A Geopolítica de Soleimani 1 Ano Depois

Qual foi o impacto do assassinato do general Qassem Soleimani sobre a geopolítica do Oriente Médio? Esse assassinato conseguiu atrapalhar os projetos do Eixo da Resistência nessa região? Ou foi tudo em vão para o imperialismo global?

Há um ano, os Furiosos Anos 20 começaram com um assassinato.

O assassinato do Major General Qassem Soleimani, comandante da Força Quds do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica (IRGC), juntamente com Abu Mahdi al-Muhandis, o comandante adjunto da milícia Hashd al-Sha’abi do Iraque, por meio de mísseis Hellfire guiados por laser lançados a partir de dois drones MQ-9 Reaper, foi um ato de guerra.

Não apenas o ataque com drones no aeroporto de Bagdá, ordenado diretamente pelo Presidente Trump, foi unilateral, não provocado e ilegal: ele foi concebido como uma provocação brutal, para detonar uma reação iraniana que seria então respondida pela “autodefesa” americana, embalada como “dissuasão”. Chamem isso de uma forma perversa de “falsa bandeira invertida”.

O Poderoso Wurlitzer imperial a transformou em uma “matança direcionada”, uma operação preventiva para esmagar o suposto planejamento de “ataques iminentes” por Soleimani contra diplomatas e tropas americanas.

Falso. Sem qualquer evidência. E então, o Primeiro Ministro iraquiano Adil Abdul-Mahdi, em frente ao seu Parlamento, ofereceu o contexto final: Soleimani estava em uma missão diplomática, em um vôo regular entre Damasco e Bagdá, envolvido em complexas negociações entre Teerã e Riad, com o Primeiro Ministro iraquiano como mediador, a pedido do Presidente Trump.

Assim, a máquina imperial – em completo escárnio do direito internacional – assassinou um enviado diplomático de facto.

As três principais facções que impulsionaram o assassinato de Soleimani foram os neocons americanos – supremamente ignorantes da história, cultura e política do sudoeste asiático – e os lobbies israelense e saudita, que acreditam ardentemente que seus interesses são promovidos cada vez que o Irã é atacado. Trump era incapaz de enxergar O Grande Quadro e suas conseqüências: apenas o que seu principal doador israelense Sheldon Adelson dita, e o que Jared “da Arábia” Kushner sussurrava em seu ouvido, controlado remotamente por seu amigo próximo Muhammad bin Salman (MbS).

A armadura do “prestígio” americano

A resposta comedida resposta iraniana ao assassinato de Soleimani foi cuidadosamente calibrada para não detonar a “dissuasão” imperial vingativa:

Ataques com mísseis de precisão à base aérea Ain al-Assad, controlada pelos americanos no Iraque. O Pentágono recebeu um aviso prévio.

Previsivelmente, a preparação para o primeiro aniversário do assassinato de Soleimani teve que degenerar em notícias dos EUA-Irã mais uma vez à beira da guerra.

Portanto, é esclarecedor examinar o que o Comandante da Divisão Aeroespacial do IRGC, Brigadeiro-General Amir-Ali Hajizadeh, disse à rede Al Manar do Líbano:

“Os EUA e o regime sionista [Israel] não trouxeram segurança a nenhum lugar e se algo acontecer aqui (na região) e uma guerra eclodir, não faremos distinção entre as bases dos EUA e os países que as abrigam”.

Hajizadeh, falando mais sobre os ataques com mísseis de precisão há um ano, acrescentou: “Estávamos preparados para a resposta dos americanos e todo o nosso poder missilístico estava totalmente em alerta. Se eles tivessem dado uma resposta, teríamos atingido todas as suas bases desde a Jordânia até o Iraque e o Golfo Pérsico e até mesmo seus navios de guerra no Oceano Índico”.

Os ataques com mísseis de precisão em Ain al-Assad, um ano atrás, representaram uma potência de média categoria, enfraquecida pelas sanções, e enfrentando uma enorme crise econômico-financeira, respondendo a um ataque com o objetivo de atingir bens imperiais que fazem parte do Império de Bases. Essa foi uma novidade mundial – inédita desde o final da Segunda Guerra Mundial. Foi claramente interpretado em vastas extensões do Sul Global como um golpe fatal na antiga armadura hegemônica do prestígio “americano”.

Assim, Teerã não ficou exatamente impressionado com dois B-52s com capacidade nuclear que recentemente sobrevoaram o Golfo Pérsico; ou com a Marinha dos EUA anunciando a chegada do USS Georgia repleto de mísseis nucleares no Golfo Pérsico na semana passada.

Estas implantações foram feitas em resposta a uma reivindicação sem provas de que Teerã estava por trás de um ataque com 21 foguetes contra a embaixada americana em Bagdá, na Zona Verde.

Os foguetes (não explodidos) de 107 mm de calibre – aliás marcados em inglês, não farsi – podem ser facilmente comprados em algum souk subterrâneo de Bagdá por praticamente qualquer pessoa, como tenho visto por mim mesmo no Iraque desde meados dos anos 2000.

Isso certamente não se qualifica como um casus belli – ou “autodefesa” que se funde com “dissuasão”. A justificativa do Centcom na verdade soa como um sketch de Monty Python: um ataque “…quase certamente conduzido por um grupo miliciano fora-da-lei apoiado pelo Irã”. Note que “quase certamente” é código para “não temos idéia de quem o fez”.

Como combater a – real – guerra ao terror

O Ministro das Relações Exteriores Iraniano Javad Zarif deu-se ao trabalho de avisar que Trump estava sendo preparado para um falso casus belli – e o blowback seria inevitável. Esse é um caso de diplomacia iraniana perfeitamente alinhada com o IRGC: afinal, toda a estratégia pós-Soleimani vem diretamente do Aiatolá Khamenei.

E isso leva o Hajizadeh do IRGC a estabelecer mais uma vez a linha vermelha iraniana em termos da defesa da República Islâmica: “Não negociaremos sobre poder missilístico com ninguém” – impedindo qualquer movimento de incorporar a redução dos mísseis em um possível retorno de Washington ao JCPOA. Hajizadeh também enfatizou que Teerã restringiu o alcance de seus mísseis a 2.000 km.

Meu amigo Elijah Magnier, possivelmente o maior correspondente de guerra do sudoeste asiático nas últimas quatro décadas, detalhou com clareza a importância de Soleimani.

Todos não apenas ao longo do Eixo de Resistência – Teerã, Bagdá, Damasco, Hezbollah – mas através de vastas faixas do Sul Global estão firmemente conscientes de como Soleimani liderava a luta contra o ISIS/Daesh no Iraque de 2014 a 2015, e como ele foi fundamental na reconquista de Tikrit em 2015.

Zeinab Soleimani, a impressionante filha General, traçou o perfil do homem, e os sentimentos que ele inspirava. E o secretário-geral do Hezbollah Sayed Nasrallah, em uma entrevista extraordinária, enfatizou a “grande humildade” de Soleimani, mesmo “com o povo comum, o povo simples”.

Nasrallah conta uma história que é essencial para situar o modus operandi de Soleimani na guerra real – não ficcional – contra o terror, e merece ser citado na íntegra:

“Naquela época, Hajj Qassem viajou do aeroporto de Bagdá ao aeroporto de Damasco, de onde veio (diretamente) a Beirute, nos subúrbios do sul. Ele chegou até mim à meia-noite. Eu me lembro muito bem do que ele me disse: “Ao amanhecer, você deve ter me fornecido 120 comandantes de operação (do Hezbollah)”.

Eu respondi

“Mas Hajj, é meia-noite, como posso lhe fornecer 120 comandantes?”

Ele me disse que não havia outra solução se quiséssemos lutar (efetivamente) contra o ISIS, para defender o povo iraquiano, nossos lugares santos [5 dos 12 Imãs do Xiismo Duodecimano têm seus mausoléus no Iraque], nossos Hawzas [seminários islâmicos], e tudo o que existia no Iraque. Não havia escolha. “Eu não preciso de combatentes. Preciso de comandantes operacionais [para supervisionar as Unidades de Mobilização Popular Iraquiana, PMU]”.

É por isso que em meu discurso [sobre o assassinato de Soleimani], eu disse que durante os cerca de 22 anos de nossa relação com Hajj Qassem Soleimani, ele nunca nos pediu nada. Ele nunca nos pediu nada, nem mesmo para o Irã. Sim, ele só nos pediu uma vez, e isso foi pelo Iraque, quando nos pediu estes (120) comandantes de operações. Então ele ficou comigo, e começamos a contatar nossos irmãos (Hezbollah) um a um. Conseguimos trazer quase 60 comandantes operacionais, incluindo alguns irmãos que estavam na linha de frente na Síria, e que enviamos ao aeroporto de Damasco [para esperar por Soleimani], e outros que estavam no Líbano, e que acordamos de seu sono e trouxemos [imediatamente] de sua casa quando o Hajj disse que queria levá-los com ele no avião que o levaria de volta a Damasco após a oração do amanhecer. E de fato, depois de rezarmos juntos a oração da madrugada, eles voaram para Damasco com ele, e Hajj Qassem viajou de Damasco para Bagdá com 50 a 60 comandantes libaneses do Hezbollah, com os quais ele foi para as linhas de frente no Iraque. Ele disse que não precisava de combatentes, porque, graças a Deus, havia muitos voluntários no Iraque. Mas ele precisava de comandantes [duros de batalha] para liderar esses combatentes, treiná-los, transmitir-lhes experiência e conhecimentos, etc. E ele não partiu até que eu tivesse prometido que dentro de dois ou três dias eu teria enviado a ele os 60 comandantes restantes”.

Orientalismo novamente

Um ex-comandante sob o comando de Soleimani que conheci no Irã em 2018 havia prometido a mim e ao meu colega Sebastiano Caputo que tentaria arranjar uma entrevista com o Major General – que nunca falou com a mídia estrangeira. Não tínhamos motivos para duvidar de nosso interlocutor – portanto, até o último minuto de Bagdá, estávamos nesta seletiva lista de espera.

Quanto a Abu Mahdi al-Muhandis, morto lado a lado com Soleimani no ataque com drone em Bagdá, eu fazia parte de um pequeno grupo que passou uma tarde com ele em uma casa segura dentro – não fora – da Zona Verde de Bagdá em novembro de 2017. Meu relatório completo está aqui.

Mohammad Marandi da Universidade de Teerã, refletindo sobre o assassinato, me disse: “o mais importante é que a visão ocidental sobre a situação é muito orientalista. Eles assumem que o Irã não possui estruturas concretas e que tudo depende de indivíduos”. No Ocidente, um assassinato não destrói uma administração, empresa ou organização”. O aiatolá Khomeini faleceu e eles disseram que a revolução estava terminada. Mas o processo constitucional produziu um novo líder em poucas horas. O resto é história”.

Isto pode ajudar a explicar a geopolítica de Soleimani. Ele pode ter sido uma superestrela revolucionária – muitos em todo o Sul Global o vêem como o Che Guevara do Sudoeste Asiático – mas ele foi, acima de tudo, uma engrenagem bastante articulada de uma máquina muito articulada.

O presidente adjunto do Parlamento iraniano, Hossein Amirabdollahian, disse à rede iraniana Shabake Khabar que Soleimani, dois anos antes do assassinato, já havia previsto uma “normalização” inevitável entre Israel e as monarquias do Golfo Pérsico.

Ao mesmo tempo, ele também estava bem ciente da posição da Liga Árabe em 2002 – compartilhada, entre outros, pelo Iraque, Síria e Líbano: uma “normalização” não pode sequer começar a ser discutida sem um Estado palestino independente – e viável – sob as fronteiras de 1967 com Jerusalém Oriental como capital.

Agora todos sabem que este sonho está morto, se não completamente enterrado. O que resta é a habitual e sombria labuta: o assassinato americano de Soleimani, o assassinato israelense do cientista iraniano Mohsen Fakhrizadeh, a guerra israelense implacável e relativamente de baixa intensidade contra o Irã totalmente apoiada pelo Beltway, a ocupação ilegal por Washington de partes do nordeste da Síria para pegar um pouco de petróleo, o perpétuo impulso por mudança de regime em Damasco, a demonização sem parar do Hezbollah.

Além do Hellfire

Teerã deixou muito claro que o retorno a pelo menos uma medida de respeito mútuo entre EUA-Irã envolve Washington reingressando na JCPOA sem condições prévias, e o fim das sanções ilegais e unilaterais da administração Trump. Estes parâmetros não são negociáveis.

Nasrallah, por sua vez, em um discurso em Beirute, no domingo, enfatizou,

“um dos principais resultados do assassinato do general Soleimani e de al-Muhandis são os apelos feitos para a expulsão das forças norte-americanas da região. Tais apelos não haviam sido feitos antes do assassinato. O martírio dos líderes da resistência colocou as tropas americanas no caminho da saída do Iraque”.

Isto pode ser um desejo onírico, pois o complexo de segurança militar-industrial nunca abandonará de bom grado um núcleo-chave do Império de Bases.

Mais importante é o fato de que o ambiente pós-Soleimani transcende Soleimani.

O Eixo de Resistência – Teerã-Baghdad-Damasco-Hezbollah – em vez de cair, continuará sendo reforçado.

Internamente, e ainda sob “máxima pressão” de sanções, o Irã e a Rússia estarão cooperando para produzir vacinas Covid-19, e o Instituto Pasteur do Irã co-produzirá uma vacina com uma empresa cubana.

O Irã está cada vez mais solidificado como o principal nó das Novas Estradas da Seda no Sudoeste Asiático: a parceria estratégica Irã-China é constantemente revitalizada pelos Ministros de Relações Exteriores Zarif e Wang Yi, e isso inclui o turbo-carregamento de Pequim em seu investimento geoeconômico em Pars do Sul – o maior campo de gás do planeta.

Irã, Rússia e China estarão envolvidos na reconstrução da Síria – que incluirá também, eventualmente, um novo ramo da Rota da Seda: a ferrovia Irã-Iraque-Síria-Mediterrâneo Oriental.

Tudo isso é um processo interligado e contínuo que não pode ser queimado por Hellfires.

Fonte: Asia Times

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Pepe Escobar

Analista geopolítico independente, colunista para o The Cradle e editor do Asia Times.

Artigos: 597

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