Contra o Grande Reset – Pela Política Cultural do Grande Despertar

A vitória de Biden nos EUA deu à elite cosmopolita a melhor oportunidade possível para implementar a sua reforma do capitalismo global, o chamado “Grande Reset”. Devemos, portanto, analisar em que consiste esse projeto apresentado no Fórum de Davos pelos representantes dos setores mais radicais do capitalismo, e construir uma política de resistência ao Grande Reset.

O que é o “Grande Reset”? Os Cinco Pontos do Príncipe Charles

No Fórum de Davos de 2020, seu fundador Klaus Schwab e o Príncipe Charles de Gales proclamaram um novo rumo para a humanidade – o Grande Reset. O plano, anunciado pelo Príncipe de Gales, consiste em cinco pontos:

  1. Capturar a imaginação da humanidade.
  2. Recuperação econômica após a pandemia da COVID-19, que deve levar ao início do “desenvolvimento sustentável”.
  3. Transição para uma economia sem petróleo a nível global.
  4. Ciência, tecnologia e inovação devem receber um novo ímpeto para o desenvolvimento.
  5. É necessário mudar a estrutura do equilíbrio do investimento. A participação dos investimentos verdes deve ser aumentada.

Este programa se tornou na verdade a ideologia da elite liberal global. Joe Biden e sua administração chegaram à Casa Branca sob estes slogans.

Se descartamos a retórica humanista e a ênfase na ecologia (que é exatamente a moda do Príncipe Charles), então o programa da nova fase da globalização e o plano de ação da elite internacional na era Biden são reduzidos ao seguinte:

  1. É necessário subordinar completamente a consciência da humanidade às idéias dos liberal-globalistas. Isto é conseguido através de seu controle total sobre a mídia, redes sociais, educação, cultura, arte, onde novas leis são estabelecidas – política de gênero, glorificação das minorias – sexuais, étnicas, biológicas (elevação da fealdade corporal ao ideal de beleza e harmonia). Ao mesmo tempo, os Estados nacionais são demonizados, e suas estruturas supranacionais, ao contrário, são elogiadas de todas as formas possíveis.
  2. O “desenvolvimento sustentável” (o projeto do Clube de Roma) envolve uma redução da população mundial (à medida que os limites de crescimento são atingidos). Daí a ligação com a pandemia da COVID-19, bem como o alerta da OMS sobre a probabilidade de novas pandemias.
  3. A recusa do petróleo tem como objetivo dar um golpe na economia da Rússia, de vários países islâmicos e países latino-americanos (principalmente a Venezuela), que são a base da ordem mundial multipolar. A mesma tática foi utilizada pelos Estados Unidos no último período da URSS, reduzindo artificialmente o preço do petróleo.
  4. “Desenvolvimento tecnológico” significa maior digitalização com a introdução de controle e supervisão total sobre os cidadãos, transferência de uma série de funções para a “inteligência artificial forte”, aceleração das tecnologias de bioengenharia, produção em massa de robôs, promoção de projetos de mutação genética e projetos de cruzamento de espécies (assim como “cruzamento” de pessoas e máquinas).
  5. É necessário continuar e acelerar a desindustrialização da economia, movendo as bolhas financeiras acumuladas para a esfera vaga e opaca da “produção ecológica” com a monetização simultânea do próprio meio ambiente e sua transformação em capital.

Ao mesmo tempo, os globalistas acreditam que a chegada dos Democratas à Casa Branca e a demonização de Trump e dos conservadores que o apoiaram criam condições ideais para uma nova rodada de globalização e implementação deste programa. Além disso, a globalização obviamente estagnou nas últimas décadas, e a ordem multipolar alternativa baseada na ascensão de civilizações independentes – russa, chinesa, islâmica, etc. – tornou-se gradualmente uma realidade irreversível. Portanto, os globalistas simplesmente não têm um tempo histórico: é ou agora ou nunca.

Este é o “Grande Reset”. E ele já começou.

Breve História do Liberalismo

Se olharmos para os principais estágios da ideologia liberal, entenderemos que o “Grande Reset” não é algo aleatório e transitório. A globalização é o resultado lógico da história mundial, tal como é entendida pelo pensamento liberal.

O liberalismo é uma ideologia que se concentra na libertação do indivíduo de todas as formas de identidade coletiva. Isto começou com a Reforma Protestante e a abolição dos latifúndios medievais. O resultado foi uma sociedade burguesa onde todos eram iguais – apenas em teoria e em termos de oportunidades iniciais, no entanto. Mas foi um grande avanço aos olhos dos liberais.

Os Estados-nações modernos surgiram sobre as ruínas do Império europeu e do poder do Papa – novamente, os indivíduos (apenas na forma de Estados) foram libertados da identidade coletiva (católica e imperial). Mas o progresso liberal não parou por aí.

Os filósofos Locke e Kant descreveram o projeto da “sociedade civil”, onde os Estados-nações seriam abolidos. Os indivíduos poderiam, teoricamente, passar sem eles. Assim surgiu a filosofia do cosmopolitismo, que pressupõe a abolição dos Estados-nações e (enquanto ideal) a criação do governo mundial. Este foi o nascimento do globalismo – ainda que na teoria.

Adam Smith formulou os fundamentos do liberalismo na economia, apontando a natureza internacional do mercado. Nesta teoria liberal, o desenvolvimento do capitalismo pressupunha a morte gradual dos Estados e, no final, a substituição completa da política pela economia, ou seja, pelo mercado.

A teoria crítica do marxismo surgiu no século XIX, contrastando o individualismo liberal com a teoria das classes. A idéia de progresso foi vista de forma diferente aqui, embora os marxistas também concordassem com a necessidade da morte dos Estados (internacionalismo).

No século XX, nasceram as ideologias do nacionalismo extremo (fascismo), desafiando tanto o liberalismo quanto o comunismo. Eles colocaram o princípio da nação (o Estado para os fascistas, a Raça para os nacional-socialistas) em primeiro lugar.

A derrota do fascismo em 1945 removeu esta ideologia da agenda, e a imagem do futuro foi disputada entre liberais e comunistas. Este era o significado ideológico da Guerra Fria. Em 1991, o Ocidente liberal finalmente venceu. A URSS entrou em colapso, e a China comunista embarcou no caminho do desenvolvimento mercadológico.

Foi então que o “fim da história”, ou seja, a vitória final do liberalismo, foi proclamado.

No entanto, em uma inspeção mais atenta, verificou-se que os liberais não aboliram dois tipos de identidade coletiva – sexual (gênero) e humana propriamente dita. Isto significa que novos obstáculos se interpuseram no caminho do progresso liberal. É por isso que, desde os anos 90 do século XX, a política de gênero tem vindo à tona. Seu significado não é apenas de tolerância para os pervertidos e o feminismo radical que restaura a igualdade de gênero.

De acordo com os progressistas liberais, o gênero deve tornar-se uma questão de escolha individual – como anteriormente a religião, profissão, nacionalidade e assim por diante. Caso contrário, o “progresso” irá desacelerar. Daí os casais transgêneros e gays na administração Biden. Estas são as normas do politicamente correto e são os sinais de vitória sobre a virada conservadora que quase aconteceu sob Trump.

Agora a democracia passou a ser definida como o poder das minorias, dirigido contra a maioria (obviamente uma maioria “criminosa” que é capaz de escolher Trump ou … Hitler a qualquer momento sob a influência de sentimentos populistas). Trump tentou desesperadamente defender o velho entendimento da democracia, mas foi derrubado. Ele foi cancelado – assim como todas as outras figuras, movimentos e países inteiros que se colocaram no caminho da “Grande Reset” – a última etapa do movimento liberal rumo a seu triunfo histórico.

E os liberais têm o último problema pela frente – a abolição da humanidade, a política pós-humanista. A libertação da identidade coletiva exige a abolição do gênero e das espécies. Os futurólogos liberais já estão elogiando as novas possibilidades dos pós-humanos – a fusão com a máquina multiplicará a força do corpo, da memória e aguçará os sentidos; a engenharia genética acabará com as doenças; a memória pode ser armazenada em um servidor de nuvem; a humanidade pode se conectar com a máquina e alcançar a imortalidade.

O “Grande Reset” é o triunfo da ideologia liberal em seu estágio mais elevado, na era da globalização.

E todos aqueles que discordam de tal agenda são declarados “inimigos da sociedade aberta”. Eles são convidados a se renderem voluntariamente. Caso contrário, todo o mundo progressista – com suas finanças ilimitadas, seu potencial técnico-militar e sua inesgotável capacidade de controlar a “imaginação da humanidade” – cairá sobre eles.

Portanto, o “Grande Reset” é o último acorde do progresso humano, tal como é entendido pelo pensamento liberal. Agora toda a humanidade é livre – livre para ser liberal.

Mas deve-se notar que, ao mesmo tempo, não se é livre para não ser liberal. Se um liberal “iliberal” ou “insuficiente” é notado em algum lugar, o sistema punitivo é lançado automaticamente.

O Grande Despertar

Durante a feroz campanha eleitoral nos Estados Unidos, os partidários de Biden – adeptos do “Great Reset” – usaram todos os meios contra seu oponente Trump, inclusive os proibidos. Eles não desprezaram sequer a aplicação das metodologias da “revolução colorida”, que antes eram exportadas, dentro dos Estados Unidos. Tal determinação, para além dos limites, fala muito sobre o quão alto é o risco.

Os globalistas estão bem cientes de que se suas derrotas e fracassos continuarem a se acumular, toda a história de quinhentos anos de liberalismo entrará em colapso. Um mundo multipolar – para o qual Trump, sendo crítico da globalização, gravitava intuitivamente – não deixou aos liberais nenhuma chance. Assim, eles jogaram fora suas máscaras, abandonaram os princípios da “velha democracia” e empurraram Biden para a Casa Branca, independentemente de qualquer decência, procedimentos e regras.

Os partidários do Trump sabem a força poderosa e maníaca com que estão lidando desde sua primeira campanha eleitoral. Os democratas, movidos pela lógica do globalismo, estavam dispostos a sacrificar as instituições tradicionais americanas e a própria democracia. E é sobre isso que os trumpistas têm alertado desde 2016.

É claro que é difícil para o cidadão comum perceber todo o fundo sinistro da ideologia liberal, que de forma consistente e consciente leva à destruição da humanidade, à sua “superação”. É difícil de acreditar, não é fácil chegar à verdade. Especialmente para aqueles que foram educados sob a influência da democracia liberal, dentro do sistema capitalista e sob a introdução profunda de uma cultura globalista. E, no entanto, a epifania começou.

Foi assim que nasceu a tese do “Grande Despertar”. Este slogan foi apresentado pelos apoiadores de Trump, que se tornaram as primeiras vítimas do novo totalitarismo liberal que estava por vir. Suas iniciativas foram imediatamente censuradas, suas contas na mídia social foram eliminadas e até referências a elas foram purgadas dos sistemas dos gigantes da tecnologia – Twitter, YouTube, Google, Facebook.

No início, isto afetou apenas os opositores mais estridentes dos globalistas e apoiadores do Trump. Mas à medida que a campanha eleitoral foi aquecendo, mais e mais amplos círculos se tornaram vítimas da cultura do cancelamento e da desplataforma. Até que os globalistas finalmente aplicaram seus métodos ao próprio atual presidente dos EUA – Donald Trump.

Este era o momento do “Grande Despertar”. Agora a verdadeira natureza dos globalistas foi percebida não apenas pelos mais astutos e irreconciliáveis, mas também por enormes setores da sociedade americana.

Aqueles que votaram no Trump são quase equiparados aos “fascistas” na ditadura liberal estabelecida. Assim funcionam as leis do “Grande Reset”: quem não está conosco é um “fascista”, e é possível – e até mesmo necessário! – lidar com um “fascista” da maneira mais cruel. E desta vez, esta categoria inclui não somente os verdadeiros conservadores, que sempre tiveram reivindicações ideológicas perante os liberais, mas também os próprios liberais, cidadãos americanos comuns, que não tiveram tempo de se ajustar aos novos critérios do “progresso liberal”. Eles ainda não entenderam que liberdade é a liberdade das minorias, e os parâmetros desta liberdade – ou seja, o que pode ser dito e feito, e o que absolutamente não pode ser feito (as normas do politicamente correto) – são estritamente estabelecidos pelas elites liberais.

O “Grande Despertar” é a constatação de que o liberalismo moderno na etapa da globalização se transformou em uma verdadeira ditadura, tornou-se uma ideologia totalitária que nega – como qualquer totalitarismo – o direito de se ter um ponto de vista diferente do dominante.

Isto é muito semelhante ao início de uma nova guerra civil nos Estados Unidos. Mas desta vez seus campos são diferentes: os partidários do “Grande Despertar” contra os partidários do “Grande Reset”.

Nas vésperas de um grande confronto

Os Estados Unidos são a principal potência mundial. O que acontece lá diz respeito a toda a humanidade. A vitória de Joe Biden e dos arquitetos “Great Reset” por trás dele significa que o mundo entrou em uma nova fase. Os globalistas estão determinados a levar acabo aquilo que eles não conseguiram fazer nas duas últimas décadas de forma consistente. Primeiro o 11 de setembro, depois Putin, depois China sob Xi Jinping, depois Irã, depois Turquia, depois Trump. E se os fracassos continuarem, o globalismo corre o risco de finalmente entrar em colapso. O “Grande Reset” deve vir agora ou nunca.

E muitas elites orientadas ao liberalismo em vários países – tanto no Ocidente como no Oriente (incluindo a Rússia, é claro) – serão mobilizadas pelo globalismo para tomar parte ativa no projeto “Grande Reset”. Isto significa que tanto uma frente externa quanto interna está sendo aberta contra os partidários da multipolaridade, da soberania e de uma ordem mundial policêntrica. E aqui começa a pressão externa da Washington democrata e da OTAN sob seu controle e a sabotagem interna da quinta coluna e das elites liberais dentro das estruturas administrativas dos Estados.

O início de uma série de operações de mudança de regime, uma nova onda de “revoluções coloridas” e a manipulação de conflitos regionais devem ser acrescentados a isso. Agora, todo o volante da sabotagem global daqueles que não tomaram o partido do “Grande Reset” funcionará em pleno poder.

É óbvio que a Rússia – pelo menos a Rússia de Putin, soberana, independente e livre – pertence às fileiras do “Grande Despertar”.

Para que isto se torne um fato irreversível, é necessário fazer um último esforço. Metade da Rússia despertou há 20 anos. E então começou um difícil, mas geralmente bem sucedido (embora prolongado) retorno à história sujeito da política mundial, e não seu objeto (como nos anos 90 do século XX). Mas o espaço para o compromisso com os globalistas está completamente esgotado.

Temos apenas uma opção – despertar completamente e não apenas tomar parte ativa no “Grande Despertar”, mas – o que seria desejável e digno da escala de nossa história e de nosso espírito – para conduzi-la.

Fonte: Katehon

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Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

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Um comentário

  1. […] O Grande Despertar deve ser tão universal quanto o Grande Reset. Não deveria ser apenas uma reação do povo americano, finalmente compreendendo a identidade cultural das elites dirigentes democratas e dos globalistas em seu país, porque se o conteúdo do Grande Despertar é tão rico de significado, se está inscrito no que é chamado de Seinsgeschichte por Heidegger, e o destino da história – o aspecto ontológico da história – o Grande Despertar deveria ser uma alternativa. Mas deveria estar no mesmo nível e não ser superficial. Somos atacados por algo que é a globalização, e o globalismo com algo muito profundo metafisicamente. Ele técnico, que é liberal, que é o moderno e pós-moderno. Existe uma filosofia por trás dos globalistas, e para combater esta filosofia – que é quase cumprida em escala global, mas experimentando cada vez mais problemas e fracassos – precisamos capitalizar sobre a alternativa. Por exemplo, precisamos rever as relações do Ocidente contra o Oriente, ou do Ocidente contra o resto. Precisamos consolidar o resto da Ásia à Europa contra a dominação deste Ocidente único. Será a mudança da unipolaridade para a multipolaridade, e o Ocidente deve encontrar seu lugar dentro desta estrutura multipolar. […]

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