Se é verdade, por exemplo, que para compreender a mensagem escatológica do novo imperativo político que proclamamos é preciso ler os antigos, do mesmo modo, é preciso ler o mundo, porque o que Platão disse ontem está, em alguma medida, no eterno, e em outra, no seu tempo. O segredo repousa, então, no eterno, mas o encontramos nas raízes que crescem no tempo. Em nossos hábitos, portanto, que são referentes ao tempo, deve residir o foco no eterno e a percepção de sua magnânima influência.
Se eu me exercito fisicamente, porque é preciso aperfeiçoar o corpo de modo similar à alma, não devo perder o foco o objetivo último desse esforço, isto é, que o exercício é meio para o fim último, e não fim em si, ou meio para fins efêmeros. Se eu exercito a minha mente e medito, ou leio e estudo, faço-o sob a mesma máxima. Nos demoremos mais um pouco aqui:
Ler tornou-se uma espécie de mercado tanto quanto qualquer outra atividade humana subjugada pela modernidade e a consciência singular que esse tempo confere a si e todas as coisas ao seu redor. Ler tornou-se, para muitos e portanto, um fim em si. Lê-se para acumular leitura, para satisfazer um mecanismo incompreensível e estafante. Os livros ganharam a mesma estética colorida e extravagante de todo comódite transloucado de seu propósito. De modo simples, ler é agora uma atividade gourmetizada e comercializada.
Do mesmo modo, o estudo também foi instrumentalizado pela mesma consciência cosmopressiva hodierna, seja por sua atomização cientificista no início do séc. XX, que apesar de desafiada, ainda é regularmente tratada como status quo acadêmico, seja pelo mesmo vício anticrístico da quantidade e qualidade pervertida observada na leitura.
O ‘filósofo científico’ é distinto do pensador. O primeiro calcula um ‘sistema’, supostamente capaz de compassar e explicar até o pensamento que é alienígena ao ‘pensamento sistêmico’. O filósofo científico aspira uma constante expansão da sua doutrina para que tudo outrora pensado ou pensável ainda tenha lugar em sua estrutura, isto é, um lugar sempre subordinado ao sistema.”[1]
Dia desses lia-se que “devemos afastar os jovens das Humanidades”, e aí reside, com algum tom de inescusável sarcasmo, uma verdade. O jovem de Humanas, assim como o jovem de Exatas, o jovem de Naturais, ou até os “competentes de porra nenhuma”, são excessivamente limitados pelo âmbito no qual escolhem determinar toda a sua caminhada de conhecimento, que já não terá nada de epistemológica ou transcendente, mas utilitarista. O rapaz descontruído adentra as Ciências Sociais porque quer ‘compreender e ajudar ainda a determinar e solucionar a crise institucional, social e psíquica que aflige nossa contemporaneidade interseccionada pelos dilemas fenomenológicos do patriarcado opressor desprovido de sentido’, arre, o diabo que o carregue. Por outro lado, o conservador lerá os clássicos pelos clássicos, ‘porque lá atrás sim, tinham os homens honra e valor pela vida! Eles compreendiam Deus, o mundo, as mulheres e as esferas!’ Que o diabo o carregue também.
No fundo, esses dois não compreendem nada, porque querem compreender algo muito maior que sua Ortodoxia Chestertoniana, sua Sociologia, Política ou Antropologia, AINDA QUE estas sejam ou possam ser ferramentas desta leitura. O problema é que certa área torna-se tão impregnada e infectada por essa mentalidade torpe, que não nos resta se não exortar para que ninguém caminhe por essas vias aberrantes, excetuando-se os que, iniciados de alguma forma nos mistérios, possam atravessar o vale de lágrimas e armar-se com estas ferramentas, “montando o tigre (ou a jaguatirica)”.
O caminho do conhecimento é expansivo, curioso e por muitas e esmagadoras vezes, caótico. E nesse caminho, não rara é a queda do estudioso numa certa inconclusão a respeito de todas as coisas, e então um descontentamento e cólera gutural contra o conhecimento e contra o sentido do mundo por sua inadequação. “Aí te pego, niilista!”
Certamente voltamos então ao ponto fundamental; o estudioso começa não como tábula rasa, mas como munido de uma intuição de mundo capaz de abarcar a sua busca. Neste sentido, também essa intuição representa um perigo no que se considere o estudioso que jamais toca naquilo que para essa sua intuição fundamental é profano e desafiador. Deves conhecer o inimigo pelo nome, porque o nome tem poder; deves fungar seu cangote porque quando obtuso se faça outro sentido, sentimos seu fedor à distância; deves beber com ele, porque sem a morte (enquanto antítese) a vida perde sentido. O valor real está na “vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito”. Os demônios também tem vez, e só a destruição produz renascimento.
Então o homem caminhará com sandálias de pedras preciosas sobre o mundo vegetal, porque Blake não é apenas um bom poeta, mas um desvelador do místico; também deitar-se-á no leito do deus e beberá água limpa, porque Gilgamesh não lhe foi uma curiosidade arqueo-literária, mas uma ponte entre os deuses que fugiram e sua vida pós-moderna. Ele verá em Karamázov três irmãos e um espírito, porque Dostoiévski fez dos seus uma teofania. O homem verá na botânica e na física complexa o argumento hegeliano que antes lhe parecia tão abstrato. Segurará o infinito na palma da mão, e a eternidade em uma hora.
Nada do que digo é realmente uma novidade, mas citá-lo novamente corresponde ao ciclo do costume e do exercício. Digo-o porque recordar é viver, e quando recordar é difícil, é preciso reler, e contar para mais alguém do que lembra.
Notas
[1] HEIDEGGER, Martin. Ponderings: Black notebooks. Bloomington: Indiana University Press, 2016