Mais uma novidade vinda dos EUA como tudo mais que não presta hoje, a teoria do privilégio branco se espalha pelos meios acadêmicos e políticos do mundo, como uma tentativa pseudo-científica de legitimar e justificar medidas legislativas e jurídicas contra pessoas brancas, para “reparar” imaginados privilégios difusos dessa categoria. Mas por trás de tudo isso, encontramos apenas o bom e velho ressentimento já muito bem descrito por Nietzsche.
Esta não é a primeira vez que a revista Éléments olha para o privilégio branco. Na verdade, desde a morte de George Floyd em maio de 2020, este tem sido um tema recorrente para nossa equipe editorial. Por que isso acontece?
Porque a cada dia, ele vai mais longe no delírio. O próprio Jarry em seu Ubu Rei não foi tão longe; nem Ionesco em seu fenomenal Rinoceronte. Nenhum teatro do absurdo poderia descrever o que estamos vivenciando. Se nos tivessem dito há dez anos que o privilégio branco estaria nos lábios de todos, nós teríamos encolhido os ombros. E ainda assim! Ele está na agenda da esquerda americana desde a luta pelos direitos civis. Esta é a tese do último livro de Christopher Caldwell, A Era do Privilégio: A América desde os Anos Sessenta. Entrevistamo-lo em nossa edição de junho-julho de 2020 (No. 184). Vale a pena considerar esta tese. Para Caldwell, o grande evento que sacudiu os Estados Unidos nos anos 60, quase no sentido psiquiátrico do termo, foi o assassinato de Kennedy (ele o compara ao assassinato de Sarajevo em 1914 para os europeus). Na esteira deste trauma nacional, o sucessor de Kennedy, Lyndon Johnson, lançou duas guerras: contra o comunismo no Vietnã e contra a segregação racial. É a segunda que nos interessa aqui. Resultou na aprovação da Lei de Direitos Civis em 1964. Esta lei não é alimentada apenas pelo fetichismo da vítima, mas ainda mais pelo exagero punitivo, ontem sob a forma do politicamente correto, hoje sob a forma do wokismo, que deve endireitar a madeira torta da humanidade. Esta discriminação consagrada na lei é como os vasos comunicantes. Só que, até agora, os progressistas só estavam interessados no recipiente que estava se enchendo. O wokismo inova em um aspecto: está interessado no recipiente que esvazia (não suficientemente rápido, em sua opinião). Se, como postula a teoria dos privilégios brancos, os brancos têm uma vantagem competitiva, é porque tudo em nossas sociedades foi inadequadamente projetado por eles e para eles (um pouco como para os direitistas). Cabe portanto aos “esclarecidos” corrigir esta distorção: primeiro, favorecendo as pessoas de cor (discriminação positiva); segundo, prejudicando os brancos (wokismo, cultura do cancelamento, etc.).
A montante da lei, quais são as raízes ideológicas subjacentes à teoria do privilégio branco?
O privilégio branco empresta seus slogans, retórica e ideologia de todo o espectro esquerdista, desde os marxistas americanos, pioneiros nestes assuntos, até os “liberais” que sempre estiveram obcecados com o destino das minorias, através da bagunça da desconstrução e das decocções da teoria racial crítica. O livro mais abrangente sobre o assunto é O Privilégio Branco. Quem quer tirar a pele dos europeus? de Georges Guiscard, que a Nouvelle Librairie acaba de publicar com o Instituto Iliad. Ele desenha a genealogia de uma ilusão, quase a genética dessa ilusão. Na entrevista que ele nos deu, Guiscard também aponta a dimensão religiosa subjacente ao wokismo, sublinhada por eminentes autores americanos, incluindo Joseph Bottum, que fala de um protestantismo sem fé. Pois aqui estamos no coração da doutrina calvinista da dupla predestinação, com seus eleitos (os “esclarecidos”) e seus condenados (os brancos). Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros. Nada de novo sob o sol a este respeito. Estamos no centro da inversão de valores dos quais Nietzsche estabeleceu o panorama mais completo em sua Genealogia da Moral.
Você menciona Nietzsche. Como não pensar no ressentimento, um dos grandes temas nietzscheanos?
O ressentimento está no centro dessas políticas de “reparações”. Se as estudássemos clinicamente, à luz de Nietzsche, seria devastador: moralidade escrava, desejo de vingança, revanche da mediocridade… Surpreendentemente, a sociedade americana se parece cada vez mais com O Coringa (2019), um filme fabuloso no qual Joaquin Phoenix faz uma performance excepcional, quase uma coreografia, tanto que ele voa sob a máscara de Coringa. Entretanto, não se pode deixar de decifrar neste filme o que vem sacudindo a América nos últimos dez anos: um país à deriva, entregue desde 2013-2014 a noites de tumultos e cenas recorrentes de caos, preso aos demônios do ressentimento e da feiúra, preso em sua equação racial não resolvida, atravessado por uma raiva difusa, teimosa, total, mas intransitiva, já que não se acomoda a um objeto político positivo (como o populismo, por exemplo, desagrada a seus críticos). O wokismo transformou a América em uma Corte de Milagres, como mostra o freak show que fez a fortuna de Barnum no século XIX. A América hoje parece um enorme freak show, um desfile de aberrações. A fealdade, física e espiritual, está em toda parte; a teratologia, a ciência dos monstros, está em toda parte, como com o advento da sociedade trans (o homem trans é a mulher barbada de hoje). Basta olhar a foto trombinoscópica dos ativistas antifas presos pela polícia na cidade de Portland, Oregon, que publicamos em nosso dossiê. Eles são todos mais feios, sujos e desagradáveis do que as gangues “pakis”, realmente feias, de estupradores na Grã-Bretanha. Impossível fugir da acusação de perfilamento racial.
Ser branco não é mais cool, você diz no topo de um de seus artigos, onde você lista 26 privilégios brancos, que são paralelos aos 26 privilégios brancos identificados por Peggy McIntosh…
O que confere status em nossas sociedades infantis, chorosas, hipersensíveis, traumáticas e pós-traumáticas? A figura da vítima. Com a noção de interseccionalidade (que designa pessoas que sofrem várias formas de discriminação ao mesmo tempo, por exemplo, uma lésbica negra deficiente que é discriminada quatro vezes, como negra, como mulher, como lésbica, como deficiente), você é posto no auge deste Panteão invertido que a América se tornou. É esta vitimização, e somente ela, que agora confere privilégio – não o chamado privilégio branco, que agora é apenas um estigma. É por isso que o conceito de privilégio branco funciona como uma antífrase orwelliana (o mal é bom; o privilégio é estigma e escravidão). Quando Peggy McIntosh, uma ativista feminista e patrícia americana, enumerou 26 privilégios brancos, ela estava realmente apenas contabilizando privilégios de classe que provêm de sua imensa riqueza pessoal. Um eleitor do Trump que pertence à classe trabalhadora branca nunca ao menos viu a cor desses privilégios. A noção de privilégio branco foi construída sobre tal falsificação. Ela obscurece totalmente o novo equilíbrio étnico de poder. Se agora existem privilégios raciais simbólicos, eles são privilégios negros. Enumerei 26 deles para refutar Peggy McIntosh, mas há dezenas. Todos os dias vemos novos privilégios.
Que vínculos problemáticos o feminismo tem com a teoria do privilégio branco?
O grande romancista negro americano Chester Himes disse que o par que domina o inconsciente americano é o sexo do homem negro e a neurose da mulher branca. Gato preto e gata branca. Com a noção de privilégio branco, que encontrou sua expressão mais completa no trabalho de Peggy McIntosh, pudemos medir os danos causados por este emparelhamento infernal. O privilégio a ser desmascarado, como as estátuas dos generais do Sul, é antes de tudo o do homem branco, que deve ser emasculado – simbolicamente, semanticamente e legalmente – sem mais delongas. Para que a sociedade trans, que está tomando forma do outro lado do Atlântico, surja, ela deve primeiro desconstruir todos os arranjos normativos, todos os dispositivos simbólicos, todas as arquiteturas invisíveis que têm sido a fundação de nossas sociedades desde pelo menos Roma, em particular a lei que estabelece o Pai. Nesta perspectiva, o assassinato do Pai envolve a abolição do homem branco. Um vasto programa!
Fonte: Revue Éléments