Por Aris Roussinos
No presente artigo, o jornalista de guerra Aris Roussinos analisa como as redes sócias possuem papel importante para o decorrer das guerras de narrativas pós-modernas e como isso está gerando um total estado de anarquia e a deterioração do Estado de Vestfália, onde o campo de batalha físico se mistura com o do mundo virtual.
1. Quando a administração de Biden realizou seu primeiro ato de guerra conhecido há algumas semanas atrás, promoveu um recorte esclarecedor do conflito no século XXI. O ataque aéreo contra milícias Xiitas de apoiadores iranianos no leste da Síria, enfrentado território guardado por forças proxy sírias pró-americanas, em resposta ao bombardeio de posições americanas no Iraque por milícias iranianas apoiadas pelos próprios iranianos, levaram à morte de um soldado americano privado, envolve o papel central na guerra de aluguel no conflito moderno.
2. Como no conflito de Nagorno-Karabakh ano passado, quando as milícias rebeldes sírias apoiadas pela Turquia combateram recrutas armênios como se fossem nada, da mesma forma que foi feito anteriormente na Líbia, enquanto drones turcos mostravam o caminho para as forças azerbaijanas avançarem, nós fomos apresentados com uma imagem preocupante da nova face da guerra. Como na Guerra Civil Espanhola anteriormente, a Guerra Civil da Síria ao longo de uma década, um conflito perpetuamente inconcluso e que, talvez, nunca se finalize por completo, tem se revelado como precursor de perigosas novas tendências de totais implicações das quais ainda não estamos totalmente entendidos.
3. É natural, por exemplo, que semana passada o Integrated Reviw constata que os adversários do estado britânico são suscetíveis a usarem forças de proxy para desafiar a ordem mundial, enquanto a próxima revisão de defesa vai exigir a criação de um novo regimento de elite de “Rangers” formado precisamente para aconselhar e lutar ao lado das nossas proxies.
4. O livro recente, Surrogate Warfare, escrito pelo professores de Estudos de Segurança, Andreas Krieg e Jean-Marc Rickli, faz uma boa síntese do trabalho acadêmico atual sobre a deterioração da situação global trazida pelos avanços tecnológicos e pela globalização. Pesquisas ecoando sobre a neo-medievalização junto às Relações Internacionais – a revelação primeiramente anunciada em 1977 pelo teórico Hedley Bull de que a modernidade tardia dirigir-se-ia inexoravelmente ao enfraquecimento do poder do sistema de Soberania de Vestfália – seus autores apresentam uma forte visão de um mundo de anarquia crescente provocada pela intersecção de novas tecnologias e as consequências não intencionais da globalização.
5. Como eles avisaram, “o mundo sem dúvidas aparenta estar mais anárquico no recente século XXI do que nunca esteve nos tempos modernos”, como “com os ataques de Nove de Setembro e a propagação do Jihadismo global, fluxos migratórios transacionais em massa, a crise financeira de 2008, o colapso generalizado de autoridade estatal atravessando a África e o Oriente Médio – a concepção idealista clássica de conflitos nos séculos XIX e XX aparentam como anomalias históricas.
6. A ordem liberal mundial e a irrestrita e acelerada circulação global de informações, bens e pessoas, tinha a intenção de inaugurar uma era de paz e harmonia global. Entretanto, em vez disso, comprometeu os fundamentos básicos da ordem mundial e o “estado centrista, a ideia de que os indivíduos podem escapar do estado de natureza apenas através de uma aliança vinculando-os a uma autoridade modelada no estado-nação de Vestefália tornou-se arcaica em um mundo de fronteiras porosas e população migrante crescente”. Em vez de promoverem bons governos ao redor do globo, a pós-modernidade tem corroído a autoridade do Estado no seu país e a estabilidade do próprio sistema internacional, assim, retornando a uma situação análoga à Idade Média, em que a soberania foi amplamente dispersa, contestada e parcial.
7. Ao desmantelar barreiras físicas e informativas ao redor do mundo, a capacitação básica de estados de promover a segurança aos seus cidadãos tornou-se enfraquecida e, talvez, fatal. Erodindo as linhas entre a casa e exterior, a pós-modernidade globalizou conflitos e corroeu até mesmo a própria distinção entre guerra e paz. No lugar de perpétua paz, inaugurou uma época de perpétua anarquia, em que estados se encontram fracos para contê-la. Como notaram Krieg e Rickli, “o conflito globalizado é de natureza transnacional e ignora as normas do estado de centro, convenções e leis estabelecidas no século XIX para limitar a guerra”. Entramos em uma área de “conflito generalizado”, na qual “a autoridade do estado no século XXI tem sido a mais fraca desde a Paz de Vestefália em 1648”.
8. Que defensor da globalização, há uma geração atrás, teria previsto que as crianças em Manchester seriam explodidas por um homem-bomba britânico-libanês como consequência das guerras na Síria e no Iraque? Que as redes sociais inspirariam jovens cidadãos britânicos a viajar ao Oriente Médio para manter minorias prisioneiras como escravos e massacrar seus compatriotas em vídeos de alta definição para o horror e o deleite de suas audiências on-line? Tantas atrocidades e as tentativas desesperadas do Estado para promover segurança a um público cada vez mais instável não são anomalias, mas, sim, o resultado natural do declínio do Estado vestfaliano e do crescimento daqueles que desafiam de sua autoridade, dos níveis sociais superiores e inferiores: “insegurança, não segurança, se tornou o padrão na sociedade pós-moderna.”
9. Como resultado, o estado liberal e seus inimigos não-liberais são levados a intervir em guerras complexas e emaranhadas como dimensões étnicas e sectárias fortes por uma instável e, muitas vezes, contraditória mistura de preocupações humanitárias, insegurança e realpolitik. Ainda assim, ao mesmo tempo, ambos estão conscientes de que seus públicos domésticos são constantemente mais avessos a baixas, particularmente em guerras, não de necessidade estratégica óbvia, com o resultado de que o fardo de lutar é deslocado aos proxies descartáveis, enquanto o peso das casualidades nasce de civis no chão à mercê de um cessar armas.
10. Dispostos a evitar baixas impopulares nestas “guerras de escolhas”, estados estão subcontratando serviços violentos na terra de proxies locais, cujos objetivos podem divergir daqueles que são responsáveis e tais comportamentos não estejam sujeitos a qualquer supervisão legislativa significativa. Como notaram Krieg e Rickli, “a necessidade de remover ações militares de supervisões sociais e balanços é o mais importante aspecto e motor da substituta guerra pós-moderna nos estados liberais e não-liberais”, dirigindo o impulso cessar fogo de armas, como drones e proxies locais em terrenos quase totalmente em detrimento dos civis que lá vivem.
11. A catastrófica Guerra Civil na Síria, em paralelo com o conflito no Iêmen e a crescente desestabilização do Iraque, Líbano e Líbia exemplificam estas tendências em que atores externos como os Estados Unidos, Rússia, Turquia, Irã e Reinos do Golfo manipulam suas milícias de proxy como peças de xadrez, enquanto seus drones, mísseis balísticos e jatos assolam o local. Em vez de democratizarem o Oriente Médio, como especialistas pensavam, a involuntária intercessão da Primavera Árabe, globalização e novas tecnologias têm visto toda a região transformando-se em uma grande arena de experimento de guerra do século XXI, quase totalmente desastrosos para seu povo, como resultado de tendências globais em que eles não tiveram participação.
12. É precisamente a internacionalização das guerras na Síria, Líbia e Iêmen que os tornaram tão mortais. Isolado de ter baixas por conta própria, estados intervenientes possuem pequena ou nenhuma inclinação para moderar suas atividades. Drones e milícias proxy são baratas comparadas à mobilização em massa de exércitos nos séculos XIX e XX: conflitos centrados em proxy são acessíveis até mesmo para poderes de classificação intermediárias, reduzindo barreiras para entradas no conflito e limitar a necessidade de acabá-los rapidamente. Alegações de que Rússia, Irã ou Turquia logo se encontrariam atolados em guerras que não poderiam bancar têm se repetido por anos, sem que este instante seja finalmente alcançado. São por estas razões, e não apenas as instabilidades inerentes das nações, que os conflitos da Primavera Árabe têm continuado por tanto tempo. Assim como na Guerra do Congo, um caso paralelo de intervenção por poderes regionais que acabaram agravando o conflito, não há particularidade racional do porquê eles devem sofrer por décadas.
13. Ainda, uma inovação distingue a Guerra da Síria de seus vizinhos em conflito: a centralidade das mídias sociais no seu processo. Iniciando em 2011, os estágios inicias dos conflitos na Síria rastrearam a transição do Facekook para o Twitter na economia global de informação, assim, o site se tornou a plataforma escolhida por jornalistas, ativistas e legisladores. O resultado não foi favorável para o jornalismo nem para Síria. Como notaram Krieg e Rickli, “o surgimento das redes sociais não só mudou o padrão de comunicação entre comunidades, mas também tornou-se o principal meio de guerra,” onde, “em conjunto de operações cinéticas no campo de batalha físico, o confronto sobre narrativas na esfera virtual define os parâmetros para a vitória estratégica”.
14. Mídias sociais não são simplesmente uma novidade adicionada ao modo moderno de guerra: é uma arma que constantemente molda a guerra, tornando aqueles que a compartilham em participantes. A dinâmica tóxica inerente do discurso do Twitter, que confunde inexoravelmente a distinção entre jornalistas, analistas ativistas e trolls, refletiu as crescentes divisões no campo que se tornou um conflito multipolar entre as leais forças de Assad, rebeldes, Al-Qaeda, Jihadistas do Estado Islâmico e Curdos. E também, sem dúvidas, os exacerbou. Como observa a jornalista e ativista revolucionária Zaina Erhaim, “especialistas internacionais e a mídia também tiveram papel na demasiada simplificação do nosso complexo conflito em duas dimensões – “bem vs mal”, endurecendo a exacerbação das divisões vividas pelo próprio povo sírio.
15. No caso das percepções de atores intervenientes, mesmo que os governos, combatentes estrangeiros ou ONGs fossem parcialmente moldados pelo ambiente hipercombativo do Twitter, pode-se argumentar que o Twitter ajudou a formar as escolhas feitas por atores externos, os quais prolongaram o conflito. Certamente, o Twitter foi o meio dominante pelo qual os recrutas ocidentais ficaram extasiados com o drama da guerra e derreamento de sangue para participar ativamente: simplesmente atuando como sargento de recrutamento para o Estado Islâmico, o Twitter claramente piorou o resultado da guerra tanto para o povo sírio como para o povo iraquiano.
16. A Guerra da Síria borrou a distinção entre guerreiro e criador de conteúdo, grupo armado e conta na rede social. Milícias proliferaram em vídeos no YouTube com o objetivo de ser compartilhados nas redes sociais para atrair fundos de patrocinadores exteriores. O ISIS cinicamente brincou de jornalismo, produzindo conteúdo sensacionalista e excitante, criados expressamente para serem compartilhados nas redes sociais e contando com jornalistas – incluindo eu – para espalhar propaganda por eles. De fato, ISIS teve uma relação simbiótica com os dois legados do jornalismo, estrangulando-se para navegar no novo mundo das redes sociais com orçamentos reduzidos para reportagens originais e sobre o novo papel híbrido de analista virtual intermediado pelo Twitter.
17. Como notaram Krieg e Rickli, jornalistas e analistas são, eles mesmos, agentes substitutos no novo conflito, participantes ativos em uma nova e apenas parcialmente entendida forma de guerra. “A estratégia do ISIS como uma organização terrorista global depende de influencers de redes sociais para atingir a sociopsicologia dos públicos ocidentais,” ambos escrevem: “Superinfluencers, assim como jornalistas, analistas e comentadores, tornam-se relutantes, substitutos um tanto coincidentes para o Estado Islâmico, enquanto espalham as imagens e mensagens de terror.”
18. Talvez nenhum agente de estado tenha compreendido essas novas dinâmicas tão bem quanto Erdoğan na Turquia e Putin na Rússia. Enquanto ambos usam suas respectivas redes de notícias televisivas compostas por ambiciosos jornalistas ocidentais, com formatos tradicionais de propagandas, eles também são sofisticados manipuladores do campo de campo de batalha virtual. Foi na Líbia e na Guerra de Nagorno-Karabakh que a Turquia explorou a moda derivada da Síria para análises de “OSINT” ao seu favor, abrindo contas em redes sociais com sua imagem, utilizando câmeras com alta qualidade em seus drones armados para promover imagens excitantes de guerra que, ansiosamente, jornalistas compartilham em seu nome, assim como a Rússia produz filmagens cinematográficas e eletrizantes da Síria para seus fãs nas redes sociais. Drone, câmera e compartilhamento nas redes sociais, isso resulta em um sistema de armas uno e integrado, uma proxy híbrida semiautônoma tão útil e barata para operar como as proxies descartáveis que lutam em terra.
19. Com as fronteiras entre o país e o exterior, a guerra e a paz corroídas pela pós-modernidade, não é difícil de interpretar nossas próprias guerras culturais intermináveis, como parte da guerra globalizada generalizada, com as plataformas de redes sociais comemorando, há uma década atrás, para a virada dos estados escleróticos do mundo Árabe, agora, humilhado por fazer o mesmo em seu país. Agora que os nossos próprios sistemas são o foco do descontentamento popular, somos ensinados sobres os males das redes sociais, tratados com longas e complicadas teorias da conspiração de bots estrangeiros e campanhas de desinformação espelhando, precisamente aquelas usadas pelos regimes Árabes para explicar a ira de seus povos.
20. A geração americana da guerra ao terror voltou para casa, como uma nova Zona Verde que brota no coração da capital imperial, peritos em terrorismo voltam a focar seu olhar no inimigo interno. Jornalistas não são mais cronistas de conflitos políticos, mas sim, participantes ativos, proxies em uma extensão de narrativas de guerras descentralizadas. Em vez de reivindicar a despolitização da tecnocracia liberal, todos os aspectos da vida agora funcionam como fonte de conflito. Não há verdade objetiva ou realidade, somente narrativas em guerra desmantelando o contrato social entre as pessoas e seus governos, “incapaz de conter a multiplicidade de opiniões, narrativas e mensagens sendo trocadas em uma esfera virtual irrestrita”.
21. Como a mídia impressa que levou à ascensão do nacionalismo, podemos interpretar a internet, a nível global, como a mãe de novas identidades políticas de micronacionalismos e ideologias nunca vistas antes, comunidades imaginadas nascidas pela dinâmica partidária do mundo online. E ainda, talvez, a morte do Estado de Vestfália tenha sido pronunciada muito cedo: nós já estamos testemunhando os primeiros movimentos de desglobalização como estado-nação, lutando desesperadamente por sua própria salvação e procurando recuperar o controle de seu próprio destino.
22. A crescente regulamentação das redes sociais, como, por exemplo, a reedição de barreiras entre o livre fluxo entre capital e pessoas, talvez marque o ressurgimento do sistema de Vestfália. Estados que passaram a depender de proxies para fazer sua luta por eles ainda podem ser forçados a voltar às guerras de soldados cidadãos para preservar seu lugar em um sistema global recentemente fraturado. Para vencer um conflito entre competidores análogos, guerras de necessidades e não escolhas, estados serão forçados a reafirmar seu controle nos espaços físicos e virtuais de uma forma que não víamos há décadas. O livro de Krieg e Rickli é um valioso estudo da ordem neo-medieval que já pode ser retrocedida: se o ponto alto da globalização já foi atingido, então, seu refluxo talvez possa revelar que o sistema de Vestfália tenha renascido.
Fonte: UnHerd