No meio de toda a polêmica suscitada pela derrubada de estátuas de figuras ligadas à escravidão na Europa e América, já se perguntaram como os africanos lidam com figuras escravagistas do seu passado?
Essas pessoas na foto são descendentes de Francisco Félix de Souza, e no quadro na mão da mulher é ele próprio representado. Para quem nunca ouviu falar dessa figura interessantíssima, ele foi um baiano mestiço do século XVIII, o maior traficante de escravos africanos do seu tempo — talvez de todos os tempos. Ele se instalara na costa do atual Benim como governador de um forte português, estreitando laços com a nobreza do Reino de Daomé. Ele tivera dúzias de mulheres e centenas de filhos e deu origem a um clã afro-brasileiro de muita influência até hoje no Togo e em Benim, cujo patriarca detém o título de Chachá, título esse que Francisco Félix recebeu do próprio Rei de Daomé, e que desde sua morte é transmitido para seus descendentes. Por acaso esse simpático senhor de preto na foto é o Chachá VIII.
Bom, aparentemente nenhum de seus descendentes, tampouco ninguém da comunidade afro-brasileira do Benim, que foi formada tanto por escravocratas como ex-escravos, aparenta ter vergonha de seu passado. Eles não têm acessos de afetação moralista e nem querem queimar estátuas, retratos ou símbolos dos seus antepassados. Cito com mais ênfase o exemplo do Chachá, mas todos os estados africanos da costa eram dependentes do sistema atlântico, reis e rainhas fizeram fortuna, construíram cidades, palácios e monumentos, patrocinaram expedições militares, tudo com recursos da escravidão.
Esses africanos que têm orgulho de Francisco Félix de Souza não o valorizam enquanto escravocrata, mas sim enquanto uma figura de prestígio dentro da memória de sua comunidade, como fundador do clã, como definidor de sua identidade histórica. Eles não se prendem a um moralismo afetado que nega a história humana como ela é, a um sentimento fetichista de culpa.
Como podemos perceber, ao contrário do que dão a entender esses liberais que se dizem de esquerda, antifascistas e “antirracistas” não estão em contato com os valores tradicionais africanos. Longe disso, eles representam uma mentalidade que é produto do mundo ocidental liberal, são formados em universidade americanas e europeias, baseiam seu “anticolonialismo” em filosofias produzidas nas antigas metrópoles; seus referenciais teóricos e ideológicos são, portanto, homens velhos, brancos e burgueses.
Esses movimentos não têm nenhum interesse ou respeito pela cosmovisão de nativos africanos ou americanos, eles têm interesse neles somente enquanto “oprimidos”, “vítimas”.
E nessa cruzada contra a história e identidade dos povos, talvez depois de derrubarem todas as estátuas por aqui, eles mandem alguns professores uspianos para reeducarem e descolonizarem os africanos do clã Souza.