Diante da mídia ocidental fazendo todo o barulho possível para vender os russos como cruéis e imperialistas contra um povo ucraniano independente e vitimizado, sabemos que historicamente essa divisão extrema não se sustenta. A camarada Helena Kardash compartilha um pouco da experiência da sua família
Sou descendente de russos, porém não “puros”. Do lado de minha avó eram os Kraviakov, russos “raiz” do Volga. Mas o sobrenome do meu avô, Kardash, como quem conhece alguma coisa de russo logo imagina, não é um sobrenome russo eslavo, e sim de origem tártara. Isso porque os Kardash viviam na região que hoje chamam de Ucrânia, local em que inúmeras tribos se encontraram e se misturaram. Em um certo ponto da história meu bisavô Nicolau Kardash foi parar na fronteira com a China, para onde iam muitos russos trabalhar na construção da ferrovia Transiberiana, e lá se encontrou com minha bisavó Tamara Karpinskaya, cuja família também viera da Ucrânia. O plano era voltar para a Ucrânia, porém a revolução russa mudou tudo.
Agora você pode se perguntar: mas Helena, então sua família é ucraniana? Como você está defendendo a Rússia na guerra?
Vejam bem, pelas histórias que minha bisavó contava e pelas memórias que ela escreveu, os Kardash devem ter vivido há pelo menos 400 anos no território que hoje chamam de Ucrânia. 400 anos e seus descendentes, meu avô e minha bisavó nunca, jamais, se consideraram “ucranianos” no sentido que usam hoje de nacionalidade. Posso dizer isso com total certeza porque conversei com eles (principalmente com meu avô) sobre isso muitas vezes enquanto estavam vivos.
Como assim? Eles eram párias então, envergonhados de sua origem? Ou sei lá, nobres russos? Não, vou explicar: eram todos comerciantes, camponeses, enfim, gente humilde. Acontece que meu avô veio para o Brasil nos anos 1950, ou seja, muito antes da queda da União Soviética e da Ucrânia ser considerada um país de fato. Estando aqui no Brasil quando tudo isso aconteceu, a propaganda anti-russa à qual ele esteve exposto foi a propaganda mais genérica e preconceituosa que sempre existiu aqui no Brasil, de medo dos comunistas e de toda essa baboseira que ele entendia muito bem. Essa história de ucraniano ser diferente de russo, ser outro povo, falar outra língua, brigar pela sua “liberdade”, nunca pegou nele, e nem na maioria das pessoas de mais idade, pois não fazia sentido nenhum. Só mesmo uma lavagem cerebral pesada feita nos jovens poderia fazer com que acreditassem que diferenças que sempre existiram de uma região para outra significavam que eram povos diferentes com interesses diferentes.
Meu avô falava russo e falava que uma avó dele falava russo-ucraniano.
Russo-ucraniano?
É, assim como eu falo português paulista e meu marido português carioca. Pois é.
“Ah, mas você não pode usar uma experiência pessoal da sua família para interpretar a realidade!” Bom, pelo menos é uma experiência real de conhecimento, ao contrário de um milhão de baboseiras que estão falando na TV baseadas em nada, mentiras afrontosas e invenções absurdas.
Muitos ucranianos hoje se acham muito diferentes dos russos e querem um país só deles, para fazer sabe-se lá o quê. Sim, querem, pois a URSS perdeu também no “soft power”, perdeu a guerra cultural e, nos anos após sua queda, a lavagem cerebral russofóbica foi intensa nos países que se desintegraram da URSS e inclusive na própria Rússia. É aquela coisa, troque alimentação básica, saúde e educação para todos pela sua liberdade individual de usar jeans e comer McDonald’s enquanto o outro vira mendigo.
Meu avô sempre dizia: a primeira capital do Brasil foi Salvador. Imagine que os baianos se separem do resto do Brasil por uma brincadeira burocrática que um político fez décadas atrás. Eles falam “oxente” e “buzu” e consideram isso como uma outra língua. Começam a se considerar outro povo, um povo mais puro e menos miscigenado que o resto do Brasil. E, de repente, os EUA, de olho nas suas riquezas naturais, porém dizendo que querem proteger a soberania dos pobres baianos, colocam uma base da OTAN ali, com misseis apontados para são Paulo e Rio.
“Mentira! Bobagem! Você não sabe nada da Ucrânia!”
Eu não sei por que meu avô e minha bisavó inventariam essas coisas, ainda mais há muitos anos atrás. Mas sei que eles estariam muito tristes com o que acontece na Ucrânia hoje e com a propaganda de ódio novamente contra os russos, uma coisa sem sentido nenhum.
Tem que ser muito ignorante da vida ou muito burguês pra enxergar alguma contradição em “se queres paz, prepara-te para a guerra”. Sempre foi assim e sempre será, não importa o quanto você ache o John Lennon e o Ghandi lindos. Pacifismo é um vício burguês.
EUA e Otan estão há décadas causando guerras horríveis e interferindo em governos que não se ajoelham para eles, chamando-os de autocratas e inimigos da democracia, mas não é possível que vocês não enxergaram ainda que isso é só a desculpa perfeita para vivermos sob a régua alheia, na autocracia deles. Quando você fica papagaiando a defesa da democracia e liberdade deles, não consegue mesmo se ouvir repetindo uma única visão de mundo que se acha superior para julgar todas as outras? Palavras ao vento que justificam bombardeios em países distantes?
“Ai, mas na Rússia perseguem os homossexuais!” Pelo amor de deus, acorda. No Brasil também perseguem! E temos violações de direitos humanos muito piores todos os dias, só que ainda não chegou a nossa vez de sermos divididos e conquistados agressivamente, até porque nossos políticos são mansas ovelhinhas do imperialismo americano.