A Metafísica da Guerra em Henrique V

Por Mateus Pereira

Os portões da compaixão estarão fechados, e o soldado sedento de morte, bruto e duro de coração, com licença para derramar sangue pela própria mão, vai percorrer a cidade com pensamento amplo como o inferno, ceifando como capim suas belas, frescas donzelas e suas crianças, estas recém desabrochadas. O que me interessa, se a impiedosa guerra civil vestir-se em chamas, como o príncipe dos demônios, e, com seu semblante negro, cometer todos os abusos selvagens associados ao vandalismo e à devastação? O que me importa, quando vocês mesmos são a causa, se as suas moças virgens e puras caem presas de violenta e lúbrica violação? Que rédea e que reino poderia deter o monstro da depravação quando ele se solta morro abaixo em carreira desabalada e feroz? Podemos gastar saliva em vão comandando os soldados enfurecidos na hora do saque e da pilhagem a que tem direito: seria tão inútil quanto enviar intimação real ao Leviatã, exigindo dele que viesse para terra firme.” (Terceiro Ato, cena IV)

Henrique V foi rei da Inglaterra de 1413 até a sua morte. Um dos monarcas ingleses mais destacados na história da ilha, foi criado longe da corte por ser filho de Henrique IV, que não estava na linha de sucessão da coroa. Em 1399, isso mudou. Henrique IV se revoltou contra seu primo, o rei Ricardo II e, após destroná-lo, assumiu a governança do reino, colocando seu filho como herdeiro da coroa.

Com apenas 16 anos, e a essa altura já príncipe de Gales, Henrique participou da batalha de Shrewbury e pôs fim a uma revolta iniciada por Henry Percy, nobre inglês que inicialmente apoiara a revolta contra Ricardo II, mas depois iniciou uma rebelião contra a coroa por conta de inúmeros descontentamentos com a administração.

Gravemente ferido em batalha [historiadores dizem que ele foi atingindo por uma flecha no olho], Henrique, o príncipe Hal, continuou lutando até asfixiar completamente a revolta galesa em 1408, “trazendo a rebelião dizimada em sua lâmina” [Quinto Ato]. Dois anos mais tarde, com seu pai já moribundo e incapacitado, assume a administração. Mas só em 1413 ele finalmente assume como Henrique V, sucessor na coroa.

Depois de adotar medidas para pacificar conflitos internos na ilha [em grande medida causados pela sangrenta ascensão de seu pai ao trono], ele se concentra na política externa, principalmente na resolução da estafante e desnecessariamente longa guerra dos Cem anos. Sua campanha mais lembrada é a de Azincourt, em 1415.

A peça de Shakespeare tem como cenário justamente essa batalha, talvez o momento mais crítico de todo o conflito, haja vista que os ingleses, como os espartanos, estavam em considerável desvantagem numérica. Foi uma das derrotas mais humilhantes já sofridas pelo exército francês, que mergulhou em um período sombrio de crises e instabilidade.

A batalha foi uma aula de estratégia e historiadores a discutem até hoje, tanto os resultados militares como as decisões controversas de Henrique ao longo do conflito.

Na manhã de 1415, a carnificina francesa alcançou proporções jamais imaginadas, com sua cavalaria sendo pulverizada pelos bem posicionados arqueiros ingleses. O terreno era desfavorável. A floresta, irregular. Cheio de desníveis, longos trechos lamacentos que não permitiam manobras muito arriscadas, o terreno não era dos mais apropriados. Nesse sentido, Henrique foi de inteligência exemplar, colocando isso a seu favor, posicionando seus homens em lugares específicos, fazendo com que os franceses fossem obrigados a avançar, só mesmo para encontrar a morte nos penhascos.

Essa tática bélica foi inédita na época. Henrique escondeu seus arqueiros em depressões, à espera do inimigo, e cercou esses espaços com estacas de afiadas pontas de ferro, que feriam e matavam os cavalos daqueles que se aproximavam. As baixas foram catastróficas para os franceses, que ficaram completamente atordoados. A situação ainda se agravaria mais porque Henrique, a certa altura, resolveu degolar todos os soldados do exército inimigo que foram capturados em combate.

Historiadores divergem sobre a sua motivação. Alguns dizem que foi por falta de mantimentos para alimentar aqueles homens todos, outros dizem que foi por medo de uma rebelião de prisioneiros, e outros, notoriamente John Keegan em “The Face of Battle: A Study of Agincourt, Waterloo, and the Somme”, dizem que Henrique simplesmente queria apavorar os franceses e perpetuar sua fama de carniceiro.

O que fica claro nos primeiros atos da peça é que Henrique tentou convencer o rei francês a se render, o que ele obviamente não conseguiu, para evitar o derramamento de sangue:

Tenham dó de sua cidade e do seu povo agora, enquanto meus soldados estão sob meu comando, enquanto o vento ameno e temperado da benevolência vai soprando as nuvens de contagiosa tempestade que a tudo cobrirão com a imundície de inebriantes assassinatos, saques e vilanias. Caso contrário, bem, não precisa mais que um momento, e os senhores verão o soldado cego, ensanguentado, mão imunda, profanar os cabelos de suas filhas, que gritam aos guinchos; puxar seus pais pelas barbas grisalhas e rebentar-lhes as venerandas cabeças contra as paredes; atravessar de lanças e flechas os seus filhos pequenos e nus, enquanto as mães enlouquecidas, confundidas pelos berros das crianças, fazem as nuvens rebentar, como fizeram as mulheres do povo judeu frente aos carniceiros sanguinários de Herodes.”

O comandante Exeter continua a fracassada súplica:

E é por isso que ele vos pede, pela compaixão de Deus, que entregueis a coroa e que tenhais piedade das pobres almas sobre as quais esta guerra faminta abrirá suas imensas mandíbulas, e que tenhais piedade de vossa cabeça, sobre a qual cairão as lágrimas das viúvas, os gritos dos órfãos, o sangue dos mortos.”

Os líderes franceses demonstram admirável bravura diante da alarmante situação e pouca paciência com a arrogância dos bretões, agindo como aristocratas guerreiros:

BOURBON: Amanhã vou sair cavalgando por uma milha, e o meu trajeto ficará pavimentado de crânios ingleses.

[…]

ORLÉANS: O Duque de Bourbon não vê a hora de amanhecer.

RAMBURES: Ele não vê a hora de comer os ingleses vivos.

Orléans ainda debocha dos ingleses com sinistra ironia:

Vira-latas bobalhões, que correm de olhos fechados para a boca de um urso da Rússia e têm os crânios amassados como maçãs podres. É o mesmo que dizer que uma pulga é valente porque se atreve a fazer o desjejum no lábio de um leão.”

As cenas da batalha na peça são particularmente asquerosas e às vezes até satanicamente ritualísticas, com um claro enaltecimento do caráter anti-materialista da guerra, como propôs Julius Evola:

O princípio geral ao qual seria possível apelar para justificar a guerra sobre o plano humano, é o “heroísmo”. A guerra, segundo este, oferece ao homem a ocasião de acordar o herói adormecido em si. A guerra rompe a rotina da vida cómoda e, através das mais duras provas, favorece um conhecimento transfigurante da vida em função da morte. O instante no qual um individuo deve comportar-se como um herói, seja ele o último da sua vida terrestre, pesa infinitamente mais na balança que toda a sua existência vivida monotonamente, na agitação incessante das cidades. Isto é o que compensa, em termos espirituais, os aspectos negativos e destrutivos da guerra que o materialismo pacifista põe unilateral e tendenciosamente em destaque. A guerra, estabelecendo e realizando a relatividade da vida humana, estabelece e realiza também o direito de um “mais do que a vida” – tem sempre um valor anti-materialista e espiritual.”

Vejam, por exemplo, a morte do Conde Suffolk, quando Exeter observa de longe York caminhando, estropiado, para beijar-lhe as feridas:

Suffolk morre primeiro, e York, todo retalhado, desfigurado, vai até ele, onde está imerso em sangue coagulado, e agarra-o pela barba, beija-lhe os cortes escancarados. Então grita com toda força: ‘Espera, meu primo Suffolk. Minha alma vai fazer companhia à tua até o paraíso’.”

Henrique V é o legítimo Rei-Guerreiro, o autêntico herói evoliano, disposto a sacrificar sua vida no caos da guerra, desapegado do materialismo pacifista. Ele literalmente acorda o herói adormecido dentro de si mesmo e de dentro de seus compatriotas ingleses, com discursos incendiários, convidando camponeses a engrossar as fileiras do combate:

E quanto a vocês, meus bons homens do campo, cujos braços e pernas foram feitos na Inglaterra, mostrem-nos aqui a têmpera que os senhores usam para sulcar a terra, para carnear os animais. Podemos jurar que os senhores são merecedores de suas raízes, coisa que não duvido, pois não há entre os senhores nenhum tão vil e cruel que não tenha brilho nobre no olhar. Posso ver que os senhores estão a postos, como cachorros galgos esperando inquietos pelo sinal de largada. Já levantamos a caça. Sigam o seu espírito de luta e, quando forem à carga, gritem: ‘Deus por Henrique, pela Inglaterra e por São Jorge!’”

É a guerra como “realização espiritual”.

O fato é que a crítica shakespeariana tem opinião dividida sobre a peça. Para uns, é um tratado militarista, é demasiada sangrenta, até mesmo limitada se comparada as outras. Para outros, é o indiscutível talento do bardo para usar a história da Inglaterra como cenário para coroar o seu talento literário.

O próprio protagonista é visto como um precursor de Cromwell, o estadista imperial arrogante, o “ditador regicida”, insuportavelmente inglês, escolhido por Deus para guiar os povos do mundo sob a égide da bandeira inglesa. Sua missão de guerreiro, portanto, é justificada, a guerra é “justa e abençoada” [Cena II], Deus é inglês, está ao nosso lado!

O protagonista desperta simpatias e antipatias. Por um lado o rei nacionalista, reerguendo um reino dilacerado por uma guerra de cem anos. Por outro, um maníaco conquistador que abria gargantas de mulheres e crianças se fosse preciso. Pessoalmente, concordo com as palavras de Hazlitt:

Foi um herói, isto é, estava disposto a sacrificar a própria vida pelo prazer de destruir milhares de outras vidas […] Como é possível, então, simpatizarmos com ele? Ele nos é simpático na peça. Lá está ele, um monstro tão amável, um esplêndido espetáculo.”

Um texto indispensável para militantes nacional-revolucionários, com motivação perfeitamente evoliana e tenebrosas imagens da Guerra Total.

Liberdade, Justiça e Revolução!

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Nova Resistência
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