Em “O Conflito das Faculdades”, Kant enunciou o que seria a célebre questão positivo-iluminista da modernidade: “Estará o gênero humano em constante progresso para o melhor?” [1]. O projeto do Esclarecimento (ilustrado como “a imergência da imaturidade autocontraída”), a transição do Ancien Régime ao Século das Luzes, da monarquia à república — tudo isto indicava para o filósofo que o gênero humano desenvolvia-se material e moralmente em um crescimento positivo. Através de uma busca de um signo — este que atuou, atua e atuará no gênero Humano como “signum rememorativum, demonstrativum, prognosticon” [2], que ele coloca nos “ânimos de todos os espectadores” [3] — Kant poderia fazer-se valer de uma posição eudemonista da História, cuja tendência, dadas as condições, seria de melhoria [4].
A questão referente a essa ideia, porém, que seja a ideia de progresso (mas também a de regresso, que, no texto de Kant, é chamada de “concepção terrorista da história dos homens”), é que ela tem como seu substrato o que poderíamos chamar de uma visão monotônica de mundo [5], representando um recorte singular de um aspecto cujo todo é muito maior do que suas partes. Mas tal julgamento, seja ele “terrorista” ou “eudemonista” ao gênero humano, não se pode evitar de ser subjetivo e, portanto, basear-se-á em um concepção sectária dentre inúmeras possíveis da realidade factual, tendo, evidentemente, por detrás de seu juízo, um aspecto normativo: a realidade está melhor (ou pior) porque deveria ser dessa ou daquela maneira. Mas nenhum fato é capaz de gerar logicamente um dever-ser [6] e, por sua natureza normativa, tal juízo será logicamente falacioso, conquanto se queira considerar como verdade apodítica e não relativa o juízo dado.
Seja o aumento da complexidade das sociedades industriais; seja o decadente regresso moral que se observa; seja a concepção de que crescemos para depois voltarmos ao cataclismo fatal — todas essas concepções apenas ganham a sua importância quando se referem a um aspecto normativo e, portanto, longe da esfera científica. É apenas quando saímos do âmbito factual e empírico (cuja seleção de fatos pode ser traduzida em inúmeras possibilidades dependendo da norma que se quer colocar), em direção à normatividade, que o juízo pode ser realizado — e, sendo assim, toda discussão política, além de uma distinção extrema entre amigos e inimigos, como detalhado por Carl Schmitt, é sobretudo um conflito pelo arbítrio (will) e sua correlação com a determinação da normatividade [7].
Os princípios que constituem as normas, com base no arbítrio, são digladiados na instância soberana. A norma, porém, não exclui os fatos, mas é limitada por eles ao mesmo tempo que os utiliza. Como a normatividade não pode ser derivada de um fato, ela subsiste como uma esfera diferente da do fato (afirmar o contrário seria confundir o caminhante, que normatiza por onde ele deve ir, e o caminho, que limita a norma) — sendo essencialmente, portanto, característica do animus humano e do seu aspecto existencial como entidade orgânica. Apenas pela determinação da normatividade de um povo é que ele, através da instância soberana, determina sua existência como entidade autônoma. Mas, quando, através do fato, tenta-se originar uma norma como logicamente derivável — e isto é, em essência, o projeto pós-liberal — comete-se a falácia do processo monotônico — perigosa, pois, fantasiando-se de norma derivada de um fato, impede a concretização de outras normas igualmente possíveis.
[1] KANT, I. O Conflito das Faculdades. Beira: Universidade da Beira Interior, 2008. pp. 97.
[2] ”Importa, pois, indagar um acontecimento que aponte, de modo indeterminado quanto ao tempo, para a existência de semelhante causa e também para o acto da sua causalidade no género humano, e que permita inferir a progressão para o melhor, como consequência inelutável, inferência que, em seguida, se poderia estender à história do tempo passado (de que se esteve sempre em progresso); porém, de maneira que aquele acontecimento não se deva olhar como sua causa, mas somente como indicativo, como sinal histórico (signum rememorativum, demonstrativum, prognosticon), e poderia, por isso, demonstrar a tendência do gênero humano, olhada no seu todo”. Ibidem, pp. 103 – 104.
[3] “A revolução de um povo espiritual, que vimos ter lugar nos nossos dias, pode ter êxito ou fracassar; pode estar repleta de miséria e de atrocidades de tal modo que um homem bem pensante, se pudesse esperar, empreendendo-a uma segunda vez, levá-la a cabo com êxito, jamais se resolveria, no entanto, a realizar o experimento com semelhantes custos — mas esta revolução, afirmo, depara nos ânimos de todos os espectadores (que não se encontram enredados neste jogo), com uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo, e cuja manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que não pode, pois, ter nenhuma outra causa a não ser uma disposição moral no gênero humano.”. Ibidem, pp. 105.
[4] “Afirmo agora que posso predizer ao gênero humano, mesmo sem o espírito de um visionário, segundo os aspectos e os augúrios dos nossos dias, a consecução deste fim e, ao mesmo tempo, a sua progressão para o melhor e não mais de todo regressiva.”, ibidem, pp. 108.
[5] “The monotonic process is the idea of constant growth, constant accumulation, development, steady progress, and the increase of one particular indicator. In mathematics, this is associated with the notion of the monotonic value, i.e. the ever-increasing value, hence, the monotonic functions.”. DUGIN, A. The Fourth Political Theory. Moscow: Eurasian Movement, 2012. pp. 56.
[6] “Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes”. HUME, D. Tratado da Natureza Humana. Livro III, Parte I, Seção II. São Paulo: Editora UNESP, 2000. pp. 509.
[7] “A norm is recognized as correct because it is derivable from principles whose character is also recognized as correct and not only as possessing a positive quality, which is understood to mean an actual establishment of a norm”. SCHMITT, C. Constitutional Theory. Durham and London: Duke University Press, 2008. pp. 64.