Por Thomas Bertonneau
Nesse texto veremos como Edgar Allan Poe – escritor estadunidense famoso por seus contos de horror e uma estética gótica que contrastava com a modernidade de seu tempo, aproxima-se de questões metafísicas e cosmológicas profundas através, principalmente, de seus escritos “Eureka” (poema em prosa) e “Mellonta Tauta” (conto).
Muitas pessoas conhecem o “Big Bang” ou a teoria da singularidade da origem cósmica, mas ainda menos sabem que o autor da teoria da singularidade foi um cientista-sacerdote belga, Georges Lemaître (1894 – 1966), que, além de seu trabalho em matemática e física, serviu como oficial de artilharia no Exército Belga na Primeira Guerra Mundial. O nome Lemaître raramente aparece nas discussões de livros sobre a teoria da singularidade, embora apareça na Introdução ao artigo da Wikipedia sobre o assunto. O nome de Edgar Allan Poe (1809 – 1849) está ausente no artigo da Wikipedia sobre Lemaître, onde, de fato, assumiria alguma relevância, uma observação que se pode estender aos próprios escritos publicados de Lemaître. Lemaître cultivava de tudo. Um jesuíta típico, ele conhecia as áreas de humanas e as das artes tão bem quanto as das ciências. Ele dificilmente poderia ter ficado alheio à autodescrita obra-prima de Poe, o poema em prosa, Eureka (1848), que Charles Baudelaire havia traduzido para o francês em 1863. A Poe pertence a invenção real do que Lemaître chamaria, em um ensaio popular de mesmo nome, “The Primeval Atom” (1946). Até os detalhes de “The Primeval Atom” encontram antecipação em Eureka, que serviu de base para as palestras que Poe deu a audiências perplexas no último ano de sua vida. Questiona-se se a omissão de Lemaître do nome de Poe foi calculadamente prudente. Revelar a inspiração da cosmologia de Poe sem dúvida teria ocasionado comentários arrogantes. Melhor não complicar a questão amarrando a teoria a um texto literário bizarro de um conhecido excêntrico, cheio de sátiras pesadas e repleto de ironia multifacetada. Melhor não aduzir o autor de “The Tell-Tale Heart” ou “The Masque of Red Death”.
Eureka, cujo segundo subtítulo após “A Prose Poem” é “An Essay on the Material and Spiritual Universe”, tem uma relação retroativa com o resto da obra de Poe, embora Poe a tenha composto simultaneamente com seu último conto “Mellonta Tauta”, em 1848. Eureka e “Mellonta Tauta” compartilham uma série de artifícios e temas: por exemplo, transcrever uma carta escrita um milênio inteiro no futuro, na qual o epistolário satiriza a parcialidade do conhecimento em uma época passada e primitiva; e no qual novamente ele aborda, ora com leveza e ora com gravidade, questões de metafísica, epistemologia e cosmologia. Mesmo o trabalho de Poe sendo uma peça, o leitor familiarizado com a totalidade do estilo do autor prontamente perceberá que “A Prose Poem” retoma tópicos inicialmente expostos em entradas anteriores da obra e os completa. Enquanto Eureka toma como tese “o Universo” e, portanto, se qualifica principalmente como uma dissertação cosmológica, sua gama de tópicos se estende muito. “Mellonta Tauta” não declara nenhum tópico, mas vasculha uma aglomeração aparentemente arbitrária de tópicos, relacionados apenas associativamente, na mente volúvel do escritor da carta. Em seu deslocamento temporal, tanto em Eureka quanto em “Mellonta Tauta”, Poe atinge a simetria dos pontos de vista. A modernidade se considera como a superação da medievalidade, que começa por volta do ano 1000; mas o ano de 2848 se considera pertencente a uma época que se recuperou das falácias intelectuais que incapacitaram a mente durante um período que começou mil anos antes, cuja impressão ainda fala. Eureka leva o título de Arquimedes, o físico siracusano que, quando de repente intuiu o princípio de flutuabilidade de seu banho, gritou: “Eu encontrei”, mas em grego, pronunciando assim a trissílaba titular que Poe toma emprestado. A intuição figura com destaque em ambos os textos.
Poe inicia Eureka com uma confissão de inadequação: “É com uma humildade realmente despretensiosa – com um sentimento até de reverência – que escrevo a frase de abertura desta obra; pois de todos os assuntos concebíveis eu abordo o leitor com o mais solene – o mais abrangente – o mais difícil – o mais augusto.” Ao discorrer sobre assuntos “Físicos, Metafísicos e Matemáticos”; ao direcionar sua investigação para “o Universo Material e Espiritual”, para “sua Essência, sua Origem, sua Criação, sua Condição Presente e seu Destino” – isso impressiona Poe como de fato a única atitude permissível. Em sua suavidade, o que chamamos de ciência não consegue se conectar com a sublimidade da natureza, que é tão invisível quanto visível. A ciência acumula fatos e os organiza em tabelas organizadas. Reduz a natureza a uma descrição de fenômenos. A ciência usa a palavra teoria, mas de acordo com Poe, ou melhor, com seu futuro escritor de cartas, o significado da teoria permanece estranho ao pensamento contemporâneo ou do século XIX, mas isso é um salto à frente da exposição de Poe. Poe escreve: “E agora, antes de prosseguir com nosso assunto propriamente dito, deixe-me implorar a atenção do leitor para um trecho ou dois de uma carta um tanto notável, que parece ter sido encontrada rolhada em uma garrafa e flutuando no Mare Tenebrarum – um oceano bem descrito pelo geógrafo núbio, Ptolomeu Heféstio, mas pouco frequentado nos dias modernos a não ser pelos transcendentalistas e alguns outros mergulhadores de manias.” A frase exemplifica a densidade da prosa de Poe e a complexidade da ironia, sátira e acuidade crítica que habita seus períodos cuidadosamente elaborados. O Mare Tenebrarum, por exemplo, um denominador arcaico do inexplorado Atlântico Sul, constitui uma auto-referência para MS. Found in a Bottle (1833) e The Narrative of Arthur Gordon Pym (1838), duas primeiras publicações de Poe que apontam para Eureka e “Mellonta Tauta”. A referência aos “transcendentalistas” implica não apenas com a escola americana de pensamento com esse nome, mas também a filosofia de Immanuel Kant, a quem o autor da carta invoca, embora de forma um tanto oblíqua.
A carta Eureka se preocupa com os métodos pelos quais os modernos – ou, para ele, os antigos, os homens do século XIX de Poe – buscavam chegar a verdades metafísicas e, assim, estabelecer as bases para sua visão de mundo. Esses homens de um milênio atrás herdaram, ainda mais cedo na história, duas visões errôneas. Da “noite do tempo”, um “filósofo turco”, um “Áries … apelidado de Tottle” ou “O Carneiro”, postulou o dogma do “que foi denominado de filosofia dedutiva ou à priori”. De acordo com O Carneiro, o caminho para certo conhecimento começou “com o que ele considerou ser axiomas, ou verdades evidentes por si mesmas”. Para o autor das cartas, Aristóteles construiu um jogo fechado, puramente silogístico. Assim, “seus discípulos mais ilustres foram Euclides, um geômetra… e Kant, um holandês, o criador daquela espécie de transcendentalismo que, com a mudança meramente de um C por K, agora leva seu nome peculiar.” Então veio “O Porco” ou “o pastor Ettrick”, que insistiu em “um sistema totalmente diferente, que ele chamou de a posteriori ou indutivo”. Considerando que Aristóteles fundou a imagem da natureza em “númenos”; O Porco (isto é, Bacon) fundou o mesmo em “fenômenos”. O Porco a princípio deslocou O Carneiro, mas os sucessores imediatos d’O Porco reconciliaram os dois e colocaram igual ênfase na dedução e indução, com a exclusão, no entanto, de qualquer terceiro caminho. Na visão do autor da carta – o que reflete a convicção de Poe – essa aliança exclusiva de dedução e indução “confinou a investigação ao rastreamento” e a um acúmulo infinito de “fatos” que nunca poderiam se consumar ou atingir seu objetivo. A humanidade arrastou-se intelectualmente com o andar de uma “tartaruga”. E o terceiro caminho?
Em Eureka e “Mellonta Tauta”, o terceiro caminho aparece, não na codificação, mas na práxis, na realização de Johannes Kepler, o gênio científico por excelência de Poe. Depois de uma complexa travessia das atitudes de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, que o autor da carta, falando sem dúvida por Poe, considera estupefação, a discussão volta aos índices da Verdade. “Não é”, pergunta a missiva, “uma evidência da escravidão mental imposta a essas pessoas preconceituosas por seus Porcos e Carneiros, que apesar da tagarelice eterna de seus sábios sobre os caminhos da Verdade, nenhum deles caiu, mesmo por acidente, no que agora percebemos tão distintamente ser a mais ampla, a mais reta e mais disponível de todas as meras estradas – a grande via pública – a majestosa rodovia do Consistente?” De fato: “Não é maravilhoso que eles tenham falhado em deduzir das obras de Deus a consideração vitalmente importante de que uma consistência perfeita pode ser nada mais que uma verdade absoluta?” Os iluminados devem sua liberação noética a Kepler. Kepler, um grande teórico, no sentido etimológico do termo, tomou conhecimento do todo ao invés das partes. Quando resolveu os problemas que afligiam o modelo copernicano do universo, o fez por intuição: “Sim! – Estas leis vitais que Kepler adivinhou – ou seja, ele as imaginou.” Se alguém tivesse questionado Kepler como ele chegou à sua visão – isto é, qual rota ele tomou, Ramish ou Hogish – sua resposta teria sido: “Eu não sei nada sobre rotas – mas eu conheço a máquina do Universo… eu a compreendi com minha alma – eu a alcancei por mera força de intuição.”
Tendo vasculhado a prosa lapidária de Poe até agora, o leitor agora será capaz de dar sentido a uma figura bizarra nos parágrafos iniciais de Eureka antes da citação da carta do Mare Tenebrarum. Como pode o turista, parado na orla de Aetna, apreciar adequadamente a totalidade da cena? A resposta – girando rapidamente no pivô do calcanhar! Poe reconhece o perigo. O spinner pode muito facilmente precipitar-se na caldeira. Assumindo um bom equilíbrio, entretanto, o espectador giratório teria apreendido Aetna e seus arredores como uma totalidade panorâmica, com seu eu visionário como o concentrum teatral. Poe escreve, a propósito da epistemologia: “Exigimos algo como uma rotação mental no calcanhar”. Somente assim tais homens poderiam fazer as minúcias de nossa visão de mundo desordenada “desaparecerem” e, assim, ter acesso aos “segredos imperecíveis e inestimáveis do Universo”. A humanidade ascenderia, por meio desse acesso, à “família cósmica de Inteligências”; enquanto ela permanece acanhada e lenta como uma tartaruga coletora de fatos e detalhes. Poe julga a situação não apenas intelectualmente, mas também como moralmente deficiente. Em “Mellonta Tauta”, o correspondente avalia como: “Não é sustentável que através do modelo de escavação a maior quantidade da Verdade seria adquirida ao longo de muitas eras, pois a repressão da imaginação era um mau impossível ser compensada por qualquer convicção superior nos antigos modos de investigação.” Pessoas cujo hábito mental sinaliza por “sua tagarelice sem fim sobre os caminhos da Verdade” são, na verdade, “pessoas fanáticas” que “falharam em deduzir das obras de Deus o fato vital de que uma consistência perfeita deve ser uma verdade absoluta!” Observe que, em adulação ao “rastejamento”, os homens se afastam do princípio divino. Em Eureka, com essas preliminares fora do caminho, Poe lança sua exposição de como o universo surge de uma unidade primordial; como ele consiste de átomos e vazio; e como, quando a repulsão se exaure, o cosmos retornará, por atração, à sua forma hiper-monoatômica – apenas para começar de novo.
A discussão retornará às passagens relevantes de Eureka conforme necessário, mas por enquanto os itens da autoria de Poe que articulam explicitamente sua crítica pouco apreciada da modernidade ocuparão o foco de atenção. O atomismo mental explícito em Eureka provará ter funcionado como uma base implícita para a análise de Poe das coisas físicas, metafísicas, políticas, culturais e sociológicas desde a década de 1830. Duas fontes clássicas, contraditórias em si mesmas, servem a Poe como modelos da crítica cosmológico-psicológica-sociológica ou psíquico-atomista: O Timeu de Platão e a Rerum Naturae de Lucrécio. Ambos exemplificam qualidades intelectuais que Poe admira, principalmente Imaginação e Intuição. Poe tomará emprestado de Platão o modelo do diálogo literário e a presunção de um cosmos consciente que se origina na intenção de um Criador benevolente; ele tomará emprestado de Lucrécio o artifício literário de uma exposição didática em primeira pessoa dirigida a uma pessoa específica, mas fictícia, e a recursão regular a uma ideia intuitiva singular – o substrato atômico de tudo o que existe. Poe está ainda mais próximo de Platão do que de Lucrécio, que rejeitou a hipótese do cosmos consciente em favor de uma causalidade materialista.
“Mellonta Tauta”, tão ligada a Eureka, fornecerá um bom ponto de partida no levantamento da ficção de Poe. Poe confere à sua narrativa epistolar um título grego. As duas palavras significam: “Estas coisas serão,” e a história (ou discurso – não há muito de uma história), portanto, participa da escatologia. O tema “Últimas Coisas” circula amplamente na autoria de Poe desde o seu início.
“Mellonta Tauta” retrata um futuro distópico. A humanidade fez a descoberta do terceiro caminho epistemológico, é verdade, mas isso permanece conhecido apenas dentre um círculo esotérico. O ano de 2848 exibe traços malignos que remontam à época de Poe. Os leitores aprendem que a superpopulação massiva se acumulou no mundo, levando a uma diminuição do apreço pelo indivíduo. “Pundita”, a escritora de Poe, comenta como, viajando de balão sobre o oceano, ela testemunhou uma corda de arrastar derrubar um homem do convés de uma barcaça superlotada: “O homem, é claro, não foi autorizado a embarcar novamente, e logo estava fora de vista, ele e seu salva-vidas. ” Ela então descreve o princípio sacrificial do socialismo sob o qual a humanidade global existe. “Regozijo-me”, como ela escreve, sem dúvida com ironia, “que vivemos em uma época tão iluminada que não existe tal coisa como um indivíduo”; antes, “é a massa com a qual a verdadeira Humanidade se importa”. Essas condições começaram há mil anos, com a República Americana ou “Amriccan”. Pundita poderia muito bem estar comentando sobre 2020 em vez de 1848: “Eles começaram com a ideia mais estranha que se possa imaginar … que todos os homens nascem livres e iguais – isso nas próprias garras das leis de gradação tão visivelmente impressas em todas as coisas, tanto na moral como no universo físico. ”Na República Amriccana“, o sufrágio universal deu oportunidade para esquemas fraudulentos, por meio dos quais, qualquer número de votos desejado poderia a qualquer momento ser alterado, sem a possibilidade de prevenção ou mesmo detecção, por qualquer partido que seria meramente mal o suficiente para não ter vergonha da fraude.”
Em outro lugar em “Mellonta Tauta”, Poe faz Pundita abordar os pecados da antiga tribo de “Knickerbockers”. Os annales dos Knickerbockers falam de um gigante chamado “Mob”. Este Brobdingnagiano “era… insolente, voraz [e] imundo”; ele “tinha o fel de um boi com o coração de uma hiena e o cérebro de um pavão”. Ele correu selvagemente, destruiu, até que morreu, como as turbas fazem. “No entanto, ele teve seus usos, como tudo tem, por mais vil, e ensinou à humanidade uma lição que até hoje ela não corre o risco de esquecer – nunca correr diretamente contra as analogias naturais.” A analogia opera em “Mellonta Tauta” assim como na tradição platônica: a ordem encontra seu padrão nos movimentos celestes e na natureza em geral. Qualquer coisa que desrespeite o padrão de ordem está fadada à extinção. Pundita escreve: “Quanto ao republicanismo, nenhuma analogia poderia ser encontrada na face da terra – talvez como exceção o caso dos “prairie dogs”, uma exceção que parece demonstrar, no mínimo, que a democracia é uma forma muito admirável do governo – para cães pelo menos. A sátira deve ser entendida no contexto e por analogia. Quando em Eureka Poe acrescenta as qualidades do átomo primordial, ele afirma que não tem nenhuma, pois “Unidade é o Nada”. Somente na dispersão radial, induzida pela “Volição de Deus”, o cosmos adquire qualidades, incluindo a da mente. A turba, que atende apenas à prontidão unificadora de seus sentimentos, carece visivelmente de qualidade mental. Pundita testemunha, aliás, de forma inconsistente. O incidente da barcaça evidencia a presença de uma multidão em 2848. Apesar da afirmação de Pundita, então, as massas do futuro “correm diretamente contra as analogias naturais.”
“The Conversation of Eiros and Charmion” (1839), “The Colloquy of Monos and Una” (1841), “The Power of Words” (1845) e “Mesmeric Revelation” (1844) devem ser considerados em estreita associação com um outro, até porque os três primeiros fazem uma sequência perceptível. “Mesmeric Revelation”, por sua vez, liga os três diálogos pseudo-platônicos ao universo atomístico de Eureka. A sequência dialógica se contrapõe a “Mellonta Tauta” em que “Eiros e Charmion” fala da destruição da humanidade; e “Monos and Una” sugere uma data para esse evento daqui a cerca de cinco séculos, cancelando assim o ano de 2848. “Eiros e Charmion” também invoca um reino do espírito, a definição novamente de “Monos and Una” e “The Power of Words”, Que se mostra imune a acidentes de matéria grosseira, e para a qual a consciência migra quando liberada do corpo pela morte. “Mesmeric Revelation” pretende ser uma entrevista entre “P”, um Mesmerista, e um certo Sr. Van Kirk, que, à beira da morte por uma infecção cardíaca, busca asilo no transe hipnótico. Ele fala de seu devaneio de sabedoria oculta. Ele leciona “P” sobre as gradações inerentes ao cosmos que Poe invocará quatro anos depois em Eureka e “Mellonta Tauta”: “Existem gradações de matéria das quais o homem nada sabe”; e estes “aumentam em raridade ou finura, até chegarmos a uma matéria sem partícula – sem partículas – indivisível – um”. Este prenúncio de espuma quântica “é Deus” e “o que os homens tentam incorporar na palavra ‘pensamento’, é esta matéria em movimento.” A consciência, para Poe, é contínua com a matéria, mas ao mesmo tempo transcende a matéria.
Fonte: Orthosphere