Nas últimas eleições americanas, o candidato democrata Joe Biden teve apoio de toda a mídia de massa, de Hollywood, do Vale do Silício, do Pentágono, e de todos os setores do establishment. As pesquisas eleitorais de empresas privadas diziam, unanimemente, que a vitória de Biden seria avassaladora e que Trump não teria chance. Não obstante, nas urnas, o resultado foi diferente. Trump, mesmo supostamente derrotado (ainda pretendendo recorrer judicialmente) ganhou quase 12 milhões de votos a mais do que em 2016. Por que?
Joe Biden foi proclamado o vencedor das eleições presidenciais americanas. Donald Trump, que não admite a derrota, clama por fraude e está prestes a se envolver em uma batalha jurídica. Qual é a sua análise?
A questão principal não está aí. Todos agora admitem que as pesquisas anunciando um tsunami democra estavam, mais uma vez, erradas, porque Biden, até que sua vitória seja confirmada e as suspeitas de fraude forem refutadas, “apenas” venceu, e até por pouco. Mas esta observação não é suficiente. O que as pesquisas não previam era que Donald Trump iria recolher entre 7 e 10 milhões de votos a mais sob seu nome do que nas eleições presidenciais de 2016. A idéia transmitida pela mídia era que há quatro anos, a “demagogia trumpista” havia abusado de um eleitorado ingênuo e que este agora se arrependia amargamente (daío tsunami anunciado). O oposto aconteceu. Não apenas aqueles que votaram no Trump em 2016 confirmaram seus votos, mas milhões de antigos eleitores democratas se juntaram a eles.
A participação na votação foi considerável – algo raro em todo o Ocidente – o fato maciço e indiscutível é que metade dos americanos de hoje são “trumpistas”, em outras palavras, eles estão agora assumindo posições populistas. Trump perdeu uma batalha, mas o trumpismo não perdeu a guerra! O sistema bipartidário tradicional foi derrubado: o eleitorado republicano não tem nada a ver com aquilo que um dia ele foi. E embora a inimizade feroz prevaleça de ambos os lados e as antigas fundações da identidade coletiva dos Estados Unidos tenham desaparecido, os Estados Unidos se vêem divididos em dois como nunca antes desde a Guerra Civil. Um jornal dinamarquês falou hoje em dia de “um abismo de divisão, raiva e ódio”. Uma revolução em um país até agora considerado bastante “unânime” em termos de valores e instituições.
Como os dois campos se diferenciam?
Ao contrário do que muitas vezes imaginamos, à direita e à esquerda, a divisão não é fundamentalmente étnica. Trump foi acusado de ser, ou até mesmo é dito que queria ser, o “presidente dos brancos”, mas se ele tivesse sido, teria sido muito mais (e certamente) asfaltado. As tensões raciais são evidentes, do outro lado do Atlântico como em outros lugares, mas elas não resumem tudo. As condições de vida das “minorias” (que estão prestes a se tornar a maioria) melhoraram muito mais sob Donald Trump do que sob Obama. Isto explica porque Trump melhorou seu consenso nestas áreas ao ganhar 17% dos votos entre os negros, em comparação com 13% em 2016 e 35% entre os latinos, em comparação com 32% nas eleições anteriores. O movimento Black Lives Matter, muitas vezes esquecido, não nasceu sob Donald Trump, mas sob o segundo mandato de Obama…
Se o trumpismo está ficando mais forte, não é porque os eleitores de Trump são “supremacistas brancos” ou porque são conquistados por teorias conspiratórias e imaginam Hillary Clinton devorando crianças vivas durante obscuras “cerimônias pedo-satanistas”. O que separa os dois campos que se enfrentam hoje são filiações de classe e concepções de sociedade totalmente opostas.
Por um lado temos os representantes do establishment, apoiados por quase toda a mídia, por outro lado temos os americanos apegados a suas raízes, sua socialidade e seus valores compartilhados. As pessoas enraizadas que vêm de algum lugar e os nômades que vêm do nada, as pessoas comuns da classe trabalhadora e média em via de empobrecimento (o que Hillary Clinton chamou de “deploráveis”) e os lobbies “desenraizados” que consideram a ascensão do populismo tão incompreensível quanto escandalosa. Isto é muito semelhante ao que vemos nos países europeus: uma luta frontal entre os habitantes das cidades globalizadas e o que chamamos de “França periférica”. No caso dos Estados Unidos, um detalhe geopolítico importante: os estados mais favoráveis a Trump estão concentrados no centro do país, pertencem à América continental, enquanto as fortalezas de Joe Biden pertencem à América marítima: as principais metrópoles da costa leste e da Califórnia. Terra e mar, sempre.
Imediatamente após eleito, Joe Biden proclamou seu desejo de ser um “presidente que une as pessoas”. Há alguma chance de ele ser bem sucedido nisso?
Acho que não. Passemos à suntuosa mediocridade do personagem. Que os democratas escolheram como seu campeão um político senil, um especialista com erros grosseiros e solidamente comprometido já diz muito sobre a crise do Partido Democrata que, além disso, acabou de perder assentos na Câmara dos Deputados e não conseguiu ganhar no Senado. O campo de Biden está profundamente desunido e sua margem de manobra será muito estreita. Donald Trump foi um bode expiatório providencial para os democratas: foi apenas seu ódio por Trump (o mesmo ódio demonstrado por 90% da mídia européia) que os uniu. Se Trump se for, todas as suas diferenças virão à tona, enquanto a raiva do povo continua a rugir. E se, como é muito possível, se não provável, Kamala Harris, representante da ala esquerda do partido, suceder Biden durante seu mandato, a distância entre as duas Américas se ampliará ainda mais. Até que ponto? Em um país onde mais de 350 milhões de armas de fogo (mais do que pessoas) circulam livremente, pode-se temer o pior.
Fonte: Boulevard Voltaire