Por qual motivo teria a Rússia posição de pivô da Multipolaridade? Se o império unipolar anglófilo treme em suas décadas de domínio e os chineses estão suficientemente confortáveis para se adequar a qualquer paradigma geopolítico que se manifeste, Rússia, Brasil, África e outros tem na multipolaridade mais que uma oportunidade, mas uma necessidade.
O primeiro fator (e mais óbvio) é o fato dela ter perdido a extensão de poder que tinha nos tempos de URSS quando, sozinha, podia rivalizar com a OTAN. Hoje isso não é mais possível: para fazer frente à OTAN, o único caminho possível aos russos é através da junção com outros polos de poder; por si só ela não daria conta. Deste modo, o discurso feito por Putin em Munique (2007) expressa esta realidade: a necessidade/desejo de uma ordem multipolar.
O segundo fator é um contrabalanceamento do próprio poder chinês. Para os russos, isoladamente, haveria muita dificuldade em contrabalancear o poder chinês: os mercados da Ásia Central, por exemplo, já voltaram-se em boa medida para a China. Do mesmo modo, a China possui envergadura para projetos de extensão e controle na América Latina e África. Uma China forte destoando muito, faria o mundo caminhar para uma neo-bipolaridade, e não para uma multipolaridade: e isso com uma Rússia semi-vassala, dependente além da conta de Pequim.
Dentro da lógica intra-BRICS, é fundamental a posição russa como contrabalanceamento do poder chinês. E tal movimento pode ocorrer com a Rússia apoiando-se em coligações que envolvam principalmente fatores energéticos e militares. Em outras palavras, se a balança está favorável demais aos chineses, russos, brasileiros, sul-africanos e indianos podem coligar para operar um contraponto.
Quanto aos EUA, eles temem a China porque percebem nela um potencial imperial. No passado, alguns analistas de relevo chegaram a cogitar um G-2.
Outro ponto: hoje, já se faz sentir a influência chinesa na América Latina, colocando em risco diversos interesses brasileiros. Neste sentido, até mesmo uma influência russa de menor envergadura, tal como as relações Brasil-África e Brasil-Rússia, são fundamentais para dosar a influência chinesa, tanto na América Latina quanto na própria África, onde o Brasil pode e deve desenvolver projetos de integração com países de colonização portuguesa.
No rolar dos dados, é para a Rússia que o mundo multipolar mais importa. A China pode mais facilmente abraçar outras formas sistêmicas. Por seu desenvolvimento econômico, ela não precisa necessariamente de um mundo multipolar (aceitaria facilmente um mundo tripolar, por exemplo).
Para o Brasil, as relações com os russos e indianos são vitais para “filtrar” o poder chinês, isto é, para um fundamental equilíbrio da balança de poder. Alguns ingênuos podem acreditar que a China seria a peça vital para um mundo multipolar, porém, dependendo do desenvolvimento chinês, ela pode abrir mão disto; sua necessidade por outros polos de poder diminui a cada década, e se a China tem a capacidade de fazer a América Latina um polo de poder dela, por exemplo, por qual motivo ela desejaria que de lá surgisse um polo independente, podendo ferir até alguns de seus interesses econômicos que crescem a cada dia na região? Podem até existir alguns fatores, mas a China termina ganhando mais com uma América Latina fraca e confusa. A China pode comportar uma neo-bipolaridade, pode comportar uma tripolaridade entre ela, Rússia e EUA com a Rússia semi-vassala, pode comportar uma manutenção do atual status quo e pode também comportar uma multipolaridade. A atuação dos russos como “pivô”, aquele que distribui o jogo, é forçar a última opção. Por isso Rússia é a chave principal e principal não é ser a única. A América Latina tem relevo na geopolítica do gás, a África também é local de potencial enorme, além de serem mercados e poderes cada vez mais necessários aos russos para a construção de uma nova ordem não “ceda” demais aos interesses chineses.
A Rússia tem posição geoestratégia central, podendo apoiar e buscar, de tempos em tempos, um ressurgimento de uma outra Europa com caráter mais autônomo, não mais pela cooperação nos organismos multilaterais típicos como vinha realizando, mas sim nos moldes pensados por Sergei Karaganov, renomado politólogo russo, que opta dar maior prioridade para relações bilaterais. Os recursos minerais e energéticos do Heartland tem enorme peso na balança; dentro da disputa da Geopolítica dos dutos, os russos escolhem quem irão “irrigar ou secar”, alterando e manobrando as dinâmicas de crescimento conforme as marés do sistema internacional se apresentam. Corrobora o fato de, sem abandonar o mercado energético europeu, terem agora dado ainda maior importância ao mercado indiano e chinês. O fator energético pode fazer com que, inclusive, se visualizem políticas internacionais comuns, na barganha por uma estrutura multipolar dentro das organizações internacionais existentes, sejam elas as antigas, ou as novas.
Não podemos deixar de lembrar que a Rússia também figura em passagem comercial de relevo, quase no centro da “Ilha Mundo” de Mackinder, estando por exemplo dentro da chamada Nova Rota da Seda. Um projeto multipolar mais justo e equilibrado — e mais favorável ao Brasil — depende hoje, dentre outras coisas, do resultado do conflito na Ucrânia. E não nos esqueçamos que os russos foram dos poucos países que toparam uma transferência tecnológica em seara de caráter bastante sensível: a nuclear. Não apenas isso, como chama aos olhos o relevante veto russo no conselho de segurança da ONU, em projeto que de forma sutil abriria brechas indiretas para que se questionasse a atuação do Brasil na Amazônia, apontada por muitos como a próxima ‘bola da vez’, caso de fato ocorra um recuo das atuações da OTAN no Leste Europeu, ou concomitantemente. Uma capitulação russa na Ucrânia significaria uma Rússia enfraquecida, capenga em aplicar suas potencialidades na busca de um mundo multipolar. Atuações russas como vimos na recente guerra Síria poderiam ser mais raras ou mais tímidas, vez que a paridade nuclear sofreria duro golpe, caso a Ucrânia instalasse em seu território o escudo anti-mísseis e arsenal nuclear da OTAN. Sem a paridade nuclear tal como é hoje, os russos teriam ainda menos voz e consequentemente menos capacidade em manobrar o sistema internacional para uma estrutura multipolar.
Esse debate que nos conduz a uma realidade inescapável: a Rússia possui hoje o maior arsenal mundial de ogivas nucleares, assim como está no estado da arte na tecnologia de mísseis hipersônicos, que podem carregar ogivas nucleares, enquanto os EUA ainda caducam ao tentar aplicar tal tecnologia e possivelmente, quando a obtiverem, a tecnologia russa em tal seara já estará mais refinada e precisa. Assim, temos o fator de suma importância: o bom e clássico Hard Power russo, que embora o Ocidente simule não ser algo que os assustem, é muitas vezes aquilo o que os freia em suas práticas imperialistas. Este mesmo fator cria uma interdependência russo-chinesa, vez que a China também sabe que a chance de ter suas decisões respeitadas podem depender, em uma última instância, de um apoio militar de Moscou. Quando se considera o fator militar e o poder bélico, tal como o Direito Penal é a ultima ratio para o Estado lidar com condutas indesejáveis, o arsenal nuclear é a última ratio no tabuleiro internacional, mas um dos primeiros fatores a serem contabilizados no cálculo de forças. Partindo do realismo clássico ao neorealismo, é coeficiente que país algum pode se dar ao luxo de ignorar; escolas puramente economicistas, liberais ou institucionalistas pecam ao esquecer parcialmente ou minimizar este tão importante fator, que corrobora fortemente com a análise de que a Rússia é vanguarda e pivô da multipolaridade, importância ímpar que vem desde Mackinder, para quem a área do Heartland, em sua extensa tese, era o pivô geográfico da história.
Hora ou outra sempre apregoam a morte da Geopolítica ou o Fim da História, e novamente vemos uma “Vingança da Geografia” para citar Robert Kaplan, que já alertava para os riscos de esquecer a relevância de fatores geográficos básicos. Se como disse Haslam “A necessidade é a maior virtude”, a necessidade russa é uma ordem multipolar, por trás dela há um povo em certa medida autônomo e mais de 6 mil bombas nucleares.