Marco na história da sétima arte, clássico alemão discute classes sociais, futurologia e transumanismo.
O clássico alemão de Fritz Lang (que também é um livro, escrito por sua esposa Thea von Harbou) do início do século passado é, para todos os fins, um filme repleto de ambiguidades do ponto de vista de suas camadas narrativas. Ele indiscutivelmente coloca a questão da contradição entre classes sociais em uma esfera de entendimento politicamente orientada: no subsolo, há milhares de metros da superfície da cidade, situa-se a morada dos trabalhadores: cansados, oprimidos, sugados pela fome irascível da Grande-Máquina da Indústria, com suas performances corporais mecanizadas e deprimidas; e, na superfície, Metrópolis, uma cidade grandiosas, futurista, de imensos arranha-céus e aviões-carro, sustentada pelo sangue e suor dos viventes do subterrâneo.
Aqui, Metrópolis evoca uma retórica classista básica para formar seu conflito fundamental, interpretando a luta de classes como uma tensão entre forças operativas (“a mão”, isto é, o proletariado) e forças intelectivas (“o cérebro”, ou seja, a burguesia, representada na figura do oligarca Joh Fredersen, pai do protagonista da história, o jovem Freder). Daí a frase de abertura do filme (que será repetida ao longo dele):
“O único mediador entre a mão e o cérebro é o coração”.
O que quer dizer: alguém que, não sendo propriamente originado na classe oprimida, possa assumir sua causa frente aos poderes dominadores, em um esforço conciliatório e pacificador.
Na teia do enredo de Metrópolis, essa necessidade de diálogo mão-coração-cérebro é profetizada por Maria, uma figura mística (que tem nome de santa e é retratada com ares maternais em quase todas as suas aparições na película) que, no subterrâneo, oferece palavras de consolo ao proletariado esmagado nas extenuantes e mortíferas jornadas de trabalho da cidadela brilhante.
Ao se encaminhar narrativamente para uma solução mediadora inter-classes, Metrópolis se aproxima ideologicamente de premissas comuns à socialdemocracia ou a alguma forma de corporativismo do tipo fascista. Ele parece recusar qualquer chamado radical à revolta contra determinadas formas estruturais de organização social. Corrobora tal interpretação o espelhamento que o filme faz entre, de um lado, a personagem Maria, com seu discurso pacificador e humanista e sua doçura característica, e a pseudo-Maria, isto é, Maschinenmensch, o ciborgue inteligente que replica a aparência de Maria e, ao assumir ares de uma mulher provocadora e devassa, incita as massas à revolta violenta para, deste modo, chancelar a repressão igualmente violenta de Fredersen.
Metrópolis apresenta uma tensão entre a via pacifista e a violência desordenada do tipo anárquica. A solução? O “coração”, o messianismo filo-apocalíptico simbolizado pelo jovem Freder: o burguês que se compadece do proletariado e, abdicando de sua “glória”, assume a “carne” (leia-se, o uniforme da fábrica) do proletário, decidido a “tomar suas dores”.
Os elementos cinematográficos de Metrópolis são consensualmente inovadores e artisticamente deslumbrantes em vários aspectos. E se a obra parece ecoar promessas político-ideológicas que se mostraram falhas ao longo do tempo, a película ainda trás mensagens impactantes do ponto de vista simbólico e mesmo esotérico: a Grande-Máquina, que suga a vitalidade da classe operária, nos devaneios de Freder, aparece como Moloch, o deus cananeu devorador de criancinhas: tal qual o capitalismo em sua forma radicalizada (que nada mais é que sua forma natural) e a Sociedade Industrial moderna, um ente perverso cuja saciedade absoluta requer o sacrifício sanguinolento da carne de uma maioria reduzida à máquina. Uma maioria sem a qual a riqueza acumulada dos poderosos desmorona. Daí a violência das massas – sempre legítima, sempre justa – ser uma via imediata de dissolução, mas cuja descentralização caótica opera efeito reverso: a destruição da classe trabalhadora. Nesse ponto, outra obra realizada na mesma década e igualmente relevante para a história do cinema, A Greve (1925), de Eisenstein, será mais incisiva: organizada, a comunidade dos homens que trabalham pode tudo.
Outro elemento espantosamente atual de Metrópolis, especialmente se considerarmos que sua realização data do início dos anos 20, é a problematização no que tange ao transumanismo, e de como o ciborgue é retratado como um simulacro da humanidade. E mais do que um simulacro: um substituto. Uma entidade alógena que emula e, em seguida, substitui a espiritualidade humana (que a Maria real, no longa, parece representar) pela artificialidade e a frieza do robô. E uma vez que essa transposição se efetiva, a Máquina, o Transumano, a paródia antropológica do homem (ironicamente, criada por ele) é quem irá conduzi-lo à ruína e a destruição. É então que a sociedade da técnica encontra sua razão de ser: o esmagamento de todas as formas humanas, a não ser por uma minoria poderosa de endinheirados.
Metrópolis não é um filme panfletário e tampouco isento politicamente. Por essa razão, não deixa de ser pedagógico, ainda que seu clímax, para alguns (por exemplo, para mim), esteja mais para um anti-clímax.