicago, e a partir de reflexões platônicas e de uma concepção hobbesiana do direito natural, deu origem a uma escola de pensamento que ainda hoje é hegemônica na política americana, entre republicanos e democratas, que é a escola neocon. Um grande grupo de discípulos se formou ao redor de Strauss, a princípio todos da esquerda.
O grupo político, uma espécie de lobby, foi fundado em 1972, um ano antes da morte do filósofo. Todos eles faziam parte da equipe do senador democrata Henry ‘Scoop’ Jackson, em particular Elliott Abrams, Richard Perle e Paul Wolfowitz. Todos eles estavam ligados a um grupo de jornalistas trotskistas, também judeus, que se encontraram no City College de Nova Iorque e publicavam a revista Commentary. Eles eram chamados de “os Intelectuais de Nova Iorque”. Tanto os straussianos quanto os intelectuais de Nova Iorque stavam intimamente ligados à CIA, mas também, graças ao sogro de Perle, Albert Wohlstetter (estrategista militar americano), à Rand Corporation, o think tank do complexo militar-industrial (aquele denunciado por Manlio Dinucci antes de ser censurado pelo Il Manifesto). Muitos desses jovens se casaram, até formar um grupo compacto de cerca de cem pessoas, todos da classe média alta liberal judaica americana.
Em meio ao escândalo Watergate (1974), o clã redigiu e adotou a “Emenda Jackson-Vanik”, que exigia que a União Soviética autorizasse a emigração da população judaica para Israel sob ameaça de sanções econômicas. Foi o seu ato fundador. Em 1976, Wolfowitz foi um dos arquitetos da Equipe B, encarregada pelo Presidente Gerald Ford de avaliar a ameaça soviética. O resultado seria acusar a URSS de querer conquistar a “hegemonia global”, levando assim o establishment norte-americano a arquivar a política elaborada por George F. Kennan sobre a contenção, mas para enfrentar Moscou, desgastando-a e salvando o “mundo livre”, como fizeram, como acontece, com a guerra no Afeganistão.
Os “straussianos” e os Intelectuais de Nova Iorque, todos de esquerda, colocaram-se a serviço do presidente direitista Ronald Reagan e do Bush pai, para serem momentaneamente expulsos do poder durante o mandato de Bill Clinton, e assim começaram a invadir os think tanks de Washington, para gradualmente consolidar uma hegemonia que visava dar aos Estados Unidos uma visão belicista.
De fato, foi em 1992 que William Kristol e Robert Kagan (marido de Victoria Nuland) publicaram um artigo na Foreign Affairs no qual deploravam a tímida política externa do Presidente Clinton e pediam uma renovação da “hegemonia desinteressada dos Estados Unidos”; foi em 1993 que o American Enterprise Institute, dirigido pelos “straussianos” Schmitt, Shulsky e Wolfowitz, com os quais Francis Fukuyama estaria ligado, publicou o Projeto para um Novo Século Americano. Será o “straussiano” Richard Perle que atuará como conselheiro em 1994 do líder islamista Alija Izetbebovič na Bósnia-Herzegovina para facilitar a entrada de militantes jihadistas do Afeganistão ligados à rede Al-Qaeda para combater a República Federal da Iugoslávia do líder do Partido Socialista da Sérvia Slobodan Milošević. Em 1996, expoentes “straussianos” do Projeto para um Novo Século Americano, como Richard Perle, Douglas Feith e David Wurmser, redigiram um estudo dentro do Instituto de Estudos Estratégicos e Políticos Avançados em nome do novo Primeiro Ministro israelense, Benjamin Netanyahu, do Likud, que recomendou a eliminação do líder palestino Yasser Arafat, a anexação dos territórios palestinos e uma guerra contra o Iraque para deslocar os palestinos em seguida.
O grupo também se baseava nas reflexões de Ze’ev Jabotinsky, fundador do “sionismo revisionista”, uma variante nacionalista do sionismo, da qual o pai de Netanyahu era secretário especial e que foi treinado na Itália pelo exército mussoliniano, obviamente para uma finalidade antibritânica. O mesmo grupo gastou dinheiro com a candidatura de George W. Bush, publicando um famoso relatório, Reconstruindo as Defesas da América, que pedia uma catástrofe do tipo Pearl Harbor, para ser usado como pretexto para empurrar os Estados Unidos para uma guerra pela hegemonia global: exatamente os termos usados em 11 de setembro de 2001 pelo Secretário de Defesa Donald Rumsfeld, ele próprio um “straussiano” e membro do Projeto para um Novo Século Americano.
Como estávamos dizendo, o lobby “straussiano” busca apenas o poder, e voltou aos democratas para favorecer primeiro Barack Obama – com Hillary Clinton como expoente máximo dos falcões – e hoje Joe Biden. Entendemos porque as palavras de George F. Kennan, duras nos anos 40, mas moderadas e sensatas nos anos 90, eram ditadas pela realpolitik: fazia sentido, de uma perspectiva atlantista e liberal, opor-se e conter a União Soviética, um dos objetivos da geopolítica americana desde os dias de Nicholas J. Spykman, mas de que adiantava expandir a OTAN para o leste e provocar os russos, correndo o risco de incendiar seu chauvinismo? Eles não foram derrotados em 1989/1991?
Bem, pode-se ver que o lobby “straussiano” neocon, que hoje tem a hegemonia do establishment americano – e eu diria europeu -, é de uma opinião diferente. O que prevalece hoje entre o establishment não é a realpolitik e o realismo à la George J. Kennan, mas sim o projeto unipolarista americano, esboçado nos anos 70, hegemônico nos anos 90, mas que entrou em crise com o advento de novas potências emergentes, da Rússia de Vladimir Putin à China Popular de Xi Jinping, e que gostaria de se afirmar a todo custo, mesmo com uma Terceira Guerra Mundial.