A Ideologia Russa do Futuro

As autoridades russas estão preparadas para enfrentar as provocações ocidentais. Mas elas meramente reagem as ações atlantistas. Elas não têm iniciativa. E não têm iniciativa porque carecem de um fundamento ideológico sólido, autônomo. A Rússia resiste à hegemonia unipolar, mas ainda não encontrou seu próprio caminho.

O atual confronto entre a Rússia e o Ocidente – especialmente com os Estados Unidos – chegou a tal ponto que, independentemente de ocorrer ou não um conflito militar aberto, as diferenças não apenas geográficas, mas também civilizacionais e ideológicas entre os dois lados estão se tornando cada vez mais claras. Esta fenda total e irreversível entre a Rússia e o Ocidente permanecerá, independentemente de um ou outro ator impor sanções ou implantar tropas perto das fronteiras de seu inimigo. Portanto, não importa se a Rússia ou os Estados Unidos disparam o primeiro tiro ou qual será a direção dos eventos futuros, o fato é que esta fenda já é um fato e ambos os lados – especialmente o lado russo – não sabem como explicar o que está acontecendo.

A mentalidade russa não tolera rupturas abruptas, por isso é muito provável que tudo continue como antes. Além disso, mesmo que uma guerra irrompa ou passemos por mudanças colossais, os russos continuam a viver suas vidas como se a paz e a estabilidade ainda reinasse. Nossa psique tende à harmonia e à calma, por isso não podemos assumir diretamente a crise que estamos atravessando. Um famoso ditado russo diz que “adormecemos enquanto tudo está acontecendo”. E dormimos por tanto tempo que somos forçados a correr a velocidades hipersônicas a fim de nos recuperarmos. Embora militar e diplomaticamente pareçamos estar prontos para ir à guerra, falta-nos a ideologia e as ideias para nos ajudar a superar o sono dogmático em que nos encontramos: “tudo está calmo e nada vai acontecer”. Ainda estamos imbuídos da atmosfera dos anos 90 e mais de vinte anos de reformas patrióticas não conseguiram nos sacudir deste sonho.

Infelizmente, ocorreram mudanças irremediáveis e é hora de percebê-las… mas tudo está se movendo muito lentamente. Nossa educação, ciências sociais, cultura e visão de mundo ainda são dominadas pelo paradigma liberal ocidental e qualquer tentativa de consertá-las através do conservadorismo não tem êxito.

No entanto, a Rússia está cada vez mais à beira da guerra com o Ocidente. E não importa se queremos que isso aconteça ou não, nosso país está cada vez mais desconectado do mundo ocidental, de suas leis, de suas normas, de suas regras e protocolos. Mas esta desconexão não é o produto de um renascimento da identidade russa diante do mundo moderno, globalista e liberal, mas sim o resultado de nosso movimento na direção oposta e de não encontrarmos nosso lugar em um mundo globalizado que nos sentimos cada vez mais alheios à nossa existência.

Quando Moscou se aproximou do Ocidente no final dos anos 80 e início dos anos 90, os ocidentais viram isso como uma derrota e começaram a se comportar de forma agressiva. Foi por essa razão que eles nos viram como uma ameaça e começaram a planejar a continuação do conflito: a OTAN se expandiu para o leste e o Ocidente ignorou as advertências de Moscou. O Ocidente quase sempre trata os derrotados desta maneira: o Tratado de Versalhes de 1919, para citar um exemplo histórico, foi uma humilhação para a Alemanha e o nacional-socialismo de Hitler foi uma vingança. Este cenário foi repetido em 1990 com a Rússia.

A Rússia tem se fortalecido sob Putin e assim conseguiu se tornar um polo independente e uma potência soberana. Entretanto, o Ocidente vê a Rússia como nada mais do que uma “potência regional mal orientada” que precisa “aprender uma lição e ser colocada em seu lugar”. Putin uma vez tentou ser um amigo do Ocidente e aceitar as regras do jogo acordadas por ambos os lados. Mas o Ocidente considerou isto inaceitável e aderiu ao princípio de que algumas democracias são iguais, mas algumas são “mais iguais que outras”. Putin recusou-se a fazer parte dos “animais da fazenda” sujeitos a tais ideais e decidiu usar o tempo para nos modernizar e preencher a lacuna.

As autoridades russas não querem a guerra e estão apenas reagindo. Entretanto, existe um problema muito mais profundo com o qual elas têm que lidar: a Rússia é uma civilização particular com sua própria identidade e suas próprias leis geopolíticas. O Ocidente sempre nos considerou como um Outro, e não importa o quanto nos aproximamos, sempre acabamos lutando. O Outro e o Mesmo sempre precisam manter sua distância. Se a distância for encurtada, então o pêndulo irá balançar na direção oposta e é isso que está acontecendo agora.

Mesmo que Moscou não queira, acaba sempre dizendo “não” ao Ocidente. Mas depois de estarmos conscientes de que negamos é necessário saber ao que dizemos “sim”. Negamos o liberalismo, o globalismo, o pós-humanismo, a ideologia de gênero, a hegemonia ocidental, os dois pesos e duas medidas e a cultura pós-moderna. Entretanto, o que é que afirmamos?

É aqui que as ideias que anteriormente colocavam a Rússia contra a Europa (o Ocidente) se tornam relevantes e precisamos voltar a elas se quisermos continuar nossa luta:

  • Primeiro, a Rússia como bastião do mundo ortodoxo e Moscou como a Terceira Roma;
  • A monarquia russa como a barragem (katechon) que impede o triunfo da iniquidade no mundo;
  • Os ideais eslavófilos do destino universal dos eslavos orientais (e outros povos) através de uma Terceira Renascença;
  • A teoria eurasianista da Rússia como uma civilização distinta e independente do Ocidente;
  • As ideias dos populistas russos (narodniks’) de que a sociedade russa é profundamente agrária e sua rejeição à industrialização;
  • As ideias soviéticas sobre a oposição da Rússia ao Ocidente e ao resto do mundo;
  • A sofiologia e o misticismo patriótico desenvolvidos durante a literatura da Idade de Prata.

Podemos dizer que estes são os principais elementos da futura ideologia russa. Por outro lado, é necessário não apenas restaurar estes paradigmas, mas também resolver os cismas profundos entre eles e as oposições históricas que um ou outro tinha na época. É necessário criar uma perspectiva sintética que rejeite tanto as pretensões universalistas do Ocidente quanto a superioridade de seus “valores” (algo que é comum a todas essas escolas) se quisermos moldar nosso futuro. E este problema não se resolve recorrendo a certas fórmulas ou tecnologias políticas, a primeira coisa que precisamos fazer é nos livrar de toda a escória servil e enganosa, ou seja, tecnocrática, que até agora tem impedido o nascimento de nossa ideologia. O que precisamos é voltar ao pensamento russo, para ressuscitar nosso Logos e mergulhar nele. Esta tarefa só pode ser realizada por pensadores e místicos, pois requer grande inspiração e uma clarividência tão cristalina que só pode vir daqueles que conhecem a fundo o destino russo.

Naturalmente, tais ideias não ocorrem sequer no Kremlin, que está muito ocupado com os assuntos diplomáticos e militares. Nosso governo se concentra apenas em seguir o que parece ser “o curso objetivo dos acontecimentos” e não se importa com o Logos ou o significado da história russa.

Mas aqueles que compreendem a importante missão que a Rússia tem que cumprir e há muito vêm denunciando a inevitabilidade do conflito com o Ocidente, mesmo quando a maioria das pessoas estava ansiosa pela perestroika, pelas reformas ou pela retomada de nossas relações com os Estados Unidos, sabem que este momento chegaria. Agora apenas loucos ou agentes ocidentais se entregam a ignorar esta grande verdade. É claro, mesmo aqueles que confrontam o Ocidente com armas não levam as ideias em consideração. Entretanto, não há uma política real sem referência a uma determinada ideia ou ideologia. Isto pode não ser muito influente agora, mas não pode ser ignorado. Chegará o momento em que as autoridades, se quiserem preencher esta lacuna, terão que “apertar o pedal” e preencher a enorme lacuna entre nosso estado de espírito apático, sonolento e preguiçoso e o conflito de civilizações que estamos vivenciando agora. O despertar da Rússia é inevitável e chegará o momento em que nosso Logos despertará.

Fonte: Geopolitica.ru

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Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

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