Os ventos políticos não cessam de mudar, mas o povo armênio segue resistindo bravamente àqueles que buscam sua destruição.
Quem são os azeris e os armênios?
O povo armênio descende dos remanescentes da civilização urartiana que foram mantidos nacionalmente coesos especialmente por sua aderência à Igreja Apostólica Armênia e a denominações dela derivadas, sendo frequentemente caracterizados como o povo cristão mais antigo do mundo. O povo azeri descende de povos de uma vasta região que foram historicamente unificados por uma língua de matriz turca e pelo islamismo xiita.
Apesar de a convivência histórica entre armênios e azeris ter sido predominantemente pacífica, foi marcada pelo Genocídio Armênio. De 1915 a 1917, o Império Otomano, governado por ultranacionalistas turcos, matou entre 600 mil e 1,5 milhão de seus cidadãos armênios, segundo estimativas de Benny Morris e Dror Ze’evi. Muitos dos sobreviventes fugiram para o Sul do Cáucaso, onde testemunharam (ou até contribuíram para) a declaração de independência da região após a Revolução Russa, em nome da efêmera República da Transcaucásia, que confederava georgianos, armênios e azeris.
Após uma invasão otomana da região, a República da Transcaucásia entrou em colapso, e seus governos efemeramente federados entraram em uma série de conflitos agravados por intervenções estrangeiras. Em seu episódio mais sangrento, uma coalizão entre otomanos e colaboracionistas azeris massacrou ao menos dez mil pessoas da comunidade armênia milenar de Bacu, hoje capital do Azerbaijão.
Ao fim, a região foi anexada pela URSS, que a dividiu administrativamente entre três repúblicas soviéticas autônomas aproximadamente conforme suas respectivas etnias predominantes, embora tanto a armênia quanto a azeri sejam até hoje dispersas pelo mundo, especialmente pelos vizinhos Irã (com mais azeris do que o próprio Azerbaijão), Rússia, Geórgia e Turquia, que contam com centenas de milhares de cada uma. Segundo o Requerimento n.º 550/15 do Senado do Brasil, inclusive, que reconheceu oficialmente o genocídio armênio, nosso país conta com pelo menos cem mil armênios, majoritariamente em São Paulo.
Comparavelmente às trapalhadas imperialistas ocidentais no Oriente Médio e na África, o Sul do Cáucaso foi objetivamente mal dividido. O Azerbaijão, enquanto república soviética autônoma, não contou apenas com seu território contínuo, mas também com o Naquichevão, um exclave geograficamente separado pela província armênia de Siunique (ou Syunik). Sob protestos contínuos da população predominante armênia local, contudo, não foi dado o mesmo tratamento ao Alto Carabaque (ou Nagorno-Karabakh), que foi mantido como província autônoma do Azerbaijão.
A Primeira Guerra do Alto Carabaque
A questão do Alto Carabaque apenas se aqueceu quando a URSS entrou em colapso. Percebendo a iminente independência das repúblicas autônomas, demonstrações populares em Estepanaquerte, capital do Alto Carabaque, pediram pela anexação da província à Armênia. Após Mahammad Agdash, Primeiro-Secretário do Partido Comunista do Azerbaijão na província de Agdash, declarar que cem mil azeris estavam prontos para cometer um massacre no Alto Carabaque, o governo regional do Alto Carabaque votou pela anexação.
Motivados por boatos de que um azeri teria sido vítima de um crime de ódio em Estepanaquerte, milhares de azeris marcharam em direção ao Alto Carabaque e mataram 50 armênios. O governo do Azerbaijão noticiou em suas rádios a morte de dois genocidas azeris em meio à repressão policial, e a população azeri de Sumgayit, no Azerbaijão, atacou sua comunidade armênia por três dias, sob o olhar passivo das forças policiais. O número de mortos nunca foi esclarecido.
Seguiu-se uma guerra sangrenta pelo Alto Carabaque, na qual a URSS decadente de Gorbatchov interveio a favor do Azerbaijão e a Rússia corrupta de Iéltsin vendeu armas para os dois lados antes de assumir uma postura conciliadora pró-armênia. O Azerbaijão contou também com a ajuda internacional de fundamentalistas islâmicos e nacionalistas turcos, além do apoio de Israel e da Ucrânia, esta provendo dezenas de tanques e aviões, além de participação direta dos paramilitares neonazistas da Autodefesa Popular Ucraniana (UNSO), hoje integrada às Forças Armadas e à política partidária da Ucrânia.
Em 1994, um tratado deu vitória aos armênios, ainda que amarga. O Alto Carabaque não conseguiu sua anexação pela Armênia, mas sua máquina política, enquanto República de Artsaque, se declara independente e mantém relações íntimas com o estado armênio. Forças armênias ocuparam 9% do território azeri, incluindo um corredor de segurança em volta de Artsaque, garantindo a segurança do povo e o trânsito entre ambas as entidades, separadas por uma estreita faixa de território azeri. Fora desta região, a milenar minoria armênia do Azerbaijão desapareceu, assim como a minoria azeri da Armênia.
Interregno
A presidência do Azerbaijão é ocupada desde 1993 pela família Aliyev em meio a perseguições contra dissidentes, fraudes eleitorais e culto à personalidade, em regime policial internacionalmente tolerado por sua eficiência em exportação de petróleo e gás.
Na Armênia, Levon Ter-Petrosyan serviu na capacidade presidencial de 1991 a 1998, quando articulou com o Azerbaijão um plano de pacificação do Alto Carabaque que teria, como primeiro passo, a retirada das tropas armênias em torno de Artsaque. Irredutível, foi pressionado a abdicar por figuras como o Primeiro-Ministro Robert Kocharyan, o Ministro da Defesa Vazgen Sargsyan e o Ministro do Interior Serj Sargsyan (sem parentesco com Vazgen). Demonstrando a integração entre ambos os países, Kocharyan já fora presidente de Artsaque, enquanto Sargsyan era veterano da guerra. Em seguida, Kocharyan venceu eleições antecipadas contra Karen Demirchyan, o último Secretário-Geral do Partido Comunista da Armênia.
Para as eleições parlamentares seguintes, Demirchyan e Sargsyan se aliaram, articulando uma frente ampla nacionalista com o Partido Republicano da Armênia (HHK) e a fraternidade de veteranos Yerkrapah. Demirchyan foi eleito Presidente do Parlamento, e Vazgen Sargsyan, Primeiro-Ministro. Demirchyan, Sargsyan e alguns de seus aliados foram executados por um grupo liderado pelo jornalista Nairi Hunanyan, que até hoje insiste ter agido por livre e espontânea vontade, após o mesmo passar alguns meses na Turquia.
Não obstante, o HHK permaneceu supremo no Parlamento até 2018, enquanto Kocharyan permaneceu na presidência até 2008, sendo sucedido por Serj Sargsyan. Em 2015, uma reforma constitucional removeu a maioria dos poderes presidenciais, transferindo-os para a figura do Primeiro-Ministro.
Já Artsaque nunca conheceu a paz. Até 2020, ao menos, sua integridade territorial e as posições armênias em seu entorno permaneceram garantidas, e a violência fronteiriça esporadicamente renovada habilitou a classificação do conflito como de baixa intensidade, comparavelmente a outras regiões mal diagramadas por soviéticos.
O golpe de Nikol Pashinyan
Nikol Pashinyan, um jornalista deputado pelo Contrato Civil (KP), até então sem liderança da oposição parlamentar, liderou uma série de protestos de março a maio de 2018 após o HKK propor o nome de Serj Sargsyan para primeiro-ministro.
Durante o decurso dos protestos, Sargsyan chegou a abdicar da presidência e ser democraticamente eleito primeiro-ministro. Após notícias de que militares estariam se unindo aos manifestantes, contudo, abdicou da posição, e tanto o presidente apartidário Armen Sargsyan (sem parentesco com Vazgen ou Serj) quanto os partidos de oposição ao HKK passaram a apoiar os manifestantes. Pashinyan começou a pressionar o Parlamento a aceitá-lo como primeiro-ministro interino sem eleições, o que fracassou. Após as abstenções do HKK o levarem a perder por falta de quórum numa eleição em que concorreu sem qualquer oposição, Pashinyan conseguiu pressionar membros suficientes do HKK para ser eleito em uma segunda tentativa.
Em referência aos protestos que derrubaram o comunismo na Tchecoslováquia, Pashinyan passou a chamar seu golpe de “Revolução de Veludo”.
Apesar de a Armênia de Serj Sargsyan ter boas relações com o Ocidente e os manifestantes pró-Pashinyan não terem expressado sentimentos pró-ocidentais ou antirrussos, os EUA vinham demostrando insatisfação diplomática, tanto pela melhoria das relações da Armênia com o Irã (que tem uma minoria armênia influente e teme o expansionismo turco do Azerbaijão) quanto por sua integração à União Aduaneira Eurasiática, alternativa oriental à União Europeia.
Pashinyan, ademais, já havia mostrado seus interesses antinacionais no Parlamento ao votar contra acordos de defesa aérea com a Rússia, com a justificativa de que a Armênia deveria criar um sistema completamente independente do russo. Infelizmente, utilizando ilustrativamente dados publicados pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos logo antes da Segunda Guerra do Alto Carabaque, a Armênia apenas contava com 17 aviões e 7 helicópteros, contrastando respectivamente com 1379 e 404 da Rússia, 310 e 95 da Turquia, e 36 e 26 do Azerbaijão.
A Segunda Guerra do Alto Carabaque
Tentemos ver o golpe pela ótica do Azerbaijão: Serj Sargsyan, um veterano militar e político do Alto Carabaque, região simultaneamente reclamada pelo Azerbaijão e pela homogeneamente armênia República de Artsaque, foi caoticamente substituído por Pashinyan, um primeiro-ministro fraco e inarticulado que no passado votara contra alianças militares com a Rússia, que tem alianças estratégicas com ambos os países e media conflitos na região. A ditadura plutocrática de Aliyev entendeu o recado e avançou contra posições armênias no Naquichevão, território azeri cujas fronteiras são policiadas por tropas armênias. Em seguida, Aliyev visitou o Naquichevão e afirmou que a região tinha mísseis capazes de alcançar Erevã, a capital armênia.
Em 27 de setembro de 2020, após vários pequenos atritos fronteiriços, o Azerbaijão lançou um feroz ataque contra as áreas ocupadas por forças armênias de manutenção de paz no Alto Carabaque. Apesar de tudo, a Armênia de Pashinyan e Artsaque chegaram a receber armas russas através de apoio logístico iraniano, mas perdeu a guerra, com o Azerbaijão reocupando cinco centros urbanos, quatro cidades pequenas e 286 vilarejos, em meio a agressões genocidas que reativaram a memória coletiva do Genocídio Armênio.
Em 10 de novembro, ambas as partes se submeteram a um tratado mutuamente insatisfatório de cessar-fogo, que incluía a cessão de posições preemptivas armênias ao Azerbaijão, a formação de corredores de segurança supervisionados por russos e o livre trânsito azeri por território armênio para acesso ao Naquichevão.
A Nova Resistência fez extensa cobertura do conflito na época.
Tensões renovadas
Pashinyan passou imediatamente a sofrer de seu próprio veneno.
Em novembro de 2020, irromperam protestos por sua renúncia pela Armênia, contando não apenas com cidadãos insatisfeitos em geral, mas também com refugiados do Alto Carabaque, a oposição parlamentar (incluindo o HKK e a Federaçfão Revolucionária Armênia), veteranos e parentes de vítimas. Entre muitas outras ações, os manifestantes invadiram a sede da Azatutyun TV (sucursal armênia da RFE/RL abertamente financiada pela Casa Branca) e um escritório da Open Society Foundations em Erevã. Os pedidos pela renúncia de Pashinyan não vieram apenas do povo nas ruas e dos partidos de oposição, mas também do presidente Armen Sargsyan, dos líderes da Igreja Apostólica Armênia (caracterizada por Pashinyan como “seita”) e de diversos governadores e prefeitos apartidários.
O auge das tensões veio em fevereiro de 2021, quando Serj Sargsyan questionou por que os mísseis russos Iskander não haviam sido usados na primeira semana de guerra contra o Azerbaijão. Pashinyan respondeu que eles simplesmente não explodiriam por serem velhos demais, provocando reações internacionais e domésticas, dentre as quais a do Tenente-General Tiran Khachatryan, Vice-Secretário do Estado-Maior (segundo cargo mais alto das Forças Armadas da Armênia), riu e disse que a afirmação não era séria. Foi exonerado horas depois.
Khachatryan não apenas lutou bravamente na mesma guerra em que Pashinyan fracassou como foi um dos dois únicos sobreviventes a serem imortalizados no rol dos Heróis Nacionais da Armênia pelo próprio Pashinyan. No dia seguinte, o Coronel-General Onik Gasparyan, Chefe do Estado-Maior, publicou um manifesto assinado por dezenas de oficiais, pedindo pela abdicação de Pashinyan. Pashinyan anunciou a exoneração de Gasparyan pelo Facebook. O presidente Armen Sargsyan pediu paciência aos dois lados e se recusou a assinar o decreto exonerador, enviando-o à Corte Constitucional, que apenas se pronunciaria meses após o fim da crise.
Os EUA, a UE e a Turquia manifestaram apoio por Pashinyan, o que domesticamente apenas foi ecoado por seus próprios ministros e pelo KP. A República de Artsaque e a oposição parlamentar manifestaram apoio a Gasparyan. Tanta era a impopularidade de Pashinyan que mesmo as instituições armênias em geral e o restante da coalizão liderada pelo KP mantiveram silêncio. A Rússia permaneceu cautelosamente neutra, limitando-se a confirmar a eficácia dos mísseis Iskander.
Após semanas de tensão, Gasparyan foi substituído por Artak Davtyan (que mais tarde seria exonerado após ser indiciado por vender mísseis disfuncionais para as Forças Armadas da Armênia) e Pashinyan dissolveu seu gabinete e anunciou eleições antecipadas para junho.
Ao ver as Forças Armadas da Armênia humilhadas por seu próprio governo, o Azerbaijão entendeu a mensagem. Após Aliyev fazer um discurso inflamatório e irredentista ameaçando anexar Erevã e as províncias de Siunique e Gelarcunique (Gegharkunik) se não fosse estabelecido um corredor especial entre o Naquichevão e o restante do Azerbaijão, forças azeris ocuparam o lago Negro, em Siunique. A Armênia pediu por intervenção diplomática russa, e passou a organizar um comitê mediado pelo Chanceler Sergei Lavrov. O Azerbaijão ignorou a iniciativa e cruzou a fronteira em um ponto próximo, mas distinto, finalmente enfrentando forças armênias.
Nas eleições de junho, uma oposição desmobilizada, indecisa mesmo se os parlamentares eleitos aceitariam seus próprios cargos ou passariam cinco anos em casa, foi derrotada pelo KP em meio a denúncias de fraude eleitoral e favorecimento midiático. Adquirindo maioria parlamentar, consolidou-se a vitória de Pashinyan.
Semanas depois, o Azerbaijão agrediu a Armênia novamente, e conflitos eclodiram em diversos pontos da fronteira ao longo das províncias de Siunique (incluindo a fronteira com o Naquichevão), Gelarcunique e Tavuche, e se continuam até os dias de hoje. A Armênia já reconhece 41 km² de seu território como ocupados nesta nova leva de ataques, enquanto o Azerbaijão afirma que a área é maior. Entre as regiões de conflito, destaca-se 24% da área da mina de ouro de Sotk, a maior de ambos os países. Quanto ao Artsaque, a situação é muito mais terrível: em 24 de março de 2022, tropas azeris ocuparam o vilarejo fronteiriço de Farukh, ocasionando a fuga em pânico de seus habitantes e dos de Khramort.
Em 6 de abril, Pashinyan e Aliyev se encontraram em Bruxelas para dialogar pela paz, com a mediação de Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu. Apesar de novas agressões azeis no meio-tempo, Pashinyan sugeriu ao Parlamento que seria aceitável um acordo de paz que, segundo Aliyev, reconheceria a integridade territorial do Azerbaijão. A oposição obviamente se revoltou, iniciando em 17 de abril protestos que continuam até a data de hoje. Segundo a própria sobredita Azatutyun TV, mais de duzentas pessoas já foram detidas.
No dia 24, memorial do Genocídio Armênio, Ishkhan Saghatelyan, Vice-Presidente do Parlamento, discursou contra a normalização dos laços entre a Armênia, o Azerbaijão e a Turquia. Segundo ele, a retórica governista sobre uma “era de paz” com a Turquia e o Azerbaijão é sem sentido e vazia: “O atual governo, cumprindo as pré-condições dos turcos e azeris, quer abandonar a luta nacional pelo reconhecimento do genocídio armênio e pela proteção de seus direitos em todo o mundo”. Segundo Saghatelyan, o “inimigo não mudou”, sendo ainda “o mesmo conjunto turco-azeri que realizou o genocídio em Artsaque em 2020”.
De fato, 2020 não é uma realidade tão distante.
Para atualizações, recomendamos o canal do jornalista armênio-brasileiro Rogério Anitablian, além, claro, da Voz da Nova Resistência.