Novo filme do chileno Pablo Larrain põe em evidência, mesmo sem querer, as aporias dos modelos de sociabilidade pós-modernos, pós-liberais, pós-feministas e pós-monogâmicos.
Com uma câmera que, mesmo quando estática, não para de captar movimento, o diretor Pablo Larrain nos convida para dentro do microcosmo fluido e existencialmente itinerante de Ema: uma dançarina piromaníaca que — como a Raquel da narrativa bíblica — quer por que quer ter filhos: se não morre!
Só há um problema: seu marido, Gastón , um diretor de coreografia de sexualidade ambígua, é estéril. E se, nesse caso, a adoção poderia parecer uma solução racional e sensata para a querela, ela logo se converte em sina quando Polo, filho adotivo do casal, seguindo a tendência pirotécnica da mãe, acaba ateando fogo e deformando o rosto de sua tia, sendo “devolvido” para o orfanato em seguida.
A partir desse contexto, Ema (2020), com lançamento previsto para julho, mas liberado de graça em alguns streamings dias atrás, já começa a operar uma inversão pós-feminista que caracterizará todo o andamento da trama: não se trata mais da simbologia da “madre aberta” como metáfora para uma feminilidade que se realiza ao gerar vida; a saga (que vai da humilhação à glória) da mulher infértil em busca do socorro dos Céus é sorrateiramente substituída pela premissa do homem estéril, incapaz de “dar frutos” e de perpetuar sua prole. Em outras palavras, em Ema, toda decepção (e peso) da infertilidade é deslocada dos ombros da mulher e lançada sobre o homem, invertendo os papéis de gênero e, por tabela, situando o masculino num paradigma utilitarista: não é por acaso que os únicos dois elementos masculinos da narrativa sejam retratados como seres frágeis, altamente manipuláveis e como simples meios para determinados fins (a fecundação): a película faz dos homens paródias do modelo burguês-patriarcal de feminilidade, que reduzia a mulheres a simples enfeites de estante; paródia esta que, podemos dizer, é politicamente o objetivo e finalidade do feminismo como projeto pós-liberal de reordenamento das relações de gênero: a mulher como paródia do homem e o homem como paródia da mulher.
Ema é um filme dinâmico, que repercute certos modos de sociabilidade inseridos no contexto da pós-modernidade: relacionamentos abertos e pós-monogâmicos, afetivamente difusos (“líquidos”, para nos expressarmos de forma baumaniana), rizomáticos e intensos na mesma proporção que fugazes. Mas se, por um lado, tais formas de expressão da sexualidade são naturalizadas pelo roteiro, por outro lado, essa naturalização não ocorre sem custos para o drama de seus personagens: por trás da fluidez do transe coletivo de uma orgia lésbica, esconde-se o impulso apaixonado (apaixonado como o fogo) à maternidade — impulso que, se não é natural em um sentido estritamente biológico, é ao menos suficientemente enraizado (nos termos de um inconsciente coletivo) para gerar inquietação.
Num filme que utiliza a constante movimentação de câmera, cenário e personagens (é um filme em grande parte dançado e coreografado) como símbolos da liberdade individual absoluta da protagonista, o desejo de ser mãe aparece como um paradoxo e como um entrave auto-imposto a essa liberdade sem fronteiras. É como se houvessem polaridades contrastantes inscritas na psique de Ema, tendendo ora ao instável e ora ao estável e se debatendo para ver quem ganha. Claro, ela buscará solucionar esse impasse pelas vias mais tortuosas, egoístas e maquiavélicas possíveis — o que fará dela em grande parte intragável para o expectador, que sentirá dificuldade para se conectar ao seu drama.
No meio de tantos “pós”, podemos dizer que o longa chileno é ainda uma produção cinematográfica do gênero pós-romântico, ao lado dos recentes História de um Casamento (2019) e Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), porque trás o enfoque de suas histórias para as repercussões sócio-emocionais das relações, mais do que às relações propriamente ditas, que ocupam um papel secundário e, em certo sentido, descartável — como de fato são na esteira do mundo pós-liberal e ultra-individualista.
Por todas essas considerações, Ema parece ter sido feito sob medida — embora o diretor tenha afirmado que se trata de uma obra aberta a interpretação — para retratar detalhes “in locu” da utopia feminista (“abolicionismo de gênero”, “abolição da família”, etc.) desconstrucionista. Quem assistir o filme poderá julgar se gosta ou não do que vê.
[…] Ema (2020): La déconstruction post-féministe en action […]
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