Não existem Democracias ou Autocracias, apenas Governos

O discurso internacionalista hegemônico divide os países entre democracias e autocracias, as primeiras sendo boas e as segundas sendo más. Mas isso faz sentido? Existem realmente países democráticos no mundo? E de fato existem países em que uma única pessoa possui todo o poder? Ou tudo isso não passa de narrativa ideológica?

O presidente americano Joe Biden disse aos membros do serviço americano no final do mês passado que “estamos em uma batalha entre as democracias e as autocracias”. Ele também explorou sua história de extensos contatos pessoais com o presidente chinês Xi Jinping para se apresentar como uma autoridade sobre a visão global do líder chinês. Biden alegou falsamente que o Presidente Xi “acredita firmemente que a China, antes do ano ’30, ’35, vai ser a dona da América porque as autocracias podem tomar decisões rápidas”. Embora estes tenham sido apenas pequenos detalhes em um discurso muito maior, eles merecem uma análise mais detalhada porque revelam muito sobre os projetos geoestratégicos contemporâneos dos Estados Unidos.

A liderança conduzida pelos democratas do país é abertamente ideológica e considera o mundo como dividido entre “democracias e autocracias”, com os EUA e a China liderando cada um deles, respectivamente. O objetivo ao ver desta forma é estabelecer a base ideológica e estrutural para uma Nova Guerra Fria. Também serve de pretexto para que os EUA pressionem os países que não entregam seus interesses soberanos aos americanos com a falsa base de que eles são “autocracias” que assim presumivelmente precisavam (geralmente violentamente) da “democracia” levada pelos EUA. Em outras palavras, nada mais do que retórica para disfarçar os objetivos da política externa autointeressada.

A razão pela qual isso é um ardil é porque realmente não existem mais democracias claras ou autocracias, apenas governos. Teoricamente falando, a democracia em sua forma mais pura e clássica não existe em nível nacional em nenhum país. É impraticável que os cidadãos tenham a chance de votar em cada decisão tomada por todos os níveis de seu governo, daí a necessidade do que é chamado de democracia representativa. Mas mesmo esse sistema é falho porque não há muito que possa ser feito antes do próximo turno eleitoral para responsabilizar os políticos se eles mentirem para o povo durante sua campanha.

Outra crítica que pode ser feita contra o conceito de democracia é que as burocracias nacionais permanentes orientadas para a segurança, como as militares, a inteligência e as diplomáticas, não podem ser realisticamente democráticas, dadas suas missões, mesmo que suas decisões afetem todos os outros que vivem no país e às vezes até mais além. Ao contrário, o próprio conceito de democracia tem sido explorado para fins de gestão da percepção, de modo a controlar a maior quantidade de pessoas, seja para o bem ou para o mal, dependendo do contexto nacional particular envolvido e de sua visão ideal da sociedade.

Quanto a autocracias, este termo também foi distorcido para além de sua compreensão original. Não há país no mundo onde um único indivíduo exerça o poder supremo. É simplesmente impossível. Nenhum ser humano pode tomar todas as decisões necessárias diariamente para manter um país funcionando. No entanto, existe uma liderança centralizada e decisiva, que é mais comum em sistemas políticos não-ocidentais do que nos ocidentais (“democráticos”), mas mesmo estes últimos, às vezes, legam amplos poderes a certas figuras, como a Constituição dos EUA faz para o Presidente. A presença da ausência destes direitos é simplesmente uma diferença entre os sistemas políticos.

As chamadas autocracias delegam responsabilidades em toda a sociedade, embora às vezes não de forma eleitoral, mas de forma meritocrática. Também não há nada de errado nisso, é apenas mais uma diferença entre a maneira como alguns países são governados. No entanto, os EUA tendem a desprezar tais sistemas porque são mais difíceis de manipular externamente através de meios políticos, tais como intromissões eleitorais e movimentos de protesto armados. Também parece ser o caso que esses tipos de sistemas são dirigidos por líderes e/ou partidos que prezam mais a soberania nacional e o bem-estar de seu povo do que dar lucros para as corporações transnacionais.

A divisão do mundo em “democracias” e “autocracias” é, portanto, um reflexo impreciso da realidade. Existem apenas governos, e cada um tem elementos destas duas categorias dentro deles, embora em diferentes extensões, dependendo das particularidades do modelo nacional atualmente em prática. Tentar estabelecer uma hierarquia de sistemas de governo é uma tarefa inerentemente subjetiva e propensa a preconceitos, exatamente como seria estabelecer uma hierarquia de etnias. Em vez de ficar obcecado com as diferenças de certos governos, todos deveriam abraçar sua diversidade, assim como deveriam fazer quando se trata das muitas etnicidades diferentes do mundo.

Fonte: One World

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Andrew Korybko

Analista político e jornalista do Sputnik, é também autor do livro "Guerras Híbridas".

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