A Eclosão da Pandemia do Covid-19 deve ser encarada como uma Guerra Híbrida

Escrito por Leonid Savin, Traduzido por Raphael Machado
Conforme a pandemia do covid-19 chegou no Ocidente começou, quase de imediato, uma guerra de narrativas sobre as origens do novo coronavírus. O Ocidente atlantista começou a propagar a fantasia de que a China criou o coronavírus como arma biológica para destruir os outros países e fazer sua economia crescer, bem como uma versão mais suave dessa narrativa que atribui o covid-19 a “hábitos alimentares porcos” dos chineses. Do outro lado, com um pouco mais de fundamento, as forças do Eixo da Resistência acusam os EUA de criar o covid-19 e de lançá-lo na China durante os Jogos Militares em outubro do ano passado. Independentemente desse choque de narrativas, típico das guerras híbridas, é possível encarar a própria ameaça da pandemia como equivalente a uma guerra híbrida, ou seja, como uma ameaça existencial não convencional que pode ser confrontada e abordada nos termos estratégico-militares da guerra híbrida. Trazendo uma importante contribuição para o debate sobre o combate à pandemia global, traduzimos um artigo do geopolitólogo russo Leonid Savin.

Inicialmente, oficiais iranianos e chineses declararam que o coronavírus era uma arma biológica criada nos laboratórios militares dos EUA. A mídia americana foi rápida em acusar aqueles por trás destas declarações de espalhar teorias conspiratórias, mas os defensores da teoria começaram a especular ainda mais: o vazamento foi acidental ou toda ação foi deliberada?

No contexto de algo como a guerra híbrida (por um lado, um conceito bastante específico que diz respeito ao ato de, por um lado, conduzir operações militares e alcançar objetivos políticos e, por outro, um grande guarda-chuva que tem sido saturado nos últimos anos), o coronavírus tem sido associado a uma estratégia destinada a minar o crescimento econômico tanto da China como de outros países. Mesmo a pandemia dentro dos EUA tem sido interpretada pelos teóricos da conspiração como um plano do capital transnacional contra Donald Trump, na véspera das eleições presidenciais.

Pondo de lado essa especulação, a eclosão da pandemia ainda pode ser considerada como uma guerra, mas o termo precisa ser abordado de forma racional. As medidas adotadas para combater a pandemia na China parecem completamente lógicas e adequadas – a primeira pergunta feita não foi a de quem é o culpado, mas o que deve ser feito. Não é por acaso que as acusações de envolvimento militar dos EUA só surgiram após a crise ter passado e as taxas de incidência e mortalidade terem começado a cair.

Soldados americanos usando equipamento de guerra química durante exercício militar conjunto com a Coreia do Sul na base americana de Dongducheon, perto de Seul, em 2011, objetivando simular detecção e reação às armas nucleares, radiológicas, biológicas e químicas da Coreia do Norte

Como o sistema de monitoramento dos cidadãos na República Popular da China está bem desenvolvido e a mentalidade confucionista de obedecer às autoridades ajudou a identificar os infectados e a criar as condições certas para o isolamento, foi possível localizar a propagação relativamente depressa, o que é mais do que se pode dizer do Irã e de alguns países europeus. Além das diferentes mentalidades das nações, aspectos como a solidariedade e a vontade de ajudar (ou a sua ausência) foram revelados ao mundo. Todos estes fatores são cruciais durante situações de crise e conflitos militares. Portanto, há boas razões para que os vírus sejam comparados com tais ameaças e, num contexto histórico, a luta contra várias epidemias e fenômenos semelhantes foram figurativamente referidos como uma guerra – a guerra contra a fome, a guerra contra o alcoolismo, etc.

Como a crise atual não é típica, a comparação com uma forma não convencional de guerra é completamente justificada. A este respeito, um curioso artigo intitulado “Usando mecanismos resposta à guerra híbrida para combater o coronavírus e confrontar futuras armas biológicas. Uma nova abordagem” apareceu no site de uma publicação norte-americana que trata de conflitos específicos, como pequenas guerras, terrorismo e combate urbano. O autor do artigo é um oficial do exército americano que já serviu tanto no Afeganistão como no Iraque. Em uma escala de ameaças, ele coloca o coronavírus entre milícias (à esquerda – mais próximo dos conflitos convencionais) e guerrilhas (à direita – classificado como guerra não convencional). A diferença entre eles é que o extremo esquerdo do espectro se caracteriza por dados de inteligência precisos e pelo cumprimento de todas as regras de guerra, enquanto do lado direito (o extremo direito é o terrorismo), a qualidade dos dados é muito baixa e as regras de guerra não são observadas, o que dificulta significativamente a compreensão da situação e a realização de quaisquer ações. Quando se trata de doenças infecciosas, e no caso específico do Covid-19, o maior desafio é um sistema de saúde e uma rede de transportes que funcionem bem.

Se o próprio vírus é considerado uma ameaça híbrida, então as suas características precisam ser identificadas para depois identificar os meios que serão utilizados para combater esta ameaça. Uma vez que a infecção é transportada e disseminada pelas pessoas, uma área que merece especial atenção é o movimento de pessoas. A questão, portanto, é o isolamento adequado e as medidas de quarentena.

Em termos militares, derrotar o inimigo significa conduzir certos tipos de operações que podem ser combinadas. Como regra geral, estas são atrito (exaustão), deslocamento e desintegração. Atrito significa colocar as forças armadas em locais mais vantajosos e em momentos mais vantajosos para destruir as forças inimigas mais rapidamente do que elas podem se recuperar. Aplicando isto à realidade de uma pandemia, isso significa medidas para fazer cumprir as condições de quarentena. E, acima de tudo, refere-se a uma abordagem responsável, ou seja, ao auto-isolamento intencional. Se o auto-isolamento social é apenas uma reação, então o isolamento em larga escala pode ser uma medida pró-ativa contra a propagação de uma infecção viral.

A segunda operação é o deslocamento, que procura mudar rapidamente as condições para que o inimigo não possa tomar a iniciativa. Se o coronavírus é o inimigo, então ele precisa ser isolado em pequenos grupos – ou seja, fechando escolas, creches, universidades, museus, todos os lugares públicos em geral, e também fronteiras, e restringindo as redes de transporte. Paralelamente, devem ser realizados testes e devem ser criados serviços adicionais de assistência médica. Para evitar impedir a liberdade de reunião em relação a certas medidas, devem ser criados espaços públicos especiais digitalizados.

O Pentágono enviou 17 equipes com mais de 280 atletas e auxiliares para os Jogos Militares Mundiais em Wuhan, China, em outubro de 2019

A terceira operação é a desintegração. Na guerra, isto se refere aos efeitos destrutivos de fogo massificado sobre os alvos. Para uma pandemia, é a vacinação. Este é, na verdade, o método mais eficaz, sendo também o mais simples de implementar. Mas o que deve ser feito se uma vacina ainda não existe? Que medidas têm sido usadas na guerra quando não tem havido munições suficientes? É uma questão complexa, mas, ao mesmo tempo, deve ser resolvida sem demora. Ou devem ser utilizados outros meios que sejam capazes de substituir o poder de fogo, ou o número necessário de bombas e cartuchos deve ser fabricado (comprado/adquirido de terceiros) como uma questão prioritária. É significativo que a Organização Mundial de Saúde e as Nações Unidas não tenham sido capazes de responder ao desafio da pandemia. Portanto, algo está errado com o projeto de um governo mundial e de uma governança global. As decisões soberanas parecem mais eficazes, mesmo que a experiência seja então aplicada em escala global.

Uma opinião diferente sobre a utilização da força militar contra a pandemia foi apresentada pelo almirante reformado e ex-Comandante Supremo Aliado da OTAN, James Stavridis, que reagiu à pandemia com um artigo publicado no site Bloomberg em 14 de Março. Ele elogia os militares americanos, naturalmente, pelo seu envolvimento no combate à propagação da cólera no Haiti em 2010, e o papel da América na prevenção da propagação do ebola na África Ocidental. No entanto, ele também presta uma homenagem significativa aos militares chineses, que rapidamente conseguiram montar um hospital em Wuhan. Stavridis nos exorta a tirar lições da China e a reformar o Pentágono sobre os mesmos princípios – os militares americanos devem ser capazes de transicionar rapidamente para tarefas civis, a colaboração interdepartamental e, especialmente, a coordenação com organizações-chave sobre a questão deve ser desenvolvida em detalhe e posta em prática.

Uma comparação com as condições de guerra também pode ser considerada a partir da posição de uma estratégia a longo prazo, nomeadamente, as condições subsequentes de paz. Durante a Segunda Guerra Mundial, os EUA tentaram estabelecer suas próprias regras para as próximas décadas e aumentar sua influência usando o Plano Marshall, e agora o Sistema da Reserva Federal está reduzindo a taxa de juros e imprimindo bilhões de dólares extras, o que só vai aumentar o nível de risco do colapso da massa global de cédulas lastreadas por absolutamente nada. Estes são semelhantes aos métodos antigos, mas será que vão funcionar nestas novas condições?

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Leonid Savin

Leonid Savin é escritor e analista geopolítico, sendo editor-chefe do Geopolitica.ru, editor-chefe do Journal of Eurasian Affairs, diretor administrativo do Movimento Eurasiano e membro da sociedade científico-militar do Ministério da Defesa da Rússia.

Artigos: 596

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