Fonte: IRAN AND MULTIPOLARITY
Tradução: Ana Siman
O texto a seguir é um trecho de um livro que ainda será publicado.
Na virada do milênio, o presidente do Irã de 1997-2005, Mohammad Khatami, propôs o conceito de um diálogo de civilizações. Inicialmente sendo uma contra-tese do trabalho de Samuel Huntington, O Choque de Civilizações, Khatami insistiu e argumentou sobre a necessidade de discussão entre diferentes religiões e culturas, especialmente durante seu discurso na 53ª sessão da Assembléia Geral da ONU (1998-1999). quando ele declarou oficialmente 2001 a ser o ano do diálogo entre as civilizações. A peculiaridade da teoria do “diálogo das civilizações” de Mohammad Khatami baseia-se em oferecer um uso sistemático, acadêmico e prático e proposital de troca entre civilizações para superar as barreiras de alienação entre diferentes atores no cenário político global para prevenir situações de crise no mundo levando em conta o nível moderno de desenvolvimento tecnológico e de comunicação e com um olhar voltado para os problemas globais que ameaçam a própria existência da humanidade. Khatami disse:
“Não devemos esquecer que culturas e civilizações sempre têm interação e influência mútua. Novas habilidades foram formadas devido a sua interação. O paradigma do não-diálogo leva a um impasse, para superar o que inevitavelmente apela para as abordagens de diálogo. Indicadores construtivos de diálogo certamente não devem se limitar apenas às esferas da política e da cultura. Nem todos os indicadores construtivos de cultura são apenas culturais; já que aspectos econômicos, sociais, culturais e educacionais participam dessa formação. Portanto, a promoção do diálogo das civilizações deve ser reconhecida como uma necessidade multifacetada.”
Em 2001, no entanto, um ataque terrorista atingiu Nova York e os neoconservadores americanos triunfaram em sua insistência na necessidade de intervenção militar no Iraque e no Afeganistão sob o pretexto de combater o terrorismo e encontrar (inexistente) armas de destruição em massa. O severo dualismo apresentado como um ultimato pelo governo de George W. Bush, ao som de “aqueles que não estão conosco, estão com os terroristas”, enterrou todos os esforços para estabelecer tal diálogo de civilizações.
Durante a presidência do sucessor de Khatami, Mahmoud Ahmadinejad, o Irã se tornou mais um pretexto para as “preocupações” inventadas pelo Ocidente. Enquanto isso, por outro lado, o Irã tornou-se um objeto de interesse para todas as forças que resistiram à globalização unipolar liderada por Washington. Os altos preços e a demanda por petróleo contribuíram para o desenvolvimento econômico do Irã, embora as sanções impostas pelos países ocidentais e mais tarde pela ONU tenham dificultado a economia iraniana. Apesar disso, o Irã demonstrou resiliência política à influência externa, permaneceu fiel aos seus princípios ideológicos e afirmou seu direito de ser um ator influente na região. Além disso, o Irã sob Ahmadinejad começou a cooperar ativamente com os países latino-americanos que adotaram um curso de política externa antiimperialista
O fato de que as lideranças desses países, e em primeiro lugar Venezuela, Equador, Nicarágua e Bolívia aderiram aos pontos de vista socialistas, não impediu o estabelecimento de uma aliança que determinasse a meta da multipolaridade política baseada no respeito à soberania dos Estados e tradições culturais de seus povos. A cooperação com a Rússia, China e países africanos também foi ampliada.
Além disso, visões similares vieram a ser compartilhadas por outros políticos seniores da República Islâmica do Irã. Em maio de 2006, o comandante-chefe do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, general Yahya Rahim Safavi, destacou que “hoje, levando em conta países como Rússia, China, Índia, Irã, o mundo caminha na direção de multipolaridade contrária ao desejo dos EUA.” Ahmadinejad continuou o caminho do Irã em direção à multipolaridade durante seu segundo mandato presidencial também. Na 65ª sessão da Assembléia Geral da ONU em outubro de 2010, Ahmadinejad disse:
A ineficiência do capitalismo e o governo global existente e suas estruturas têm se manifestado por muitos anos, e a maioria dos países e povos está em busca de mudanças fundamentais em prol da justiça nas relações internacionais … O mundo precisa da lógica da compaixão , a justiça e a cooperação universal, não a lógica da força, dominação, unipolaridade, guerra e intimidação … O povo iraniano e a maioria dos povos e governos do mundo são contra a atual governança global discriminatória. A natureza desumana dessa governança o paralisou e requer uma revisão radical. A cooperação universal, os pensamentos puros e a governança divina e humana são necessários para remediar a situação no mundo e fazer a transição para a paz e a prosperidade.
O Líder Supremo do Irã, Ayatollah Khamenei, também enfatizou a busca da multipolaridade. Durante seu discurso na 16ª cúpula do Movimento dos Países Não-Alinhados em Teerã, em agosto de 2012, Khamenei apontou a necessidade de reformar a ONU, chamou a atenção para a imposição unilateral do Ocidente de seus programas minando os princípios da democracia, o trabalho destrutivo dos monopólios de mídia de massa e problemas de armas de destruição em massa. Khamenei propôs a doutrina de um “Oriente Médio sem armas nucleares” pelo qual, naturalmente, ele se referiu a Israel como um pária nesta questão, e destacou a necessidade de melhorar a “produtividade política na governança global”.
Sem dúvida, tal foro como a cúpula do Movimento dos Países Não-Alinhados não é apenas para relatórios políticos aconselhando a necessidade de alta moralidade e justiça, mas é uma plataforma para criticar o neo-imperialismo. É um poderoso agrupamento de líderes e altos funcionários de estados de todos os continentes para se reunir e aproveitar uma oportunidade decente para alcançar acordos, discutir as perspectivas de projetos conjuntos e reduzir o possível atrito nas relações diplomáticas. O papel do Irã a esse respeito é muito indicativo.
Se o Irã de fato é e tem sido um centro geopolítico, então a mudança da situação internacional abriu a possibilidade de transformar seu status e elevar-se ao nível de um pólo geopolítico. Se o Irã é abordado não apenas como um Estado-nação soberano, mas como um centro do Islã xiita, então, sem dúvida, vemos que a influência do Irã em vários países com populações xiitas o torna um assunto geopolítico de nível e significado diferentes. Líbano, Síria, Iraque, Iêmen e Palestina são estados que dependem do apoio do Irã através de vários mecanismos.
O especialista em relações internacionais do Irã, Behzad Khoshandam, postula que 2016 foi um ponto de virada para o Irã no que diz respeito à escolha de seu curso internacional, que foi finalmente confirmado como sendo o da multipolaridade. Isso se deve a vários fatores interconectados: (1) a assinatura do acordo nuclear com seis países (uma manifestação da lógica da paciência estratégica do Irã em interesses políticos, comerciais, econômicos e outros); (2) reaproximação com a Rússia; (3) a vitória de Trump nas eleições presidenciais dos EUA; (4) compreender as intenções hostis dos numerosos países que realizam guerras por procuração contra o Irã (Catar, Arábia Saudita, Israel); (5) e a séria virada geral para a Eurásia. Para isso, podemos acrescentar o acordo estratégico com a China, anunciado em janeiro de 2016, que inclui Pequim apoiando ativamente o Irã na aquisição da adesão plena à SCO.
De fato, na opinião dos estudiosos iranianos, os interesses nacionais do país são mais bem protegidos em nenhum outro senão no paradigma multipolar da política global. Mohammad Mehdi Mazaheri, da Universidade de Teerã, acredita que somente em um sistema internacional multipolar é que a cooperação regional e as relações equilibradas com todos os países poderosos ajudam os países a alcançar seus interesses nacionais.
O cientista político iraniano Massoud Mousavi Shafaei, da Universidade Tarbiat Modares, propôs que o Irã aproveite a fluidez do sistema internacional e o surgimento de novas condições para operações ativas em diferentes ambientes regionais. Na medida em que o Irã está localizado entre o Oriente Médio e a Ásia Central, o país realmente tem uma escolha. O Oriente Médio está submerso no caos, conflitos étnicos, guerras e terror, e essa crise provavelmente continuará por um período indefinido de tempo. Nessas circunstâncias, a restauração da ordem na região sob a liderança de uma única potência hegemônica ou mesmo sob a pressão de grandes potências é vista como praticamente impossível. Dado que os EUA instrumentalizam a maioria dos países árabes para conter as ambições geopolíticas do Irã, esta tese é justificada. Washington simplesmente não permitirá que o Irã se envolva mais ativamente na região, mesmo que as intenções iranianas sejam totalmente benevolentes e nobres. Portanto, na opinião de Massoud Mousavi Shafaei, o Irã deve reorientar sua lógica geoeconômica para a Ásia Central e o Sudeste Asiático. No entanto, isso não significa o fim da presença iraniana no Oriente Médio necessária para defender seus interesses vitais de segurança nacional.
Também se expressou a opinião de que a Rússia, o Irã e a China “todos acham que [um] mundo multipolar é a única condição para o desenvolvimento futuro do nosso planeta e de seus habitantes. Eles comprovaram uma e outra vez que ditames unilaterais provenientes dos EUA, geram problemas, ao invés de resolvê-los. Portanto, é obviamente de seu interesse, unir-se à questão da multipolaridade, e insistir – por meio de várias instituições como os EUA, ou a imprensa, ou até mesmo novas alianças militares – de que os negócios de sempre – não serão aceitos. “
O Irã entende que ingressar no clube multipolar inevitavelmente significa pressão do Ocidente. Assim, Teerã pode esperar novos desafios, assim como os outros arquitetos da ordem mundial multipolar. Nesse sentido, o professor da Universidade de Teerã, Jahangir Karami, observou que embora a Rússia possa efetivamente restringir a abordagem unilateral dos EUA através da ONU, a expansão da Otan desafia os esforços, como aconteceu com as crises provocadas na Ucrânia e na Síria contra Moscou.
No entanto, o Irã tem uma longa história de suportar a hegemonia ocidental e outras forças desde os primeiros contatos com os portugueses no início do século XVI até a tomada da embaixada dos EUA durante a Revolução Islâmica de 1979. De fato, opondo-se às sanções americanas e trabalhando para desenvolver as próprias abordagens econômicas e a conduta nos assuntos internacionais são características do curso do Irã em relação à multipolaridade.