Dugin na Mídia Brasileira: Resposta ao Poder360 e à Gazeta do Povo

O início da operação especial russa na Ucrânia despertou um grande interesse da mídia brasileira por Aleksandr Dugin. Por enquanto, porém, essas abordagens têm sido superficiais e polemistas, entrando pouco no pensamento filosófico do pensador russo.

O filósofo russo Aleksandr Dugin está em evidência no Brasil, graças às tensões na Europa Oriental que culminaram em uma operação militar russa na Ucrânia, com o objetivo de desmilitarizar o país e proteger a população do Donbass.

É importante recordar que, até então, Dugin só era mencionado esporadicamente e em direta correlação ao recém-falecido pensador neoconservador, Olavo de Carvalho. Seguindo a superestimada obra de Benjamin Teitelbaum, Guerra pela Eternidade, a narrativa hegemônica tem sido de que se Olavo de Carvalho era o “guru” de Bolsonaro, Dugin era o “guru” de Putin.

Não se via qualquer preocupação com apontar as imensas diferenças teóricas e ideológicas entre ambos os personagens. Da perspectiva da esquerda liberal, os dois seguiriam uma mesma “ideologia”, o “tradicionalismo”, que a mídia de esquerda também não soube bem explicar.

A operação militar russa forçou a mídia brasileira a tentar levar Dugin um pouco mais a sério, ainda que o resultado seja decepcionante.

Poder360

O que incomoda de imediato no tratamento dado pelo portal de centro-direita Poder360 é o uso de fontes de informação pouco confiáveis e extremamente ideologizadas, como Anton Shekhovtsov, apoiador do Maidan ucraniano, funcionário de institutos e órgãos atlantistas como a ONG OpenDemocracy (financiada pela Open Society de Soros, pela Fundação Rockefeller, etc.).

De fato, é na opinião de Shekhovtsov que a autora da matéria se apoia para categorizar Aleksandr Dugin como “fascista”. Ao mesmo tempo, o artigo diz que na obra A Quarta Teoria Política Dugin defende a superação do liberalismo, do comunismo e do fascismo. O que fica evidenciado é uma dificuldade de entender o pensador em seus diferentes períodos intelectuais.

Os erros se aprofundam quando o autor afirma que Dugin possuiria uma visão de mundo bipolar. Afinal, o filósofo russo é renomado, entre outras coisas, precisamente por uma cosmovisão multipolar, no qual mesmo os EUA e seus fundamentos ideológicos teriam um lugar, ainda que circunscrito à América do Norte.

O autor também não compreende bem a linha política do filósofo russo, já que o acusa de defender um “Estado Total” quando ele é crítico de todo totalitarismo, considerado perversão da concepção Tradicional de Estado, mais orgânica do que total. Dugin, ademais, apesar de ser cristão ortodoxo, não pode ser considerado um “nacionalista ortodoxo” porque simplesmente dificilmente poderia ser considerado um nacionalista, pelo menos em suas definições usuais.

Ora, Dugin rejeita a própria ideia de Estado-Nação como antitradicional e relíquia da modernidade, a ser substituída pelo conceito Tradicional de Império, que se organiza geoestrategicamente como Grande Espaço segundo linhas civilizacionais.

Não obstante é fundamental pontuar, por honestidade, que procedem as informações de que Aleksandr Dugin é crítico de concepções políticas liberais, como o parlamentarismo e a democracia burguesa, bem como da ideologia ocidental dos direitos humanos, assim como do lobby LGBT, do transumanismo e da tirania sanitária (ainda que não seja “negacionista” da pandemia).

Em seguida, quando analisa as relações de Dugin com o Brasil o autor segue errando. Primeiro, quando afirma que a Nova Resistência surgiu no interior de São Paulo, quando a organização surgiu na capital do Rio de Janeiro.

A situação pior no que concerne a análise geopolítica que Dugin faz do Brasil. O Brasil não precisa escolher, segundo Dugin, entre Grande Eurásia e Atlantismo, mas entre unipolaridade e multipolaridade. O Brasil, para Dugin, deve se tornar o centro de seu próprio polo e isso independe das opiniões pessoais de Bolsonaro porque a geopolítica, enquanto ciência, não pode depender das preferências pessoais de quem ocupa o cargo máximo de um Estado.

E se Dugin se engajou, por um tempo, com ideias vinculadas à Terceira Teoria Política, para depois superá-las, ele nunca teve um período “comunista stalinista”, mas nacional-bolchevique e jamais foi antissemita, apesar de algumas críticas esporádicas ao sionismo.

Gazeta do Povo

Se ao tratamento do jornal Poder360 podemos oferecer a crítica de uma certa falta de conhecimento dos temas tratados e do pensamento do autor, no caso do jornal neoconservador Gazeta do Povo o trabalho é muito mais decepcionante. Não se trata, nesse artigo, de jornalismo autêntico mas de peça de propaganda ideológica liberal e olaviana, com direito a comparações com Rasputin e acusações ainda piores.

A narrativa da “defesa da invasão da Ucrânia”, certamente tirada de resenhas da clássica obra duginiana dos anos 90, Fundamentos da Geopolítica, sofre de problemas clássicos de interpretações. A Ucrânia é terra historicamente russa, da perspectiva da etnogênese gumileviana.

O projeto neoeurasianista evidentemente contempla uma Ucrânia que, a longo prazo, não pode seguir sendo um Estado-nação soberano no sentido vestfaliano (inclusive porque a era dos Estados-nações acabou e a soberania vestfaliana não passa de ficção jurídica no século XXI), mas trata-se da defesa de uma lenta aproximação e integração da Ucrânia com a Rússia, nos mesmos moldes das relações Rússia-Bielorrússia e Rússia-Cazaquistão.

Desnecessário dizer que este é um caminho natural da Ucrânia, por razões étnicas, culturais, folclóricas, geográficas, geopolíticas, históricas, espirituais, etc., e que a ruptura com a Rússia a partir do EuroMaidan em 2014 não foi “natural” ou fruto da “autodeterminação do povo ucraniano”, mas fruto de uma revolução colorida, culminação de três décadas de guerra híbrida russofóbica na Ucrânia.

Os protestos no leste e sul da Ucrânia, mencionados pelo autor, correspondiam às tentativas de autodeterminação das populações russófonas da Ucrânia, após o início de medidas e discursos antirrussos por parte do novo regime em Kiev.

As referências do autor a “Império”, mencionando o Leste Europeu e a Ásia, soam como acusações de imperialismo como se o projeto eurasiático tratasse de um expansionismo militar a abarcar tudo entre a Polônia e o Vietnã. Aí tem um papel a referência a uma “nova União Soviética”.

A dificuldade parece ser a de entender a ideia de multipolaridade (o termo não é mencionado uma única vez no artigo!), um dos elementos principais do pensamento de Dugin. O filósofo defende que a unipolaridade estadunidense é antinatural e nefasta para os povos do mundo e busca contrapor a essa unipolaridade uma multipolaridade, de base continentalista, na qual uma pluralidade de polos civilizacionais coexiste no plano internacional em pé de aproximada igualdade.

A Rússia, como Heartland, possui um papel central como foco de aglutinação de todo o polo da civilização eurasiática, que por razões geoestratégicas amplamente elaboradas por Sir Halford Mackinder, ocupa uma posição proeminente na geopolítica global. Muitos outros polos independentes podem surgir, um chinês, um indiano, um europeu, um ibero-americano, etc.

Não poderia deixar de haver, porém, o Reductio ad Hitlerum, com a escolha seletiva de algumas supostas conexões nazifascistas, ao longo de 40 anos de atividade intelectual, que são então distorcidas para se gerar o quadro de um pensador “nazista”.

Aleksandr Dugin nunca escondeu que nas teorias políticas mortas do século XX existem aspectos, ideias e personagens potencialmente interessantes e que podem ser adaptados e aproveitados caso sejam desvinculados dos aspectos vis e negativos do comunismo e do fascismo. Isso abarca, por exemplo, de figuras que nunca foram efetivamente nazistas (ainda que enquadradas à época na Terceira Teoria Política) como Carl Schmitt e Martin Heidegger, a algumas figuras dissidentes e heterodoxas do fascismo alemão, especialmente do âmbito cultural e antropológico, como Hermann Wirth. Isso não prova nenhum nazismo em Dugin, ao contrário, demonstra sua vocação de livre-pensador.

Comentários sobre Breivik, por sua vez, se enquadram em uma certa lógica duginiana de deixar que as consequências deem cabo das causas, no que concerne o Ocidente. Ou seja, de que a decadência ocidental levará a uma reação violenta dentro do próprio Ocidente, e em uma perspectiva estratégica geral isso é interpretado como aceitável.

Desnecessário dizer que Dugin nunca pediu o genocídio do povo ucraniano. Em 2014, após o Massacre de Odessa de 2 de maio, Dugin afirmou que não era possível dialogar com os responsáveis por isso e que a única resposta possível aos neonazistas russófobos responsáveis pelo ato era o extermínio. Talvez seja possível considerar que são palavras duras, mas não é possível deduzir delas qualquer apologia de genocídio do povo ucraniano.

Os comentários que o autor faz sobre a Nova Resistência e o debate entre Olavo de Carvalho e Aleksandr Dugin, por outro lado, são neutros e meramente descritivos.

Causa espanto, porém, que para uma matéria relativamente longa não haja qualquer espaço para as ideias de Dugin. Não há qualquer menção à Noomaquia, à Teoria do Mundo Multipolar ou ao Platonismo Político. A Quarta Teoria Política é mencionada apenas uma vez, de passagem. Todo o enfoque trata de buscar referências de décadas atrás que possam apontar alguma “conexão nazista” em Dugin.

O discurso da direita, aparentemente, não se diferencia tanto do discurso da esquerda. Os dois são politicamente corretos e promovem a cultura do cancelamento.

Conclusão

Por mais positiva que seja a popularização do nome de Aleksandr Dugin no Brasil (acompanhado por menções à Nova Resistência), percebe-se que a mídia brasileira ainda está se concentrando em polêmicas vazias, sem ter qualquer interesse pelos temas e ideias desenvolvidas pelo filósofo.

A popularização do nome de Dugin deve nos levar à intensificação da difusão das ideias, temas e conceitos da Quarta Teoria Política, da Noomaquia, da Multipolaridade e do Platonismo Político, para garantir que dos curiosos atraídos pelas polêmicas pelo menos uma parcela se aprofunde no pensamento filosófico do autor.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

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