A terceira alternativa
Em seu famoso livro O Choque das Civilizações e a Reconstrução da Ordem Mundial, Samuel Huntington faz menção à chamada “modernização sem ocidentalização”, ou seja, a uma determinada abordagem de certos problemas concernentes ao desenvolvimento socioeconômico e tecnológico que comumente afetam os países do dito terceiro mundo que, objetivamente, necessitam aprimorar e aperfeiçoar seus instrumentos técnicos e as diretrizes político-econômicos de seus sistemas sociais, mas se negam a seguir o Ocidente Atlantista cegamente − a tendência destes é dispor dos avanços tecnológicos ocidentais e colocá-los a serviço de seus valores nacionais.
É comum que as elites “orientais” passem por uma educação “ocidental” e regressem aos seus países de origem com uma bagagem de conhecimentos relevantes, técnicos e metodológicos, que serão aplicados no fortalecimento do potencial de seus próprios sistemas nacionais. E assim, ao invés da esperada “convergência” civilizatória (de que falam – otimistas – os liberais), o que acontece, na verdade, é o aperfeiçoamento de governos e regimes bem mais “tradicionais”, que passam a dispor de tecnologias de ponta – isso acaba por radicalizar a confrontação (civilizatória) pela primazia do controle tecnológico ou, ao menos, por uma restrição na brecha técnica.
Um exemplo desta via pode ser visto no filósofo iraniano Ali Shariati, importante teórico da Revolução Islâmica do Irã. Doutorado na Universidade de Sorbonne, Shariati se interessou por Heidegger e Guénon, assim como por alguns autores neomarxistas. Convencido a respeito da necessidade de uma síntese revolucionária-conservadora que abrangesse os revolucionários xiitas, o Islã místico, o socialismo e o existencialismo, soube como atrair grande parte da juventude e da elite intelectual iraniana para a revolução. Esse exemplo é particularmente relevante porque estamos falando de uma revolução triunfante, cuja conclusão foi à vitória total de um regime antiglobalista, antiocidental e modernista-reacionário. O mesmo caminho foi tomado pelos eslavófilos russos ao pegarem de empréstimo os argumentos filosóficos do nacionalismo alemão (Herder, Fichte, Hegel) e formarem as bases para a consolidação de um modelo nacional russo. No mesmo rumo estão os eurasianistas modernos em relação aos dissidentes europeus da nova direita (ou Nouvelle Droite) ou da nova esquerda (new left).
A autossuficiência dos grandes espaços
Conceitos como “modernização” e “ocidentalização” são de grande importância, e as elites ocidentais fazem o que podem para que as massas entendam ambos os termos como sendo sinônimos. Segundo essa lógica, a reforma só é possível se for politicamente orientada ao Ocidente, de modo que reproduzir o modelo proposto por ele seria a única alternativa legítima – a outra opção representaria o “atraso”, o “conservadorismo” ou a “ineficiência”. É neste sentido que a elite ocidental trabalha, ou seja, para que o resto do mundo utilize os critérios políticos, econômicos e jurídicos que já são utilizados por essa mesma elite, assegurando, assim, seu controle sobre todos os processos ou – o que é a mesma coisa – sua hegemonia.
Deste modo, devemos trazer a tona o brilhante aporte oferecido pelo economista alemão Fredrich List. Em seus ensaios, ele demonstrou que os países que possuem sistemas sociais e políticos fundamentados no liberalismo político e na economia de mercado sempre se beneficiam da reprodução destes mesmos modelos em países caracterizados por algum tipo de atraso técnico-científico ou geopolítico. Aparentemente tidos como “iguais”, os termos de intercâmbio impostos pelo “livre comércio” levam, na realidade, a um maior enriquecimento dos países com mercados desenvolvidos e a um empobrecimento dos países que embarcaram na “única” forma de mercado estabelecida pelas elites ocidentais: os ricos enriquecem mais, os pobres ficam mais pobres. Consequentemente, segundo List, os países tradicionalmente liberais – sobretudo os anglo-saxões – extraem grandes benefícios da imposição de seu modelo sobre os outros, e isso lhes garante a maximização de sua lucratividade econômica, assegurando o seu domínio (geo)político.
Assim, o que devem fazer os Estados governados por elites que estabelecem o interesse nacional e a justiça social como vias de oposição aos seus reais e agressivos rivais liberais? Esse problema foi grave para a Alemanha do século XIX, e Friedrich List buscou resolvê-lo. A resposta foi a teoria da autossuficiência dos grandes espaços, que, podemos dizer, é sinônimo de “modernização sem ocidentalização”. É importante salientar que as ideais de List foram muito bem recebidas por nomes muito disparatados entre si, como Walter Rathenau, Conde Witte e Vladimir Lênin.
O conceito de “grandes espaços autossuficientes” implica que o Estado não desenvolvido em termos de mercado, diante da emergência de um mercado altamente competitivo como o capitalista, deve seguir um modelo de desenvolvimento autônimo, capaz de gerar os mesmos avanços tecno-científicos do sistema liberal, mas de modo estritamente limitado à unidade política em questão. O “livre comércio”, neste caso, se limitaria a um bloco estratégico de Estados coordenados em prol de seus desenvolvimentos socioeconômicos e administrativos, que uniram esforços para melhorar a dinâmica de suas economias. Para os países mais desenvolvidos e liberais, pelo contrário, devem ser impostas barreiras alfandegárias, fundamentadas no princípio do protecionismo econômico. É assim uma política equacionada em torno da maximização dos avanços tecno-científicos e do primor pela soberania política-econômica seria possível.
Tal enfoque irrita os liberais dos países com mercados desenvolvidos, do mesmo modo que lhes causa revolta a exposição de suas agressões estratégicas − que chegam ao ponto de receitar até mesmo a intervenção geopolítica ou, em última instância, a gestão externa dos Estados que os liberais querem converter em colônias econômicas e políticas. É necessário deixar claro, portanto, que a tese da “modernização sem ocidentalização” é uma arma conceitual que desagrada muito os representantes do Ocidente, já que suas elites desejam inocular na consciência pública a seguinte dualidade: de um lado, os “reformadores”, partidários da “mudança” − do outro, os “conservadores”, persistentes defensores do passado.
Enquanto essa equação for colocada nestes termos, seguiremos caindo em armadilhas, de modo que é necessário adicionar um terceiro elemento na fórmula: do “modernismo ocidentalizante” ao “anti-modernismo”, o resultado, cedo ou tarde, será a vitória dos “reformadores”, supostamente portadores do “progresso”. É necessário, portanto, que surjam os “modernistas antiocidentais”, ou “modernistas de reação”, defensores de uma mudança radical que implique na modernização total do Estado. O fato de existir uma força cujo projeto é ideologicamente independente rompe com a confrontação política trivial: para os modernistas de reação, a conservação da soberania geopolítica, cultural e econômica, assim como a manutenção da identidade nacional, são condições absolutas e indiscutíveis. Ambas as condições, “modernização” e “soberania”, são imperativos absolutos, que não podem ser sacrificados sob nenhuma circunstância.
Certamente, dentro do próprio mundo atual é possível observar alguns casos de nações que insistem em manter suas identidades, a despeito de todo discurso político contrário (ou de toda dita ineficiência econômica).
A Revolução Conservadora: último imperativo
“Modernização sem ocidentalização”, este deve ser o ponto de interseção que une mais adequadamente as forças nacionais, conservadoras e dissidentes. Esta plataforma, ainda que careça de aprimoramento e de um apelo ativo à consciência das massas, pode lançar luz sobre diversos momentos nebulosos de nossa vida política. E para os setores que negam a necessidade de um imperativo geopolítico e cultural que preveja mudanças radicais, especialmente os nostálgicos da influência ocidental-atlantista, deve ser reafirmado que a crise obriga a tomada de decisões fora do marco da classe política, e que a primazia ideológico-conceitual deve ser delegada às vanguardas que assumem o risco de criar e consolidar uma matriz revolucionária-conservadora.