Histórias em quadrinhos não se limitam, como muitos tentam enfatizar, a historinhas infantis. Elas são capazes de reatualizar conceitos do mundo e retraduzir mitos, muitas vezes, infelizmente, invertendo e corrompendo-os. Em Injustice, um quadrinho focado nos perigos do autoritarismo e do excesso de poder, vemos claramente isso acontecer.
Em tempos de polêmicas com histórias em quadrinho, fomos contemplados com uma nova animação da DC, focando no aclamado arco “Injustice: Gods Among Us”, escrita por Tom Taylor e Brian Buccelato. Não se trata do arco mais bem escrito da história dos quadrinhos, mas a dimensão ética que ele aborda é bastante fecunda, só deve ser invertida.
Na história, o Coringa, acostumado com suas mil e uma batalhas perdidas na ânsia de “dobrar” o Batman à sua visão maníaca e deturpada da existência, decide que seria muito mais interessante jogar a piada no colo do Super-Homem, o símbolo máximo da esperança. Sem entrar em muitos spoilers, ele obtém sucesso. Aqui temos um sinal importante. A luta do caos, geralmente atribuída às sombras, dá seu salto para a esfera do sagrado e da luz, tentando corromper toda a essência mais positiva e afirmativa da existência.
O homem de aço sofre perda irreparáveis e no frenesi da dor decide dar um basta na violência, nas guerras e em todos os crimes com as próprias mãos, virando uma espécie de ditador cada vez mais ativo e abrangente, acompanhado de alguns membros da Liga da Justiça que acreditam na sua ideia de justiça pela força pura e intocável. A primeira questão que surge é justamente essa, (1) por que o Super-Homem, imensamente mais forte que qualquer homem ou, na prática, qualquer outro ser, NÃO deveria proteger e governar o mundo sob um regime “divino” e perenemente justo? Não se trata, a princípio, duma questão etnocêntrica. Criado americano ou não, Kal-El ainda é um ser distinto, um deus entre homens, o problema é da narrativa que o coloca como mais um de nós; ocidental, moderno e sentimental. Conforme Maquiavel, há uma falta de virtú. Sua motivação é puramente pessoal, passional, desprovida de qualquer senso superior de justiça verdadeira. Sua prática é, no limite, um imperialismo sentimentalista. Ele e a Mulher-Maravilha imprimem um regime sobre o “certo” que contradiz muito de sua formação como sujeitos enraizados em certo contexto valorativo, arrebatados pelos vícios passionais e aplicando, através deles, um imperativo global. Parece familiar?
No outro lado da balança, está o Batman, sempre firme na sua empreitada moralista de recusa à pena capital e justiça mortal com as próprias mãos, justificada pelo senso de que uma morte é o que basta para nos encaminhar no caminho da injustiça e da violência despótica. O argumento contrário ao Morcegão é pesado. Pensemos em quantas vezes o sujeito prendeu seus arqui-inimigos e os trancafiou em Arkham, para na sequência, eles se verem livres para praticar novos e sádicos crimes? Em última instância, a “obra de arte” do Coringa é justamente provocar esse sentimento, o motor do caos que só pode ser definitivamente parado sob a pena da corrupção de uma alma. Neste caso, somos convidados a nos perguntar, de fato, (2) por que Batman nunca sacrificou sua alma pelas almas de todos os feridos e mortos pelo Coringa, dado que sua revitalização de Gotham através da justiça encapuzada prova-se, de novo e de novo, o esforço de Atlas? Sua atitude diante do inevitável é uma esperança vã, que por fim, é negligente e autoriza um crime final. Há quem diga que o Batman, ao matar alguém, se tornaria o pior de todos eles, por sua personalidade implacável e os traumas de infância, mas como dizem, that’s a big if.
Claro, o argumento do arco repousa numa espécie de anti-totalitarismo/autoritarismo, a crença de qualquer ser ou pessoa, nesse caso, praticamente um deus, seria inevitavelmente corruptível pelo poder e pela essência passional da autocracia. O problema é que essa é também uma visão completamente moderna do poder centralizado e da figura “régia”. Isto é, passa-se a ideia de que alguém só se eleva hierarquicamente por ambições pessoais, egóicas, passionais. A própria “justiça” é corrompida e revestida de uma essência caliginosa para avançar a ideia.
Injustice trata, grosseiramente, da corrupção de Apolo e a castração de Dionísio. Pede-se que o poder solar se ajoelhe e seja “apenas mais um” entre os mortais porque seria ele mesmo, antropomorfizado, indigno de ostentar toda a sua magnanimidade. Ao mesmo tempo, há uma castração ao espírito dionisíaco das sombras, que é colocado como culpado pelas moléstias do mundo, por não ser decisivo o bastante. O caos não é vencido, mas causa a última corruptela, opera a horizontalização das identidades divinas.
Nada disso é realmente novo. A inversão dos valores míticos e da jornada heroica são marcos bastante corriqueiros da ficção e iconografia dos “deuses” modernos, inventados pela e para a própria civilização moderna. Os deuses são humanizados para mais adequadamente enquadrar toda a existência dentro do mesmo senso de mediocridade.
O exercício ético proposto por essas encarnações ficcionais, que também são uma linguagem que age sobre o mundo “real”, deve ser ontologicamente preenchido para que suas incoerências e insuficiências sejam superadas, e o germe do seu erro mais essencial seja revelado e destruído.