Escrito por Marco Ghisetti
A guerra civil do Iêmen é considerada a maior catástrofe humanitária de nossa época, com algumas centenas de milhares de civis mortos por conta dos bombardeios sauditas e do cerco econômico ao país. Mas por que há tanta disputa pelo controle do país? Por que o Iêmen é importante? E por que a Grã-Bretanha está dando tanto apoio para a Arábia Saudita? Qual é o papel dos EUA no conflito?
A guerra civil iemenita irrompeu em 2014, quando os insurgentes houthis, reunindo-se em torno do descontentamento popular generalizado causado pela contínua e “dupla interferência estadunidense-saudita” [1] em seus assuntos internos, tomaram a capital iemenita Sana’a, levando o presidente Hadi a se refugiar na Arábia Saudita e pedir ao governo de Riad que interviesse militarmente contra os rebeldes. Em 26 de março de 2015, encorajada pelo consentimento tácito dos Estados Unidos, a Arábia Saudita lançou a campanha de bombardeio maciço chamada “Tempestade de Resolução”, que ainda está em andamento. Atualmente, as forças no campo estão divididas em três grupos: os Houthi, liderados pelo Ansar Allah e apoiados pelo Irã (que está ganhando cada vez mais terreno), o governo exílio de Hadi, apoiado pela Arábia Saudita, e o Conselho Meridional de Transição, de menor peso e apoiado pelos Emirados Árabes. A guerra no Iêmen resultou até agora na morte violenta de cerca de 100.000 a 250.000 pessoas, além de 4 milhões de pessoas deslocadas e 24 milhões de pessoas necessitadas de assistência humanitária. A guerra no Iêmen é considerada a mais grave catástrofe humanitária em curso, “sobre a qual é quase proibido falar e escrever no momento”.[2] O silêncio do circo midiático e do clero jornalístico talvez possa ser explicado enfatizando a importância estratégica do Iêmen e o papel que dois aliados dos Estados Unidos – Arábia Saudita e Reino Unido – estão desempenhando no conflito e, portanto, sua responsabilidade mais ou menos direta na tragédia que está fustigando a população iemenita.
Por mais que grande parte dos bombardeios contra as forças houthi seja realizada pelos sauditas, agora não há dúvida de que o Reino Unido tem desempenhado um papel de acompanhamento dos sauditas desde o início da campanha aérea. Desde 2015 “o Reino Unido tem concedido ao regime saudita licenças de armas no valor mínimo de 5,4 bilhões de libras esterlinas. 2,7 bilhões de libras foram gastos com licenças ML10, incluindo aeronaves, helicópteros e drones, e 2,5 bilhões com licenças ML4, incluindo granadas, bombas, mísseis e contramedidas. Em junho de 2020, a ONU informou que mais de 60% das mortes de civis no Iêmen são causadas por ataques aéreos liderados pela Arábia Saudita. A BAE Systems – a maior empresa de armas do Reino Unido – já arrecadou mais de 15 bilhões de libras em vendas e serviços para a Arábia Saudita desde 2015″.[3]
John Develler, antigo funcionário do Ministério da Defesa britânico na Arábia Saudita, disse que “os sauditas são completamente dependentes da BAE Systems. Eles não poderiam fazer nada sem nós”. O apoio britânico aos sauditas vai além da simples venda de armas e equipamentos de guerra: estima-se atualmente que haja 6.300 militares britânicos na Arábia Saudita fornecendo apoio logístico contínuo, ao qual devem ser acrescentados cerca de 80 soldados da Real Força Aérea [RAF]. Um funcionário da BAE comentou: “Se não fosse por nós [os britânicos], em sete ou catorze dias não haveria um único jato [saudita] no céu”.[4]
A ajuda britânica à Arábia Saudita não tem sido isenta de críticas internas. Devido à ilegalidade, sob a lei internacional, da intervenção saudita no Iêmen, em 2019 um tribunal doméstico britânico ordenou a suspensão imediata da venda de armas porque elas também eram usadas contra a população civil. No entanto, esta decisão foi anulada de fato no ano seguinte pela secretária de Estado do Comércio Nacional Liz Truss: ela disse que a ajuda poderia ser continuada após “descobertas” de que tais armas não haviam sido usadas contra civis, confirmando assim a vontade do Reino Unido de continuar em seu papel de apoio à Arábia Saudita.
A Importância do Iêmen
A escolha britânica e saudita de intervir no Iêmen deve-se ao fato de que, querendo que estes dois atores mantenham sua relação privilegiada com o gigante norte-americano, eles devem compensar as “responsabilidades” a eles confiadas pelos Estados Unidos enquanto este último trata da Ásia. Por exemplo, a “necessidade de Londres de criar um espaço para agir” levou o Reino Unido a “reforçar os laços que já existem entre os dois lados do Atlântico”[5] , a fim de cultivar e reavivar o “relacionamento especial” que desfruta com o gigante ultramarino depois de se separar da União Européia. E sob esta perspectiva, se a guerra por procuração contra o Iêmen é de fato uma das “responsabilidades” que Riad tem que compensar enquanto os Estados Unidos se concentram na Ásia, a guerra britânica e o apoio logístico a Riad é uma das “responsabilidades” que recaem sobre os ombros de Londres.
A República do Iêmen está estrategicamente posicionada para dominar as vias marítimas que, como declarado na Estratégia Naval dos EUA para a década 2020-30, determinará o equilíbrio de poder no século XXI.[6] De acordo com esta estratégia, os Estados Unidos devem manter o domínio dos mares que conquistaram com sua vitória na Segunda Guerra Mundial, mas também devem compartilhá-lo e colocá-lo parcialmente sobre os ombros de seus “aliados” para fazer frente aos atores que estão erodindo sua supremacia naval (principalmente: China, Rússia e Irã). De fato, “ter controle sobre o Iêmen é ter controle sobre a rota de comunicação [marítima] entre o Ocidente e o Oriente”.[7] O Estreito de Bab al-Mandeb, que separa a Península Arábica do Chifre da África, pode ser facilmente fechado por uma potência que explora o Iêmen como centro terrestre; ele é, com o Estreito de Gibraltar, o ponto terminal que liga a rota marítima que, passando pelo Mediterrâneo, o Canal de Suez e o Mar Vermelho, liga o Oceano Atlântico com o Indo-Pacífico. Quem quer que seja dono desses centros nevrálgicos marinhos é, portanto, dono também de uma das principais rotas marítimas mundiais.
Especificamente, o rival dos Estados Unidos que a Arábia Saudita e o Reino Unido estão combatendo no Iêmen é o Irã. De fato, se a República Islâmica ganhasse, através dos rebeldes houthi que ela apoia, acesso direto ao Estreito de Al-Mandeb, “o equilíbrio de poder na região mudaria significativamente”[8] em detrimento dos Estados Unidos, já que a supremacia dos Estados Unidos nessas águas seria muito alterada em favor de seu rival iraniano. Além disso, “um Iêmen controlado pelos houthi seria um cliente potencial para as empresas petrolíferas russas ou chinesas”[9].
Em qualquer caso, “se a Arábia Saudita é até agora o grande perdedor da guerra” e o Reino Unido tem perdido muito em termos de imagem, “a população iemenita é sem dúvida a grande vítima”[10]. O papel desempenhado pela Arábia Saudita e o Reino Unido, dois dos principais aliados dos Estados Unidos, no Iêmen – e, portanto, sua responsabilidade mais ou menos direta no desenrolar da tragédia no país – explica por que a mídia ocidental se cala sobre o que as Nações Unidas chamaram de uma das mais graves crises humanitárias em curso.
Notas
- Haniyeh Tarkian, La guerra contro lo Yemen, in “Eurasia. Rivista di studi geopolitici”, 3/2019, p. 142
- Marco Pondrelli, Continente eurasiatico. Tra nuova guerra fredda e prospettive di integrazione. Prefazione di Alberto Bradanini, Anteo, 2021, p. 89.
- Gabrielle Pickard-Whitehead, UK urged to follow Biden’s lead and end Yemen war support, leftfootforward.org, 8 febbraio 2021
- Arron Merat, ‘The Saudis couldn’t do it without us’: the UK’s true role in Yemen’s deadly war, theguardian.com, 18 giugno 2019
- Andrea Muratore, Il tramonto della “global Britain”?, eurasia-rivista.com, 3 luglio 2020
- Per una analisi della nuova strategia navale statunitense si veda: Marco Ghisetti, “Advantage at Sea”: la nuova strategia navale statunitense, 26 dicembre 2020, eurasia-rivista.com
- Haniyeh Tarkian op. cit., p. 142
- Angelo Young, War In Yemen: Tankers Moving Unimpeded Through Bab Al-Mandeb Oil Shipment Choke Point, Says Kuwait Petroleum Corporation, 29 marzo 2015, ibtimes.com
- William F. Engdahl, Yemen Genocide About Oil Control, 20 novembre 2018, williamengdahl.com
- Massimiliano Palladini, Cinque anni di guerra in Yemen, in “Eurasia. Rivista di studi geopolitici” 4/2020, p. 196
Fonte: Eurasia Rivista