O enigma de Picasso

Pablo Picasso é tido como o pai da arte moderna e símbolo do mundo que então nascia e hoje se impõe sobre todos nós. Para muitos, Picasso representa toda a difusão universalista e revoltosa desta era da indiferenciação. Mas a realidade não é bem esta.

O presente texto visa abordar algumas das questões filosóficas e artísticas que nasceram – e continuam a nascer, mesmo que imperceptivelmente – da obra do artista visual Pablo Picasso, considerado por muitos o maior artista do século XX, pai da arte moderna enquanto ente autônomo no percurso histórico, vanguardista insuperável e arquétipo do “ser artista” que ecoa até os dias atuais. Buscaremos entender o porquê de sua obra ocupar tão prestigioso espaço na cultura popular contemporânea, tendo-se criado entorno dela – e de seu autor – uma aura titânica dogmaticamente insuperável, ao passo que pouco ou nada se reflete a respeito da mesma, enquanto corpo homogêneo dotado de sentido estético e conceitual; ao contrário, vende-se popularmente uma ideia de Picasso como artista virtuosamente anárquico, de uma polivalência espontânea, residindo – supostamente – aí seu exclusivo valor: Nesta multiplicidade de distintos universos (enquanto realidades imagéticas) por ele criados, equilibrados sob o pincel de uma mente que, no livre ato da criação, daria à luz sua própria justificativa existencial.

Ocorre que a obra deste espanhol radicado na França –  e tão imerso à imagem moderna do país, ao ponto de ser considerado francês por muitos leigos – não é apenas não-anárquica, como também ontologicamente não-vanguardista, e até mesmo, não-moderna (embora tenha aberto o caminho para a afirmativa estética destas questões). E ressaltamos que, se assim é promovida, decorre exclusivamente da necessidade circunstancial de um contexto “artístico-cultural” globalizado e desmantelado o suficiente para agarrar-se ao discurso da ausência ontológica – ao mesmo tempo que o trata ontologicamente – para não desintegrar-se no ar. Para compreender esta contextualização, portanto, teremos de evidenciar, por meio de obras-chave, os aspectos que, quando bem interpretados, exibem uma possibilidade de compreender a obra de Picasso de forma profunda e enraizada na tradição artística ibérica e latina.


“Ciência e Caridade”, 1987

Picasso é, antes de tudo, um prodígio, tecnicamente nutrido por seu pai – professor de pintura – ao ponto de, aos quinze anos, pintar obras como “Ciência e Caridade” de 1987. Nestes termos, ele se encontrava como um pintor de formação clássica, formal, e não apenas isto; também um mestre capaz de desenvolver pictoricamente de forma genuína, autoral e sólida. O mesmo, no fim de sua vida, dizia  “aos 15 anos eu pintava como Velázquez e precisei de 80 anos para pintar como uma criança”¹. Seja como for, o artista, durante suas mais de nove décadas de existência, jamais se desfez de um quesito estrutural em sua pintura: A Figuração. Isto significa que, na relação de todas as obras por Picasso pintadas, nenhuma sequer corta o cordão umbilical com a representação dos corpos e objetos no espaço e no tempo; não há pintura picassiana sem o elemento associativo à realidade. Mesmo o seu “O violonista” de 1910, ainda que flerte com a abstração, não o faz sem com isto reafirmar a permanência de algo que, apesar da monocromia e geometrização radicais, ainda ressoa, na maneira em que se dá à visão na tela – através de uma composição pontual entre linhas e tonalidades – como a figura de um violonista “puro”, sem camadas que o desviem de sua imaculada significância enquanto tal.


“Minotauro em uma barca salvando uma mulher”, 1937

Isto porque a proposta do Cubismo (movimento artístico co-criado pelo artista, do qual esta pintura citada é um exemplar), em um momento histórico em que a fotografia se consolidava como perpetuadora material da imagem, relegando pragmaticamente a pintura à esta função outrora tão sua, era justamente a de transcender plasticamente tudo o que a fotografia poderia reter; ampliar os limites espaço-temporais, de modo à representação alcançar novas possibilidades enquanto signo, podendo permanecer em-si, mesmo que à despeito da dimensionalidade, criando um novo laço entre a realidade e a técnica pictórica, potencialmente superior e arraigada – ainda – à vivência do homem no mundo. Em suma, emancipar a pintura da potencial subserviência que lhe espreitava através da técnica fotográfica. Desta forma, Picasso buscava uma alternativa essencialmente conservadora para a pintura, enquanto a fotografia portava o conceito propriamente progressista culturalmente.


“Nu, folhas e busto”, 1932

Tendo em mente os escopos estilísticos – quanto à representação figurativa – e teóricos – quanto ao conservadorismo pictórico através do cubismo – devemos ressaltar o gênero narrativo preponderante em toda a obra do pintor malaguenho: O mundo clássico greco-romano. Picasso pode ser considerado o último grande pintor nestes termos, uma vez que seus trabalhos estão sempre imersos na simbólica mitológica, usando-a como veículo de comunicação e potência visual; aderindo-a, seja em seus autorretratos, quando incorpora a imagem do minotauro (por entender-se como uma alma híbrida de animalidade e virtude), tendo-se como exemplo “Minotauro em uma barca salvando uma mulher” de 1937, ou quando postula narrativas onde suas musas – aí outro conceito fundamentalmente clássico – prostram-se como vênus renascentistas, tal como “Nu, folhas e busto” de 1932, reclinada voluptuosamente, intocável, porém contemplável. Há ainda, suas naturezas-mortas em estilo Vanitas (gênero pictórico onde elementos são agrupados compositivamente afim de provocar um estado existencial reflexivo no observador), sendo estas também um clássico do Renascimento, e que Picasso oferece em seus períodos de maior introspecção, servindo-nos de exemplar, entre outros, “Crânio, ouriços e lâmpada sobre mesa” de 1943. Nesta pintura, a presença do crânio e da lâmpada apagada, bem como dos ouriços sobre um prato, todos banhados por gélidas cores, proporcionam à percepção pensamentos sobre os limites da permanência da chama da vida no mundo.


“Crânio, ouriços e lâmpada sobre a mesa”, 1943

Ao considerarmos estes apontamentos, devemos perguntar-nos o porquê de um artista tão imerso à estrutura clássica de representação, e mais além, tão compromissado à conservação da pintura como signo do real, pode ser correntemente interpretado como um progressista cultural por excelência. E a resposta reside no fato de que Picasso, enquanto principal influência artística do século passado, ao ser imbuído na narrativa que o atrela ao arquétipo do artista como um desenraizado niilista, coloca sua suposta iconoclastia como oferta para o caminho do “progresso” na arte, uma realidade onde todas as criações que apontam para o vazio e para a autodestruição em si, são concebidas como ações culturais, quando promovem justamente o oposto: A total destruição de qualquer culto e cultivo, fertilidade e expansividade do Espírito através do desenvolvimento artístico do Homem. E se esta interpretação disforme (e muito pertinente à casta plutocrata a-histórica que governa o globo atualmente) remete à Picasso como pedra angular em seu desenvolvimento, cabe a nós, portadores do sacro significado da Cultura, dar voz à real leitura da obra deste artista imortal, considerando as raízes que a ele se prenderam, bem como as que o mesmo buscou se prender, tendo em vista não a transvaloração caótica da tradição, mas a expansão desta rumo a novas possibilidades de expressão sempre atuais; fato que, tendo sido bem sucedido ou não, demonstra-se, em sua busca, quarto-teórico por excelência. 

Referências

1. “501 grandes artistas”; editora sextante, 2008, p. 323.

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Cassiano Sottomaior

Pintor e professor porto-alegrense, membro da NR-RS.

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Um comentário

  1. E… a:
    Arte.
    Literatura.
    Como ficam? Aqui. Sobretudo a música artística.
    E os livros no Brasil?

    Saúde & educação. Geral. E irrestrita. Isso sim.

    O Brasil precisa urgente voltar a qualidade de sua vida diária boa. Educação nas Escolas. Ter músicas realmente boas no dia a dia. E bons hospitais. O Brasil precisa urgente voltar a qualidade de sua música. PT venera a Indústria Cultural. Melhor para dominar. Literatura e alta cultura é de que o Brasil necessita a tempo nas nossas escolas e na educação das curuminhas. E de música boa. Esteticamente boa. A frente de tudo a qualidade de 1ª. Estética.

    O Jogo de Cartas da Educação Infantil: Seria o bom gosto nas escolas. Tal qual Tarkovsky. Ou como o cinema antigo (de qualidade brasileiro).

    Eis: 1º lugar educação dos mais jovens, para se ter solidez no futuro próximo. Necessitamos muito de bons hospitais. E escolas boas para os curumins. Precisamos de alta-cultura. Alta literatura; Kafka, Drummond, Dostoievski, Machado de Assis, Aluísio Azevedo do Maranhão. De arte autônoma. E educação verdadeira nas escolas dos pequenos. O que não houve. O Brasil vive consequência de nosso passado político bem atual (2 décadas). Fome, falta de moraria, atraso, breguices, escolas ruins, falta de hospitais: concreto… O resto são frasinhas® poderosas: Eis aí a pura e profunda realidade sociológica e filosófica: A “Copa das Copas®” do PT® em vez de se construir hospitais, construiu-se prédios inúteis! A Copa das Copas®, do PT© e de lula©. Nada se fez em 13 anos para esse mal brasileiro horroroso. Apenas propagandas e propagandas e publicidade. Frasinhas. Qual o poder constante da propaganda ininterrupta do PT®?

    Apenas um frio slogan, o LUGAR DE FALA do Petismo® (tal qual “Danoninho© Vale por Um Bifinho”/Ou: “Skol®: a Cerveja que desce Redondo”/Ainda: “Fiat® Touro: Brutalmente Lindo”). Apenas signos dessubstancializados. Sem corporeidade. Aqui a superficialidade do PETISMO®: Signos descorporificados. Sem substância. Não tem nada a ver com um projeto de Nação. Propaganda pura. O PT é truculento.
    PT = desonra. Ignomínia. Indigno. Poluição. Realidade crua.

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