Através de sites como Associated Press, Reuters, e a partir do próprio Twitter/Facebook do establishment dos EUA, surgiram, hoje, em tom de extrema urgência, novas narrativas sobre a violência nos protestos no Irã, como também sobre uma mudança radical nas demandas dos protestos.
Pois bem: qual é o problema e por que os iranianos estão protestando?
O problema tem sido justamente a não existência de uma maneira de verificar tais demandas de forma independente. O governo iraniano, em geral, foi claro ao estabelecer que há, simultaneamente, duas linhas de manifestação não relacionadas entre si. Ainda assim, essas afirmações somente puderem ser justapostas às reivindicações de ‘ativistas’ iranianos ligados ao Movimento Verde (radical e reformista), que remonta ao ex-primeiro ministro iraniano Mousavi, e que, atualmente, encontra-se dividido entre o ramo que ajuda a organizar pequenos protestos e “performances” (em conexão e com o apoio dos EUA), e o outro ramo que, não obstante, foi enquadrado, absorvido, domesticado e redirecionado por Rouhani sob os auspícios do Ayatollah Khamenei – o que, ao mesmo tempo, desembocou na maior aproximação entre os elementos reformistas radicais e as cúpulas do poder desde meados da década de 1990.
A visão oficial do governo eleito, anunciada internacionalmente através das mídias estatais iranianas, é, de fato, favorável às reivindicações legítimas dos protestos convencionais. Eles já anunciaram isso aos manifestantes e estão agora trabalhando no nível de uma intervenção na sociedade civil para desacreditar os protestos e inaugurar uma série de novas políticas e programas destinados a atender algumas das demandas (legítimas). Enquanto isso, os apoiadores do governo também apareceram em massa para combater a imagem internacional projetada pela mídia ocidental.
Considerando o desemprego oficial na margem dos 12%, e um crescimento econômico negativo por vários anos até o “boom” do PIB em 2016 (que registrou um crescimento de 12%), é correto afirmar que houve, verdadeiramente, um período inteiro de inflação que ainda não foi contornado (com os comerciantes vendo até onde os preços poderiam subir).
Neste sentido, o que constatamos hoje, no Irã, também são pessoas reais que protestam por problemas reais. Para ser mais claro, o governo do Irã não sentencia os manifestantes legítimos como “agentes ocidentais”. Eles afirmaram corretamente que os protestos estão, principalmente, relacionados à inflação e a outras preocupações econômicas – o próprio Rouhani declarou publicamente que ele compartilha de tais preocupações.
Os problemas do Irã são internos ou existem fatores globais em jogo?
Não é uma tarefa fácil simplesmente descartar as queixas do mainstream dos manifestantes e, com razão, apontar para o cerco econômico que o Ocidente colocou sobre o Irã. O Irã, no entanto, ainda é uma sociedade de classes, com uma grande e crescente disparidade entre grupos econômicos: existem bilionários iranianos, proprietários privados de empresas e sociedades anônimas que, enquanto operam dentro dos parâmetros da soberania iraniana, também extraem seu sucesso financeiro em detrimento de inúmeros iranianos. Sua riqueza e seu patamar na sociedade iraniana cresceram significativamente sob o mandato de Rafsanjani.
Que algumas destas empresas são ou foram sujeitas a sanções, não é inteiramente relevante para o fato de que as políticas econômicas de alguns dos reformistas tenham conduzido a um enriquecimento de uns em detrimento de muitos. E é justamente esse o discurso que estamos vendo e ouvindo dos iranianos hoje. O que, porém, está sendo apresentado nos meios de comunicação ocidentais é uma inversão da realidade.
É correto dizer que a pluralidade dos manifestantes, provavelmente, gostaria de ver um retorno às políticas de Ahmadinejad. O desemprego, por exemplo, foi menor durante seu governo. Ele também impôs controles de preços e subsidiou determinados bens em resposta à inflação em espiral causada pelas sanções impostas pelo Ocidente.
Existe algo a mais que devemos dizer sobre isso?
De fato, é da oposição às políticas privatistas e antissociais de Rafsanjani que se origina a Aliança dos Construtores do Irã Islâmico. Rafsanjani, que foi presidente do final da década de 80 até meados dos anos 90, não foi, obviamente, completamente infrutífero em se tratando de um certo número de projetos relevantes para o Irã, incluindo um aumento dos laços com os países da Ásia Central soviética e pós-soviética. Porém, o que pesava para o trabalhador médio iraniano, ou para o pequeno proprietário, eram justamente suas medidas antipopulares. Assim, o esquerdismo econômico da Aliança dos Construtores do Irã Islâmico é uma resposta a isso, e Ahmadinejad aumentou sua proeminência, em grande parte, através deste movimento, que ele lidera.
Tudo isso conduz a apenas uma conclusão: a mídia ocidental está forjando uma história com pouca base na realidade do Irã, descolada de sua história recente. Deste modo, é bastante claro que, agora, devemos tentar compreender os protestos de massa (legítimos) naquilo em que não se relacionam substantivamente com o conjunto das soluções propostos pelo Movimento Verde ou, por exemplo, pelo partido do Truste Nacional de Karroubi (outro proeminente reformista).
Enquanto isso, a mídia ocidental gostaria que você acreditasse que tudo que está acontecendo, tudo o que você vê acontecer, é de natureza homogênea em se tratando de sua mensagem, estejamos nós falando dos reformistas ou dos verdes. Porém, compreender a composição política dos protestos em massa não é algo fácil: é claro que há uma tônica crítica a Rouhani, devido ao fato de este não ser suficientemente reformista e nem suficientemente aberto. Há, neles, paralelos com as demandas e com preocupações de ambas os ramos: do Movimento Verde ao Truste Nacional de Karroubi.
Qual é a história aqui?
A liderança espiritual dos verdes, que também foi líder na Revolução de 1979, mas que dela se desviou em meados dos anos 80, por razões que iremos mencionar a seguir, é Montazeri. O próprio Montazeri foi rebaixado e, finalmente, afastado dos círculos de liderança por manter críticas liberais a Revolução Iraniana e, também, porque se opôs à regionalização ou à exportação da Revolução. Estes são temas da década de 80 que, ainda hoje, dominam o debate interno da sociedade iraniana de modo proeminente.
Então, quem está protestando?
A grande maioria dos manifestantes não são particularmente partidários, ou são (ao contrário do que pintou o grosso dos meios de comunicação ocidentais durante as últimas 48 horas) simpáticos às críticas de Ahmadinejad ao reformismo econômico e à política externa, na medida em que esta é uma política que tem favorecido a uma maior polarização da distribuição de riqueza e das oportunidades na República Islâmica. Portanto, suas principais demandas derivam de preocupações econômicas e relativas a corrupção, a distribuição de riqueza e aos recursos humanos. E o Irã é suficientemente sofisticado para absorver isso em termos de política regional: tudo o que o Irã faz na Síria e no Iraque é um passo importante para contornar e conter Israel. Trata-se de é uma “pauta popular”, realizada a partir da própria Revolução de 1979.
Assim, para compreender Rouhani, é necessário frisar que ele, na verdade, seguiu uma política externa muito próxima dos conservadores e dos “exportadores da Revolução”, bastante clara na forma como o Irã, hoje, apoia as brigadas xiitas no Iraque e na Síria, mantendo também suas próprias forças especiais lutando na Síria e no Iraque, bem como um apoio muito estreito, e um financiamento, ao Hezbollah no Líbano. Novamente, isso contraria as expectativas, tanto dos reformistas do Movimento Verde, quanto dos reformistas do Truste Nacional, bem como dos reformistas moderados do run-of-the-mill.
No entanto, a política econômica seguida por Rouhani foi a dos reformistas. Tal política consiste em manter relações econômicas calorosas com o Ocidente. Embora existam algumas divisões sobre quem, entre Europa e EUA, seria o melhor parceiro, em linhas gerais, essa linha foi seguida e, por isso, o governo de Rouhani entrou no acordo anti-nuclear, que deveria ser uma via de saída das sanções – algo que, com resultados mistos, geralmente funcionou.
Já no plano interno, semelhante política – novamente frisamos – favorece aos direitos individuais de proprietários, e patrões, contra as classes médias e baixas.
Ainda assim, devemos dizer que a política econômica dos reformistas, aos seus próprios olhos, não é responsável pela crise econômica: eles avaliam e criticam Rouhani por este não conseguir produzir aberturas tanto quanto poderia.
Neste sentido, as sanções são um recorte um pouco enganoso para compreender uma realidade subjacente, que é o fato de não existirem mecanismos ou impulsos capazes de forçar comerciantes e compradores, em dois países distintos, a chegarem a um acordo, ao passo que há muitos mecanismos dentro de um país hostil ao Irã capazes de impedir que suas empresas negociem com o Irã, mesmo que as “sanções” não estejam em vigor. Desta forma, podemos entender o significado das sanções, mas também entender todas as realidades mais complexas que podem entrar nesse contexto geral, ainda que não relacionadas com as “sanções” em si. A adesão [do Irã] à OMC, por exemplo, seria positiva no sentido de superar problemas deste porte (isto é, das sanções), mas os EUA bloquearam a entrada do Irã desde que os reformistas passaram advogar a entrada em 1996. Porém, há apenas alguns meses atrás, em setembro de 2017, o Irã anunciou que estava retirando oficialmente o seu pedido. Este foi um grande ponto de virada, e um movimento muito “anti-reformista” dentro dos pressupostos reformistas de Rouhani.
Duas linhas de protesto não relacionados em curso:
Em outras palavras, há pelo menos duas linhas de protestos em curso, e enquanto eles exprimem alguns pontos em comum em termos de descrição geral da realidade e em termos de demandas, suas soluções estão basicamente em desacordo. Devemos notar que, no noroeste do país, onde houveram inúmeros, mas pequenos protestos, dentre as demandas estava uma junção de pautas econômicas populistas à esquerda com reivindicações por uma maior autonomia – algo que reflete os reformistas e é um potencial foco de apoio por parte dos EUA, em grande parte, por criar oportunidades e pretextos, como vimos em outros lugares tão distantes uns dos outros como a antiga Iugoslávia e a Síria (com a questão curda).
Para compreender melhor, suponham que socialistas genuínos e libertários genuínos estejam, ambos, protestando nos EUA acerca das falhas no sistema educacional público, com os socialistas pedindo por um aumento nos recursos e os libertários clamando pela abolição do sistema: soluções literalmente opostas para o mesmo problema identificado. É neste sentido que o que estamos vendo hoje, com os vários protestos no Irã, pode ser melhor compreendido.
Manobras da CIA/Soros e o Astroturfing [termo sem tradução para o português. Leia mais aqui]:
Tomando a ala mais radical do Movimento Verde (e similares), estes [agentes externos] têm várias manobras – manobras, não protestos enquanto tais, porque envolvem, em sua maioria, dezenas de “ativistas” servindo-se de ângulos de câmeras e de palavras de ordem impopulares para simular um protesto maior – enquanto afirmam estarem entoando palavras de ordem radicais e populares.
Esta simulação da realidade só é possível a partir da uma combinação da cobertura hiperdimensionada da mídia ocidental somada à performances isoladas, realizadas por menos de uma dúzia de indivíduos. Um Twitter Storm está sendo usado (trata-se de um método centralmente planejado de guerra de informação), e é essencialmente o que poderíamos esperar por sua própria designação.
Isto é astroturfing, não manifestações de base:
VIDEO: Protesters in Kermanshah, Iran burn Iranian flag – @AkhiCakihttps://t.co/9PdxTOKewl
— Conflict News (@Conflicts) December 30, 2017
Por exemplo, na performance acima, vemos apenas um punhado de indivíduos. Porém, este é um dos tweets mais populares, que foi viral e ajudou a criar uma percepção de uma crise nacional, bem como de uma derrubada total da ordem social (o que não aconteceu lá).
https://twitter.com/kachalmooferfer/status/946367938784882688
Acima, visualizamos um “protesto” pedindo por uma mudança de regime. Parece algo sério, até que nossos olhos percebem a forma como a câmera é enquadrada e, então, nos damos conta de que a totalidade das pessoas que realizam esta performance são, na realidade, apenas aquelas no enquadramento.
Protesters in Zanjan humiliatingly attack security forces, chasing them off. pic.twitter.com/WxOpyVzVKz
— Borzou Daragahi 🖊🗒 (@borzou) December 30, 2017
Acima, vemos uma figura do Departamento de Estado dos EUA interpretando os eventos no padrão da tática Color-Spring. Eles buscam incitar, provocar a policiais para que ela faça uma espécie de ataque público, uma espécie de repressão material, do tipo que eles já estão dizendo que está acontecendo, mas que ainda não dispõem de nenhuma prova real para mostrar.
Qualquer pessoa sã, que não tivesse como objetivo antagonizar ou inflamar a situação, compreenderia o que estamos vendo aqui desta forma? As forças de segurança estão sendo “perseguidas”? Eles estão armados, os manifestantes, não. Nós os vemos em movimento. Eles estão se locomovendo para algum lugar ou sendo locomovidos? Não conhecemos as imagens reais. Eles estão sendo atacados? Nós contamos de três a quatro, do que parecem, rolos de papel higiênico ou objetos brancos claros semelhantes, sendo atirados pelo que não pode ser mais do que um ou dois provocadores.
Daragahi está sugerindo que as forças de segurança devem evitar essa “humilhação” imaginária e, em vez disso, reprimir os manifestantes? As ordens do governo central foram claras: tratem tudo isso com a maior perícia possível. Se os manifestantes parecem se voltar bestialmente contra a polícia local, com a finalidade de manter a ordem, é melhor locomover ou remover tais polícias ao invés de empregar seu potencial de força, obviamente superior, e fornecer substrato de prova ao que, até agora, eram acusações imaginárias de uma séria repressão no Irã (não há) .
Protesters burn government offices in the Ahvaz Province #Iran pic.twitter.com/ot9syDMFH0
— Michael A. Horowitz (@michaelh992) December 30, 2017
Neste exemplo final, temos outro caso de um tweet que produz uma “notícia”, mas cujo o conteúdo do vídeo mostra outra coisa. Longe de um “escritório do governo” queimado, o que se vê aí parece ser uma fogueira a base de um outdoor, em uma praça ou em uma rua, talvez na frente de um escritório do governo, talvez simplesmente nesta proximidade, ou talvez em algum lugar muito distante.
Neste sentido, afirmações similares de que edifícios governamentais estão sendo “ocupados” devem ser tratados com ceticismo, mesmo que sejam acompanhados de “vídeos”. Devemos nos lembrar de usar nossos próprios cérebros quando usamos os nossos próprios olhos para analisar os supostos eventos.
Outros videoclipes, que circulam no twitter, são remodelagens e inversões de imagens de eventos registrados por celulares em 2009.
Demonstrações de astroturfing, colocação de explosivos em determinados lugares e, talvez, os snipers que criaram os caos em um dos sete países na lista de mudanças de regime do Pentágono de 2001, têm uma coisa em comum: uma provável assinatura da “CIA”.
Por outro lado, pelo menos um número idêntico de pessoas foi às ruas, ontem e hoje, em uma demonstrações pró-governo. Foto abaixo:
Finalmente, para contextualizar tudo isso com a realidade de qualquer mídia ocidental que fala em “repressão”: o que estamos vendo no Irã, hoje, é apenas uma fração do que vimos em termos de consistência e/ou tamanho em 2009. Em 2009, cerca de 200 manifestantes foram presos. Podemos comparar isso com os Estados Unidos, “abertos” e “pluralistas”, durante os protestos do Occupy Wall Street, que exemplificaram bem a figura de um Estado Policial, com mais de 8 mil presos.