A crise é o novo normal

Com a alta de preço nos alimentos pelo mundo afora e uma quebra na cadeia de produção global, vemos nos últimos dias uma grande crise de abastecimento no Reino Unido, no texto a seguir veremos medidas que poderiam ser úteis para resolver tal questão.

Algum movimento político importante foi tão completamente expurgado da memória popular quanto o movimento antiglobalização? Duas décadas atrás, a opinião dominante na esquerda era que a globalização era uma inovação destrutiva e exploradora do capitalismo internacional a ser combatida. Em Seattle em 1999, e em Gênova em 2001, milhares de manifestantes de todo o mundo se reuniram para protestar contra a assinatura dos tratados comerciais transnacionais que aceleraram a difusão da globalização, apoiados pelos grupos de esquerda.

Um artigo da BBC de 2001 observa que os contrários a globalização acreditam que “ela leva à exploração dos mais pobres, dos trabalhadores e do meio ambiente;” “Torna mais fácil para as empresas ricas agirem com menos responsabilidade” e que “as culturas individuais de cada país estao se tornando dominadas pela americanização”. Por outro lado, os partidários da globalização afirmam que “a globalização deve enriquecer a todos… [enquanto] as relações comerciais podem ajudar a encorajar os países a respeitarem os direitos humanos”.

Vinte anos depois, está claro que os contrários a globalização estavam totalmente corretos e os defensores totalmente errados. E ainda, surpresos pelo Brexit. O comentarista liberal da Grã-Bretanha continua a defender as cadeias de abastecimento alimentar globalizadas puramente como resultado da seita Remainer[1].

O tom neutro da BBC na virada do milênio é quase inimaginável hoje em dia, onde a oposição à globalização foi recodificada com um significado político, inteiramente aleatório, de um argumento racional vindo da esquerda a um preconceito irracional digno de um reacionário bastante racista. Da mesma forma, a esquerda aparentemente abandonou seu compromisso com as pequenas comunidades e a preservação do trabalho nacional sindicalizado em favor dos sonhos cosmopolitas de globalização sem restrições.

Na Grã-Bretanha, essa bizarra inversão se manifesta no discurso político sobre a atual crise da cadeia de suprimentos. O problema fundamental que causa o esvaziamento de prateleiras na Grã-Bretanha hoje não é o Brexit em si, mas a complexidade excessiva das cadeias de suprimentos moldadas para a eficiência em tempos que as coisas estavam indo bem, mas que são extremamente frágeis sempre que o sistema sofre um choque. Ao atenuar excessivamente as cadeias de abastecimento em escala global e centralizar a produção de alimentos para o benefício dos supermercados, o sistema foi incapaz de lidar com os tremores secundários da pandemia, desde crises de energia à escassez de mão de obra, ainda voltando a andar por conta própria na economia global.

Esta é uma crise na cadeia de abastecimento global causada por um colapso mundial em câmera lenta. Como sublinha o economista americano Matt Stoller, a globalização “nos deixou excepcionalmente despreparados para administrar um choque de oferta. Nossa cadeia de suprimentos globalizada hipereficiente, antes romantizada por homens como Tom Friedman em The World Is Flat, é o problema. Assim como o sistema financeiro antes do crash de 2008, esse tipo de ordem econômica esconde sua fragilidade. Parece funcionar muito bem, até que para de funcionar.” Agora, estamos começando a ver como fica quando de fato ele para de funcionar.

Veja o processamento de carne como exemplo. Há décadas, em busca de eficiência, os supermercados centralizam o processamento da carne em gigantescos mega-matadouros, forçando pequenos matadouros regionais a fecharem e expulsando os produtores locais. O ambiente de trabalho nesses lugares é tão terrível e exploratório, e os salários tão baixos, que só podem ser atendidos por imigrantes de regiões mais pobres do mundo. Como resultado, mais de dois terços da força de trabalho de processamento de carne da Grã-Bretanha é composta de migrantes, tornando o fornecimento de alimentos do país dependente do fluxo livre de mão de obra estrangeira e da distribuição nacional de animais vivos e carne processada para um pequeno número de hubs centralizados.

Este é um estado de coisas totalmente insustentável e, também, imoral. Como observa o comentarista Richard North, especialista na indústria de carne, o número de abatedouros na Grã-Bretanha encolheu “de 3.326 unidades na década de 1960 para meras 156 em 2020”, com o resultado de que “a estrutura da indústria de carne no Reino Unido já está tão concentrada que chega a ser insustentável”. Assim que o sistema recebe um choque, como está agora, ele é incapaz de lidar com isso.

No entanto, mesmo antes do choque atual, a centralização da produção de carne estava corroendo a resiliência do suprimento de alimentos da Grã-Bretanha. Em 2018, 34 organizações distintas, desde o National Trust até o Women’s Institute e o RSPCA, pressionaram o governo para impedir o colapso da rede britânica de pequenos matadouros regionais, “um enorme ativo nacional” fechando as portas a um ritmo alarmante”. Como observou Christopher Price, da Rare Breed Survival Trust, “os matadouros em grande escala exigem que os trabalhadores realizem procedimentos altamente específicos, muitas vezes altamente mecanizados, como parte do processo de abate e empregam um número relativamente grande de pessoas menos qualificadas e com salários mais baixos em locais centralizados”. Em vez disso, o Governo deveria apoiar a criação de mais matadouros locais e menores, “onde cada trabalhador é obrigado a ser mais qualificado e, também, multi-qualificado, com a flexibilidade para trabalhar meio período”. Isso beneficiaria as áreas rurais onde o emprego local é raro e “facilitaria a criação de novos mercados premium para produtos de carne diferenciados de raças locais e a expansão de negócios relacionados, como açougues e lojas rurais”.

Mas, em vez disso, esta oportunidade vital de transformar o setor em um dependente de mão de obra altamente qualificada e bem paga, trabalhando em condições significativamente melhores, está sendo desperdiçada. Em vez disso, apoiado por seus idiotas úteis na classe de comentaristas da Grã-Bretanha, o lobby corporativo de alimentos se apoiou no governo para reabrir as comportas para o trabalho migrante mal pago, mantendo um sistema quebrado e explorador com suporte artificial de vida.

O sistema atual é simplesmente insustentável e explorador para os trabalhadores agrícolas. Como o sindicato radical de agricultura de esquerda Landworkers Alliance observou em seu manifesto de 2016, “a economia rural é vulnerável à competição dos mercados globais e à barganha de preços agressiva dos cartéis de processadores e dos distribuidores (supermercados)”, com o resultado de que “menos de dez por cento dos ganhos da indústria alimentar do Reino Unido vão para os pescadores e fazendeiros locais”.

A escassez de mão de obra já está permitindo que os trabalhadores agrícolas exijam salários mais altos, um processo que deve continuar, não apenas porque é o justo, mas também porque cria uma estabilidade no sistema. Uma Grã-Bretanha onde o setor agrícola é forçado a se rebaixar pela competição global é uma Grã-Bretanha altamente vulnerável a choques globais do tipo que estamos experimentando agora. E ainda, como a Landworkers Alliance alertou em 2017, o lobby corporativo da agricultura está viciado no sistema atual, com organizações que têm o carinho dos governos como a National Farmers Union “mais focadas no desenvolvimento de mega fazendas supereficientes capazes de competir em um mercado global acirrado do que na produção da maior parte do suprimento de alimentos do Reino Unido por meio de uma rede de fazendas familiares seguras”.

A globalização das linhas de abastecimento de acordo com a lógica do livre mercado também é um desastre para o meio ambiente. Como uma investigação do Greenpeace revelou na semana passada, a crescente consolidação da indústria de laticínios da Grã-Bretanha em um punhado de fazendões feitas ao estilo americano está permitindo que empresas globais de alimentos alimentem as vacas com soja proveniente da ameaçada eco-região do Cerrado no Brasil. O impacto foi profundo: acelerou o desmatamento e o aquecimento global, forçou as vacas a viver em condições internas miseráveis e não naturais em galpões gigantescos e tirou do mercado os pequenos produtores de leite aqui na Grã-Bretanha.

No entanto, além das questões morais, a cadeia de abastecimento da soja também é extremamente sujeita a interrupções em tempos de crise, como a seca – a pior em mais de um século – que atualmente assola o setor agrícola do Brasil. A escassez de soja causada pelo colapso ambiental no Brasil ou por bloqueios no sistema de transporte global significará uma escassez futura de leite e queijo, uma situação absurda em um país como a Grã-Bretanha, abençoado com chuvas abundantes e grama exuberante.

Essas vulnerabilidades embutidas são perigosas à medida que entramos em uma era onde a crise permanente é o novo normal. Na verdade, como adverte o economista de esquerda James Meadway, embora o Brexit tenha aumentado a exposição da Grã-Bretanha à interrupção da cadeia de abastecimento, “é um erro paroquial apontar a saída da Grã-Bretanha da UE como a principal causa da crise”. Em vez disso, o que estamos experimentando “são os primeiros tremores do colapso ambiental generalizado deste século. Os preços do gás não vão cair tão cedo, e a crise da cadeia de abastecimento não será resolvida este ano – ou mesmo no próximo.”

A crise é o novo normal: e para sustentar básico da segurança alimentar, a Grã-Bretanha terá que se tornar mais autossuficiente, descentralizando as cadeias de abastecimento em busca de resiliência e estabilidade em vez de eficiência pura e simples e realocando a produção de alimentos tanto quanto possível. Isso não é um salto de volta à Idade Média, como dizem os críticos online: a Grã-Bretanha era 78% autossuficiente em alimentos até os anos 1980, e retornar à produção localizada e às cadeias de abastecimento deve ser considerado um objetivo estratégico vital.

E, no entanto, em um exemplo impressionante de dissonância cognitiva, vemos comentaristas liberais que alertam sobre a iminente catástrofe de problemas do clima, argumentando simultaneamente que as frágeis cadeias de suprimentos globalizadas são, de alguma forma, desejáveis e permanentes. Assim como a famosa citação de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, parece mais fácil para essas pessoas imaginar o colapso civilizacional total do que não ser capaz de comer morangos quenianos no meio do inverno.

Os manifestantes de esquerda antiglobalização de vinte anos atrás estavam certos então, e seus novos sucessores conservadores regionalistas estão certos também. Em vez de zombar dos passos tímidos do governo para a realocação do suprimento de alimentos da nação como são as fantasias retrógradas dos nostálgicos Brexiteers[2], a nossa teimosa turma de Remainers deve, pela primeira vez, dar um passo para trás e observar o mundo em mudança ao seu redor.

A crise da cadeia de abastecimento global está forçando os conservadores a abandonar seus sonhos de livre comércio, enquanto a ideologia neoliberal é esmagada pela dura realidade. Isso é bom e deve ser apoiado e encorajado tanto quanto possível. O governo está correto ao dizer que o colapso da cadeia de abastecimento de hoje é “uma falha do mercado livre e não do estado” e que as empresas “se embriagaram com a mão de obra barata”. A crise atual é uma oportunidade para reequilibrar o sistema alimentar da Grã-Bretanha em um modelo mais justo e resiliente, e o governo, finalmente sendo forçado a uma boa política por eventos fora de seu controle, precisa conter os nervos.

★★★

Notas:

[1] Remainer é aquele que defendeu a permanência do Reino Unido na União Européia no referendo do Brexit

[2] Brexiteer é aquele que defendeu o Brexit

Fonte: UnHerd

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Aris Roussinos

Aris Roussinos já atuou como repórter de guerra e é editor na revista UnHerd.

Artigos: 54

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